NO TEMPO EM QUE O ACRE NÃO TINHA ÍNDIOS
Vale a pena ler sempre (*)
Vássia Vanessa da Silveira
O sertanista José Porfírio de Carvalho chegou ao Acre no final de 1974. Enviado pela Funai "para não fazer nada", Carvalho passou três anos no estado - é dele o primeiro levantamento que apontou a existência de índios no Acre. Nesse período, enfrentou fazendeiros, denunciou um general em plena ditadura e foi responsável pela prisão do lendário Pedro Biló, um matador profissional de índio. Hoje, aos 55 anos, ele desenvolve projetos indigenistas em Roraima e no Pará. Casado com Maria José e pai de três filhos,o sertanista esteve no começo de agosto em Rio Branco. Ele veio a convite do governo do estado para discutir ações mitigadoras ao asfaltamento da BR-364, que passa em área Katukina, ocasião em que falou à outraspalavras. Na entrevista, Carvalho lembra como "tomou na marra" a fazenda de Diogo de Melo, fala das ameaças de morte que recebeu e da briga com setores da Igreja.
Segunda parte (final)
Sua mulher trabalha junto com o senhor?
Não, ela trabalhou. Ela trabalhava na Funai e eu era o chefe dela. Aí eu demiti ela e casei. Meu plano era que ela agüentasse minha retaguarda e ela agüentou. E ainda agüenta. Ta lá em Brasília, cuidando dos meninos, que não são mais meninos. Passo muito pouco tempo em casa.
Como foi a história do Pedro Biló?
A história do Pedro Biló é outra história interessante e triste. Pedro Biló era um personagem aqui do Acre famoso por matar índio. Ele era matador de índio profissional. Ele chegava a pegar mulheres índias pra vender pros seringueiros, pra servir sexualmente. Essa história me doía os ouvidos. E tinha uma lenda de que ele sumia, que ninguém conseguia prender ele. Muita gente também não conhecia o rosto dele. Eu estava atrás dos índios e como a Funai não me autorizava, eu subia os rios sem me identificar, sem dizer que era da Funai. Eu dizia que era pesquisador. E eu subindo o rio Envira, eu sabia que ali era o habitat do Pedro Biló, fui dormir num seringal, abaixo da fazenda Califórnia. Fui dormir na casa de um homem, e o homem era o Pedro Biló. Passei três dias na casa dele. Logicamente, foram três dias ele me contando histórias. Eu armei minha rede ao lado da rede dele pra escutar as conversas. Vi os hábitos dele, onde dormia, quando dormia. Ele usava o seguinte método: tinha uma casa na frente, onde as pessoas dormiam, e uma casa atrás. Ele ficava sempre nessa casa atrás porque quando chegasse alguém procurando por ele, ele entrava no mato e sumia. A casa dele ficava numa curva. Pra pegar ele, não podia ir subindo, tinha que vir descendo, com motor desligado. Porque se fosse subir o rio ele ouvia o motor. Eu fiz um mapa de onde era a casa dele, e vim aqui arrumar a polícia pra ir lá buscar ele preso. Pra eu convencer a polícia de mandar duas pessoas comigo, foi difícil. Nós fretamos um avião daqui pra Feijó. Quando o avião levantou vôo o Jailson, da Polícia Federal, disse assim: nós não vamos pra Feijó. Pra onde nós vamos? Vamos pra Fazenda Califórnia. Aí o cara disse, não eu não vou. Volto daqui. Aí o Jailson puxou a pistola e disse: você vai. Praticamente seqüestramos o avião. Chegamos na Califórnia, desceram com metralhadora. Eles tinham um caminho, dentro da fazenda Califórnia, que podiam avisar a pé o Pedro Biló. Então eu tinha que pegar logo um barco, pra chegar primeiro. Aí eu falei pro gerente da fazenda: eu queria que tu me arrumasse, me alugasse um barco. E ele disse não, que tava precisando do barco. E o Jailson disse: pois eu estou requisitando o barco. Você vai até onde? Não interessa. Então deixamos pra descer à noite e acabamos pegando o Pedro Biló deitado na rede. Trouxemos ele até Feijó, depois trouxemos pra cá. Mas aí a Igreja ficou contra mim. O Pedro Biló era uma lenda aqui e eu ao invés de prender o mandante, estava prendendo o executor, um homem humilde. Mas ele confessou, foi instruído pelo advogado dele, que todos os assassinatos que ele tinha feito, tinha feito há 35 anos. Então os crimes já tinham prescrito. Embora o crime contra o índio não prescreva, e eu tentei caracterizar o crime de genocídio mas o juiz federal da época não aceitou e mandou soltar ele. Então eu fiz um pacto com seu Pedro Biló. Porque logicamente ele ia me matar. Aí eu pedi pra Polícia Federal me botar dentro da cela, junto com ele. Eu falei: eu sei que o senhor vai querer me matar, vamos fazer um acordo. Você que é um homem lendário, que tem mania de sumir, eu queria que o senhor sumisse pra que nós nunca mais nos cruzássemos. E ele sumiu realmente. Terminou morrendo lá em Manaus. Essa é a história do Pedro biló. Eu tive a infelicidade de conhecer, talvez, o último matador de índio profissional do Acre. Mas prendi ele.
O senhor enfrentou também o exército quando denunciou o general Bandeira de Melo...
Ele tentou fazer com que a Funai desse uma certidão negativa de não existência de índio na área do Purus. Eu o denunciei e fui demitido da Funai. Lá, a primeira coisa que faziam era me demitir. E esse general Smarth fazia uma cena para SNI, ele me demitia para dar satisfação mas eu efetivamente não saía. Ele dizia publicamente que era comunista, que estava demitido mas eu ficava trabalhando. Às vezes eu ficava um tempo no mato escondido, para ninguém me achar, depois eu aparecia.
Quanto tempo o senhor passou na Funai?
Trabalhei minha vida toda na Funai. Entrei em 67 e saí várias vezes. A última vez foi em 1983.
Houve um momento aqui, no Acre, que seu trabalho foi muito criticado. Diziam que o senhor defendia muito a Funai como instituição...
Olha, ainda hoje sou criticado. Os trabalhos que dão certo, as pessoas não gostam muito. As pessoas me criticavam achando que eu era muito chapa branca porque eu defendia a Funai que eu fazia. O Terri, um dia, num auditório lá no Rio de Janeiro disse "O Carvalho é o estado". E eu era o estado, eu não podia transferir a responsabilidade do que acontecia aqui pra outrem, a responsabilidade era minha. E como naquele tempo era ditadura, nós não tínhamos lei, a lei nós fazíamos. E qual era" Era enfrentar eles da mesma maneira que ele nos enfrentavam. E aí a Igreja começou a me criticar porque achava que eu era muito duro, era muito cruel com os inimigos dos índios. Eles tinham os planos deles, eu tinha os meus. Os deles, eles nunca fizeram nada. Não conheço nenhum trabalho feito pela Igreja aqui, a não ser o do padre Paolino que subia aquele rio com seu barquinho rezando uma missa aqui batizando acolá... Então não pode dizer que a Funai aqui foi uma desgraça, não foi. Não porque eu tenha sido a pessoa que estabeleceu a Funai, que criou a Funai aqui, mas pelo resultado hoje. Eu provei, eu e meus colegas de trabalho, que o nome Funai existe para oficializar uma ação indigenista e ela pode ser boa ou pode ser ruim. Hoje nós estávamos almoçando com o governador do Estado e com os índios. E aqui não tinha índio. E nós ouvimos o governador dizer que ele vai fazer um trabalho, que vai ser o maior trabalho dele porque o Acre é o lugar que tem o maior número de índios isolados do Brasil. Fico muito feliz porque quando eu disse que aqui tinha índio, disseram que eu estava pintando cearense de urucum.A Funai até hoje recebe críticas pela forma tutelar de lidar com os índios e existe uma discussão agora em relação à mudança no estatuto do índio.
Como o senhor avalia esse debate?
Eu quero explicar que aqui nós iniciamos uma Funai diferente. Aqui os índios sempre tiveram liberdade, nós não transplantamos a Funai tradicional pra cá, fizemos uma outra Funai. Mas acho que as pessoas hoje que pregam a Funai sem a tutela desconhecem os índios. Há índios que podem viver sem a tutela mas 90% dos índios ainda dependem da tutela. Por quê? Nós temos aqui mil índios isolados estimados, eles não sabem que existe a nossa sociedade, não sabem fazer um requerimento, não conhecem o nosso procedimento. Se ele vier na cidade sem tutela, ele não é ninguém. Eu acho que a tutela deveria ser também estendida não só aos índios mas aos trabalhadores que não têm conhecimento, os analfabetos. Essas pessoas são vítimas da estrutura do estado, da nossa sociedade. A tutela é para proteger, não confundir. Então essas pessoas que querem tirar rapidamente a tutela desconhecem os índios, desconhecem.
E o trabalho que vem sendo feito em Roraima?
Pra mim foi uma coisa histórica, também. Continuo vivendo momentos emocionantes. Pensei que depois que os cabelos começassem a cair, que a democracia surgisse, não voltasse a repetir o que aconteceu nos outros tempos. Lá aconteceu agora, há pouco tempo, uma coisa que eu não pensava mais. Eu fui preso de novo. E por quê? Fiz alguma briga no bar, dei algum cheque sem fundo? Não, fiquei do lado dos índios e tive minha prisão decretada por um juiz federal. Ele queria expulsar os índios de uma área dele e ele sabia que eu não ia aceitar isso. Então ele achou que a melhor medida era mandar me prender primeiro e depois fazer esse absurdo. E assim foi feito, eu fui preso, passei três dias preso e depois o Ministério Público entrou pra me defender e eu consegui sair da cadeia. Mas até o mês de julho agora, eu continuava ameaçado de prisão pelo mesmo juiz. E agora o Ministério Público entrou de novo com o arquivamento de processo - três processos. Mas eu continuou lá, com um trabalho de resgate da dignidade dos índios que viviam humilhados pelos fazendeiros e nós conseguimos recursos para tirar e indenizar os fazendeiros. Tem também o Programa Waimiri- Atroari, um projeto nosso de 25 anos. Nós já estamos com 12 anos e a Eletronorte financia porque ela inundou uma parte da terra dos índios e como forma compensatória ela acreditou num projeto que eu apresentei. E que esse projeto hoje pode ser considerado, sem querer jogar confete na minha cabeça, um sucesso. É um projeto completo que pretende dentro de 25 anos retornar os índios a independência que eles perdem quando têm contato.
Nesses 23 anos afastados do Acre, o senhor acompanhou a história do movimento indígena aqui?
Acompanhei e vejo com muito carinho os índios terem passado a participar desses movimentos indígenas. Infelizmente, as associações que eles criaram são modelos nossos. Eu acho que se fosse ao contrário, eles criando sua própria associação, seria mais legítimo. Mas quando eles vêm para cá e montam uma associação, eles ainda dependem ainda dos recursos de entidades exóginas.
E isso é errado?
Eles perdem a legitimidade, de certa maneira. Melhor seria se eles tivessem seus próprios recursos. "As pessoas me criticavam achando que eu era muito chapa branca porque eu defendia a Funai que eu fazia".
(*) Artigo originalmente publicado na versão on-line da revista cultural "Outras Palavras", Edição 7. "Outras Palavras" é, para mim, a melhor revista cultural já publicada no Acre. Quando apareceu eu não estava no Brasil. Vim tomar conhecimento dela cerca de um ano atrás. Se puder vou juntar todos os números publicados para fazer uma coleção encadernada.
Foto: Edson Caetano
Vássia Vanessa da Silveira
O sertanista José Porfírio de Carvalho chegou ao Acre no final de 1974. Enviado pela Funai "para não fazer nada", Carvalho passou três anos no estado - é dele o primeiro levantamento que apontou a existência de índios no Acre. Nesse período, enfrentou fazendeiros, denunciou um general em plena ditadura e foi responsável pela prisão do lendário Pedro Biló, um matador profissional de índio. Hoje, aos 55 anos, ele desenvolve projetos indigenistas em Roraima e no Pará. Casado com Maria José e pai de três filhos,o sertanista esteve no começo de agosto em Rio Branco. Ele veio a convite do governo do estado para discutir ações mitigadoras ao asfaltamento da BR-364, que passa em área Katukina, ocasião em que falou à outraspalavras. Na entrevista, Carvalho lembra como "tomou na marra" a fazenda de Diogo de Melo, fala das ameaças de morte que recebeu e da briga com setores da Igreja.
Segunda parte (final)
Sua mulher trabalha junto com o senhor?
Não, ela trabalhou. Ela trabalhava na Funai e eu era o chefe dela. Aí eu demiti ela e casei. Meu plano era que ela agüentasse minha retaguarda e ela agüentou. E ainda agüenta. Ta lá em Brasília, cuidando dos meninos, que não são mais meninos. Passo muito pouco tempo em casa.
Como foi a história do Pedro Biló?
A história do Pedro Biló é outra história interessante e triste. Pedro Biló era um personagem aqui do Acre famoso por matar índio. Ele era matador de índio profissional. Ele chegava a pegar mulheres índias pra vender pros seringueiros, pra servir sexualmente. Essa história me doía os ouvidos. E tinha uma lenda de que ele sumia, que ninguém conseguia prender ele. Muita gente também não conhecia o rosto dele. Eu estava atrás dos índios e como a Funai não me autorizava, eu subia os rios sem me identificar, sem dizer que era da Funai. Eu dizia que era pesquisador. E eu subindo o rio Envira, eu sabia que ali era o habitat do Pedro Biló, fui dormir num seringal, abaixo da fazenda Califórnia. Fui dormir na casa de um homem, e o homem era o Pedro Biló. Passei três dias na casa dele. Logicamente, foram três dias ele me contando histórias. Eu armei minha rede ao lado da rede dele pra escutar as conversas. Vi os hábitos dele, onde dormia, quando dormia. Ele usava o seguinte método: tinha uma casa na frente, onde as pessoas dormiam, e uma casa atrás. Ele ficava sempre nessa casa atrás porque quando chegasse alguém procurando por ele, ele entrava no mato e sumia. A casa dele ficava numa curva. Pra pegar ele, não podia ir subindo, tinha que vir descendo, com motor desligado. Porque se fosse subir o rio ele ouvia o motor. Eu fiz um mapa de onde era a casa dele, e vim aqui arrumar a polícia pra ir lá buscar ele preso. Pra eu convencer a polícia de mandar duas pessoas comigo, foi difícil. Nós fretamos um avião daqui pra Feijó. Quando o avião levantou vôo o Jailson, da Polícia Federal, disse assim: nós não vamos pra Feijó. Pra onde nós vamos? Vamos pra Fazenda Califórnia. Aí o cara disse, não eu não vou. Volto daqui. Aí o Jailson puxou a pistola e disse: você vai. Praticamente seqüestramos o avião. Chegamos na Califórnia, desceram com metralhadora. Eles tinham um caminho, dentro da fazenda Califórnia, que podiam avisar a pé o Pedro Biló. Então eu tinha que pegar logo um barco, pra chegar primeiro. Aí eu falei pro gerente da fazenda: eu queria que tu me arrumasse, me alugasse um barco. E ele disse não, que tava precisando do barco. E o Jailson disse: pois eu estou requisitando o barco. Você vai até onde? Não interessa. Então deixamos pra descer à noite e acabamos pegando o Pedro Biló deitado na rede. Trouxemos ele até Feijó, depois trouxemos pra cá. Mas aí a Igreja ficou contra mim. O Pedro Biló era uma lenda aqui e eu ao invés de prender o mandante, estava prendendo o executor, um homem humilde. Mas ele confessou, foi instruído pelo advogado dele, que todos os assassinatos que ele tinha feito, tinha feito há 35 anos. Então os crimes já tinham prescrito. Embora o crime contra o índio não prescreva, e eu tentei caracterizar o crime de genocídio mas o juiz federal da época não aceitou e mandou soltar ele. Então eu fiz um pacto com seu Pedro Biló. Porque logicamente ele ia me matar. Aí eu pedi pra Polícia Federal me botar dentro da cela, junto com ele. Eu falei: eu sei que o senhor vai querer me matar, vamos fazer um acordo. Você que é um homem lendário, que tem mania de sumir, eu queria que o senhor sumisse pra que nós nunca mais nos cruzássemos. E ele sumiu realmente. Terminou morrendo lá em Manaus. Essa é a história do Pedro biló. Eu tive a infelicidade de conhecer, talvez, o último matador de índio profissional do Acre. Mas prendi ele.
O senhor enfrentou também o exército quando denunciou o general Bandeira de Melo...
Ele tentou fazer com que a Funai desse uma certidão negativa de não existência de índio na área do Purus. Eu o denunciei e fui demitido da Funai. Lá, a primeira coisa que faziam era me demitir. E esse general Smarth fazia uma cena para SNI, ele me demitia para dar satisfação mas eu efetivamente não saía. Ele dizia publicamente que era comunista, que estava demitido mas eu ficava trabalhando. Às vezes eu ficava um tempo no mato escondido, para ninguém me achar, depois eu aparecia.
Quanto tempo o senhor passou na Funai?
Trabalhei minha vida toda na Funai. Entrei em 67 e saí várias vezes. A última vez foi em 1983.
Houve um momento aqui, no Acre, que seu trabalho foi muito criticado. Diziam que o senhor defendia muito a Funai como instituição...
Olha, ainda hoje sou criticado. Os trabalhos que dão certo, as pessoas não gostam muito. As pessoas me criticavam achando que eu era muito chapa branca porque eu defendia a Funai que eu fazia. O Terri, um dia, num auditório lá no Rio de Janeiro disse "O Carvalho é o estado". E eu era o estado, eu não podia transferir a responsabilidade do que acontecia aqui pra outrem, a responsabilidade era minha. E como naquele tempo era ditadura, nós não tínhamos lei, a lei nós fazíamos. E qual era" Era enfrentar eles da mesma maneira que ele nos enfrentavam. E aí a Igreja começou a me criticar porque achava que eu era muito duro, era muito cruel com os inimigos dos índios. Eles tinham os planos deles, eu tinha os meus. Os deles, eles nunca fizeram nada. Não conheço nenhum trabalho feito pela Igreja aqui, a não ser o do padre Paolino que subia aquele rio com seu barquinho rezando uma missa aqui batizando acolá... Então não pode dizer que a Funai aqui foi uma desgraça, não foi. Não porque eu tenha sido a pessoa que estabeleceu a Funai, que criou a Funai aqui, mas pelo resultado hoje. Eu provei, eu e meus colegas de trabalho, que o nome Funai existe para oficializar uma ação indigenista e ela pode ser boa ou pode ser ruim. Hoje nós estávamos almoçando com o governador do Estado e com os índios. E aqui não tinha índio. E nós ouvimos o governador dizer que ele vai fazer um trabalho, que vai ser o maior trabalho dele porque o Acre é o lugar que tem o maior número de índios isolados do Brasil. Fico muito feliz porque quando eu disse que aqui tinha índio, disseram que eu estava pintando cearense de urucum.A Funai até hoje recebe críticas pela forma tutelar de lidar com os índios e existe uma discussão agora em relação à mudança no estatuto do índio.
Como o senhor avalia esse debate?
Eu quero explicar que aqui nós iniciamos uma Funai diferente. Aqui os índios sempre tiveram liberdade, nós não transplantamos a Funai tradicional pra cá, fizemos uma outra Funai. Mas acho que as pessoas hoje que pregam a Funai sem a tutela desconhecem os índios. Há índios que podem viver sem a tutela mas 90% dos índios ainda dependem da tutela. Por quê? Nós temos aqui mil índios isolados estimados, eles não sabem que existe a nossa sociedade, não sabem fazer um requerimento, não conhecem o nosso procedimento. Se ele vier na cidade sem tutela, ele não é ninguém. Eu acho que a tutela deveria ser também estendida não só aos índios mas aos trabalhadores que não têm conhecimento, os analfabetos. Essas pessoas são vítimas da estrutura do estado, da nossa sociedade. A tutela é para proteger, não confundir. Então essas pessoas que querem tirar rapidamente a tutela desconhecem os índios, desconhecem.
E o trabalho que vem sendo feito em Roraima?
Pra mim foi uma coisa histórica, também. Continuo vivendo momentos emocionantes. Pensei que depois que os cabelos começassem a cair, que a democracia surgisse, não voltasse a repetir o que aconteceu nos outros tempos. Lá aconteceu agora, há pouco tempo, uma coisa que eu não pensava mais. Eu fui preso de novo. E por quê? Fiz alguma briga no bar, dei algum cheque sem fundo? Não, fiquei do lado dos índios e tive minha prisão decretada por um juiz federal. Ele queria expulsar os índios de uma área dele e ele sabia que eu não ia aceitar isso. Então ele achou que a melhor medida era mandar me prender primeiro e depois fazer esse absurdo. E assim foi feito, eu fui preso, passei três dias preso e depois o Ministério Público entrou pra me defender e eu consegui sair da cadeia. Mas até o mês de julho agora, eu continuava ameaçado de prisão pelo mesmo juiz. E agora o Ministério Público entrou de novo com o arquivamento de processo - três processos. Mas eu continuou lá, com um trabalho de resgate da dignidade dos índios que viviam humilhados pelos fazendeiros e nós conseguimos recursos para tirar e indenizar os fazendeiros. Tem também o Programa Waimiri- Atroari, um projeto nosso de 25 anos. Nós já estamos com 12 anos e a Eletronorte financia porque ela inundou uma parte da terra dos índios e como forma compensatória ela acreditou num projeto que eu apresentei. E que esse projeto hoje pode ser considerado, sem querer jogar confete na minha cabeça, um sucesso. É um projeto completo que pretende dentro de 25 anos retornar os índios a independência que eles perdem quando têm contato.
Nesses 23 anos afastados do Acre, o senhor acompanhou a história do movimento indígena aqui?
Acompanhei e vejo com muito carinho os índios terem passado a participar desses movimentos indígenas. Infelizmente, as associações que eles criaram são modelos nossos. Eu acho que se fosse ao contrário, eles criando sua própria associação, seria mais legítimo. Mas quando eles vêm para cá e montam uma associação, eles ainda dependem ainda dos recursos de entidades exóginas.
E isso é errado?
Eles perdem a legitimidade, de certa maneira. Melhor seria se eles tivessem seus próprios recursos. "As pessoas me criticavam achando que eu era muito chapa branca porque eu defendia a Funai que eu fazia".
(*) Artigo originalmente publicado na versão on-line da revista cultural "Outras Palavras", Edição 7. "Outras Palavras" é, para mim, a melhor revista cultural já publicada no Acre. Quando apareceu eu não estava no Brasil. Vim tomar conhecimento dela cerca de um ano atrás. Se puder vou juntar todos os números publicados para fazer uma coleção encadernada.
Foto: Edson Caetano
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