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08 janeiro 2008

O FUTURO ROUBADO

Como exemplo de distorção federativa, podemos citar o Acre e o Amapá, que disponibilizam os maiores recursos do Brasil para a educação do ensino fundamental, mas deixam 15% e 7%, respectivamente, das crianças com 7 a 14 anos de idade fora da escola

Renaldo A. Gonçalves

Se um estrangeiro comparar o artigo 211 da Constituição brasileira, que trata do regime de colaboração entre os entes federados para o desenvolvimento do ensino, com a prática dos nossos governantes, só há duas conclusões possíveis: ou o texto escrito na lei está errado ou os governantes desconhecem a Constituição. O exemplo desta contradição está na declaração do Ministério da Educação culpando um Estado governado pela oposição para explicar o mau desempenho do Brasil no exame do Pisa. O senador José Sarney, no artigo Nós e os macacos (JB, 7/12), apontou também a mesma direção, afirmando: "O que nos faz mais preocupados é o fato de São Paulo, Estado mais rico do País, apresentar índices baixos, o que exclui um vínculo entre pobreza e baixo índice educacional."

O hábito de "culpar" o outro e desconhecer a realidade nacional é o procedimento comum das nossas autoridades. Este costume pode ser chamado de "responsabilidade difusa", pois permite ao governante nunca se comprometer com os afazeres da sua alçada.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é mais um exemplo de responsabilidade difusa quando diz que os municípios devem oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas e, com prioridade, o ensino fundamental (o grifo é meu). A prioridade definida na lei, quando contrastada com os censos de 2005 e 2006, revela que, dos 5.564 municípios brasileiros, 57,28% não têm sistema próprio de ensino, 32,42% não têm Conselho Municipal de Educação e 69% não têm Plano Municipal de Educação.

Os censos escolares revelam que a prioridade do ensino fundamental, para nossos governantes, é muito relativa. Há 163 mil escolas de ensino fundamental no País e, destas, cerca de 66% não têm biblioteca ou sala de leitura, 16% operam sem energia elétrica, 6,5% não têm esgoto, 7% não têm sanitários para professores e alunos e 2,5% não têm água; estas são majoritariamente municipais, localizam-se na maioria das vezes na zona rural e, preferencialmente, nas Regiões Norte e Nordeste.

Pode-se estimar que 4 milhões a 13 milhões de alunos do ensino fundamental não têm acesso à infra-estrutura básica citada acima. Não trataremos de outros fatores críticos, como a escolaridade dos docentes, a ausência de recursos pedagógicos ou a existência de escolas multisseriadas - uma única sala de aula para atender a várias séries -, esses elementos piorariam o mapa da exclusão escolar.

O analfabetismo e a pobreza transgeracional, transmitida de pai para filho, existentes no Estado de origem de Sarney e no Amapá, que ele representa no Senado, são exemplos vivos de que há forte relação entre pobreza e baixo índice educacional.

Que autoridade poderá responder pelos descalabros apontados nos censos das escolas públicas brasileiras? Talvez não haja no Brasil autoridade que possa interessar-se pela construção de um sistema de escolas públicas com infra-estrutura de boa qualidade, que reverta o retrato apresentado. Para isso ocorrer seria necessário mudar a LDB, explicitando que o ensino fundamental é papel exclusivo dos municípios - teria, finalmente, um responsável. Estes, por sua vez, deveriam contar com recursos financeiros dos Estados e da União, para priorizar a equalização da infra-estrutura e os ambientes de suas escolas. Seria preciso também estabelecer um novo formato de financiamento federativo, impor limites ao uso eleitoral da educação e tornar efetiva a cooperação disseminada no artigo 211 da Constituição.

Estas são as condições mínimas para desenvolver um pacto pela educação, fazer uma ação coordenada pelo Estado por uma escola pública de melhor qualidade.

Quanto aos recursos financeiros, podemos afirmar que nossos prefeitos, governadores e o presidente não se podem queixar de falta de dinheiro, pois há aproximadamente R$ 120 bilhões disponíveis para a educação, além do que a população entrega, docilmente, 40% da riqueza do País aos governantes.

Os recursos obtidos da sociedade são divididos entre os entes federados via Fundos de Participação, não havendo nenhum esforço dos políticos para captá-los, nenhum ônus, nenhum desgaste. Nunca vimos ou veremos um prefeito ou governador nos palanques, TVs ou rádios pedindo dinheiro aos contribuintes.

Os prefeitos brigam com o IBGE por "errar" o censo 2007 (Estado, 22/10) e com isso reduzir as transferências do Fundo de Participação dos Municípios. É assim que se ganha o dinheiro do contribuinte na Federação e o mais grave é que não há ligação imediata entre o dinheiro pago em tributos e sua aplicação.

Nossos governantes desfrutam um conforto institucional que não guarda relação alguma com a realidade do Brasil: gastam o dinheiro que não é deles com total liberdade, têm pouca cobrança de coerência ou de qualidade nos gastos e são fiscalizados esporadicamente.

O federalismo que construímos é exótico. Se analisado da perspectiva da arrecadação, é igual a um país unitarista, mas, pelo lado dos gastos, temos uma Federação com liberdade ilimitada, nos três níveis de poder.

Como exemplo de distorção federativa, podemos citar o Acre e o Amapá, que disponibilizam os maiores recursos do Brasil para a educação do ensino fundamental, mas deixam 15% e 7%, respectivamente, das crianças com 7 a 14 anos de idade fora da escola.

É necessário avançar para uma nova escola que, em perspectiva democrática, amplie a escolaridade da população, mas não dependa da riqueza da região, Estado ou município onde o indivíduo reside, e sim da gestão integrada dos recursos totais de que o País dispõe para aplicar.

Mudar o rumo da educação, corrigindo as desigualdades existentes nas escolas públicas do País, é crucial para solidificar uma sociedade plural e com desenvolvimento econômico sustentável que desejamos. De outra maneira continuaremos sendo o país do futuro, que sempre será roubado por nossos políticos.

Renaldo A. Gonçalves, mestre em Economia e doutor em Ciências Políticas, é professor da FEA da PUC-SP