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26 outubro 2007

LÍNGUAS INDÍGENAS AMEAÇADAS NO BRASIL*

Em 500 anos sobraram apenas 175 das 1.200 línguas indígenas que existiam no país antes da chegada dos portugueses. Das línguas sobreviventes, cerca de 50 são faladas por menos de 100 pessoas. Nos últimos oito anos morreram os últimos falantes de cinco línguas e em 2006 e 2007 morreram dois dos três últimos falantes da língua Xetá, no Estado do Paraná

Aryon Rodrigues**

Parte 2

Dobes, um projeto questionável de alta tecnologia

Há sete anos a Fundação Volkswagen da Alemanha concedeu apoio de cinco anos para a documentação de três línguas indígenas brasileiras dentro de seu programa para documentação de línguas ameaçadas, o programa Dobes (Dokumentation Bedrohter Sprachen), dando a cada um dos pesquisadores (um alemão, um italiano estabelecido no Brasil e um brasileiro) os recursos para o trabalho de campo e para documentação com alta qualidade de som e de imagem.

É curioso que as três línguas em questão são faladas no Parque Indígena do Xingu, que é justamente a área menos ameaçada no Brasil: as línguas Kuikúru, Awetí e Trumái, todas já em estudo anteriormente pelos mesmos pesquisadores, sendo que a última já tinha sido objeto de uma dissertação de mestrado feita no Brasil e uma tese de doutorado feita nos EUA pela mesma pesquisadora contemplada pelo Dobes.

Terminado o prazo de cinco anos em 2005, a comunidade científica brasileira ainda não tem conhecimento dos resultados daqueles projetos. Uma condição dos respectivos contratos, entretanto, é que todo o material gravado, fotografado e filmado deve ficar depositado no Instituto Max Planck de Psicolingüística em Nimega, na Holanda.

Mais recentemente, mais quatro línguas brasileiras foram incluídas no Dobes: o Kaxinawá, com cerca de 4.500 pessoas no Acre e mais 4.000 na área adjacente do Peru e que já foi há vários anos objeto da tese de doutorado da pesquisadora contemplada, feita na Universidade de Paris; o Mawé, que é também uma das línguas amazônicas com maior população (cerca de 7.000) e que, igualmente, já foi objeto de uma tese de doutorado (mas por outro pesquisador brasileiro, não consultado nem contemplado, embora continue cooperando com o mesmo povo e com apoio de instituições brasileiras e da Unesco); o Bakairí com perto de 1.000 falantes em Mato Grosso e o Kaxuyána no noroeste do Pará (com cerca de 70 falantes), estas três últimas línguas confiadas a um mesmo pesquisador, também brasileiro, mas residente e profissionalizado na Europa.

Uma condição da Fundação Volkswagen, que financia o Projeto Dobes, é que os pesquisadores estejam vinculados a instituições européias (com exceção de B. Franchetto, todos os que até agora foram apoiados pelo Dobes residem na Europa: R. Guirardello-Damian na Inglaterra, S. Drude na Alemanha, E. Camargo na França e S. Meira na Holanda).

A orientação expressa pelos mentores do Projeto Dobes é a de que o que importa é ter a melhor e mais extensa documentação possível, com os mais avançados recursos tecnológicos, de dados primários, que possam ficar preservados para futuras pesquisas não só lingüísticas, mas também de antropologia cognitiva, e cujos propósitos podem ir além do que a prática científica atual pode entrever.

Para a maioria dos lingüistas isso não é aceitável, pois é a análise progressiva dos dados, iniciada já em campo, que orienta a continuidade e as direções da documentação. Além disso, o Dobes privilegia trabalho de campo em equipes mistas (lingüista, antropólogo, cinegrafista, etc.), o que é impraticável nas pequenas comunidades sobreviventes na Amazônia.

O que se observa é que, no Brasil, o projeto Dobes não está sendo dirigido para as línguas criticamente ameaçadas de extinção mais próxima (as com menor número de falantes e de sociedades indígenas já desfeitas), mas sim para o acúmulo maciço de dados primários que poderão ser submetidos a análise no futuro, em centros europeus.

Este ano a Funai, que é um órgão subordinado ao Ministério da Justiça do Brasil, assinou um acordo com o Instituto Max Planck de Psicolingüística, instituição alemã com sede em Nimega, na Holanda, para instalar no Museu do Índio, mantido pela Funai e que não tem nenhum lingüista em seus quadros (como também não tem lingüistas nenhum outro setor da Funai), equipamento que torne aquele museu o repositório no Brasil de cópias dos dados de línguas brasileiras documentadas pelo Projeto Dobes e depositadas no Max Planck de Nimega.

Assim, a Funai promoveu seu Museu do Índio a agência do projeto Dobes no Brasil. Como já circula na Funai o rumor de uma reorganização administrativa que incluiria a extinção da Diretoria de Estudos e Pesquisas, responsável pela avaliação dos pedidos de autorização para pesquisa em terras indígenas, vislumbra-se o risco de as diretrizes do Projeto Dobes, de difícil aceitação pela maioria dos lingüistas e condicionadas à filiação a instituições européias, passarem a integrar os critérios da Funai para a autorização de pesquisa lingüística no Brasil.

A respeito do acordo entre a Funai e o Instituto Max Planck de Psicolingüística cabe observar, ainda, que o Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi induzido a expressar apoio ao mesmo, à revelia da maioria dos pesquisadores lingüistas daquela Universidade, como se depreende de denúncia publicada no Jornal da Ciência de 5/10/07, por pesquisadora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, unidade daquela Universidade.

Esta mesma denúncia registra a impropriedade de figurar no documento oficial do acordo o bolsista alemão Sebastian Drude como representante do Museu Paraense Emílio Goeldi, que é órgão do nosso Ministério da Ciência e Tecnologia.

Aliás, no mesmo documento assinado pelo Presidente da Funai e pelo Diretor Técnico do Instituto Max Planck de Psicolingüística, este mesmo bolsista alemão e a pesquisadora Bruna Franchetto, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, são mencionados como “representantes” de uma fictícia “Rede de Pesquisadores Envolvidos em Documentação de Línguas Indígenas no Brasil”.

Internacionalização da pesquisa lingüística na Amazônia

Independentemente do Dobes, também este ano, o Inpa e a Ufam aceitaram co-patrocinar com instituições européias uma série de encontros destinados à “internacionalização da pesquisa fonológica e gramatical” das línguas da Amazônia brasileira, sob o título “Amazonian languages, phonology and syntax”.

O primeiro encontro está marcado para 3 a 8 de dezembro de 2007, em Manaus, conforme anúncio publicado no boletim da organização norte-americana The Linguist List de 4/8/07 (http://linguistlist.org/issues/18/18-2327.html).

Enquanto os órgãos brasileiros de fomento à pós-graduação e à pesquisa consideram não prioritário o estudo científico das línguas indígenas, organizações internacionais apressam-se em reunir a documentação das línguas amazônicas em seus arquivos e promover a pesquisa delas em suas instituições.

Ainda na semana passada tivemos na Universidade de Brasília dois importantes encontros sobre as línguas indígenas brasileiras – o II Encontro Internacional sobre Línguas e Culturas dos Povos Tupí e o Workshop sobre Línguas Indígenas Ameaçadas: Estratégias de Preservação e de Revitalização.

Ambos tiveram participação ativa de especialistas da Europa e da América do Norte e de membros de comunidades indígenas brasileiras, assim como de pesquisadores brasileiros da Unicamp, da USP, da PUC-SP, da Unesp, da UFRJ, da UFMG, da UFUberlândia, da UFG, da UCG, da Ufal, da UFPE, da UFPA, da UEA, da UFRO, da UFRR, além da UnB.

O primeiro deles (1-3/10), como o seu antecedente há três anos, reuniu, aos especialistas em línguas indígenas, especialistas em antropologia, arqueologia e genética humana, de modo a propiciar uma interação necessária, mas incomum no Brasil.

O segundo focalizou, pela primeira vez no país, a situação das línguas indígenas ameaçadas ou já em processo de extinção e as medidas que vêm sendo tomadas, em várias áreas do país e principalmente na Amazônia, para enfrentar essa situação em seus diversos aspectos e diferentes graus de desenvolvimento.

Esses dois encontros só se tornaram possíveis graças ao apoio da FAP/DF para o pagamento de três passagens do exterior e outras três nacionais e as respectivas estadas, ao apoio de vários setores da UnB e à pertinácia de seus organizadores e de um grupo valoroso de estudantes de pós-graduação e de graduação.

O CNPq, ao qual fora em tempo hábil solicitado apoio financeiro, negou este por ter considerado não prioritários ambos os eventos. Mas, quase simultaneamente, considerou prioritário atribuir uma bolsa de pesquisador a um cidadão alemão que veio ao Brasil fazer política “científica” em favor do Projeto Dobes, do qual foi beneficiário por cinco anos. Qual o sentido dessa concessão?

Atenciosamente,

Aryon Dall’Igna Rodrigues, Dr. phil. (Hamburg)

Professor emérito de lingüística, UnB; membro honorário da Linguistic Society of America e da Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas; presidente da Associação Brasileira para o Estudo das Línguas Indígenas.

Referências:

Rodrigues, A. D. 1993a. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. DELTA 9.1:83-103. São Paulo.

_____. 1993b. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. Ciência Hoje 95:20-26. Rio de Janeiro.

_____. 2005. Sobre as línguas indígenas e sua pesquisa no Brasil. Ciência e Cultura 57.2:35-38.

_____. 2006. As línguas indígenas no Brasil. In: B. Ricardo e F. Ricardo (eds.), Povos Indígenas do Brasil 2001/2005, págs. 59-63. São Paulo: Instituto Socioambiental.

Clique aqui para ler a Parte 1 desta matéria

*Texto originalmente publicado no Jornal da Ciência Hoje como parte de uma carta do autor ao Ministro da Ciência e Tecnologia denunciando a falta de controle e de investimentos na realização de estudos da linguagem indígena no Brasil. O link para a carta nos foi enviado pelo professor Alceu Ranzi.

**Aryon Rodrigues é o mais renomado pesquisador e conhecedor das Línguas Indígenas no Brasil. Possui trabalhos publicados desde o início da década de 1940 e é o principal pesquisador e responsável pela sistematização de conhecimentos acerca de classificação genética das línguas brasileiras, sobretudo do Tronco tupi.

Crédito da imagem: Instituto Socioambiental