AMAZÔNIA COBIÇADA
A cobiça que mais se deve temer
Luiz Weis
As últimas palavras do que viria a ser o último discurso do senador amazonense Jefferson Péres, uma semana atrás, foram talvez o que de mais lúcido se ouviu de uma figura pública brasileira em resposta ao novo surto de manifestações desatinadas no exterior sobre o compartilhamento da proteção da Amazônia, no combate à crise climática global. A saída da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, derrotada na defesa do ecossistema amazônico, deu gás ao disparate de que a região é “importante demais para ser deixada aos brasileiros”, na patada do diário londrino The Independent.
Velha como as árvores, a alegação permitiu que a fronda da motosserra - que reúne os devastadores da maior floresta tropical do mundo, seus influentes parceiros no governo e os ideólogos do desenvolvimento a todo custo - partisse para desqualificar as fundamentadas inquietações dos ecologistas com o impacto do desmatamento incontido para a piora do clima da Terra (e a ruína ambiental de mais da metade do território brasileiro). Ahá, contra-atacou a tigrada, envolta em verde-amarelo: com essa conversa de ajudar a preservar a natureza, o que eles querem é tomar os recursos naturais do País.
Jefferson Péres deu-lhes o troco na medida exata. “Não tenho tanto medo da cobiça internacional sobre a Amazônia”, ponderou da tribuna a que tantas vezes subira para denunciar a indecência de políticos e governantes. “Tenho medo da cobiça nacional sobre a Amazônia, da ação de madeireiros, de pecuaristas e de outros que podem provocar o holocausto ecológico naquela região.” É disso, rigorosamente, que se trata. Se existe algo em torno do qual governo, oposição e sociedade fecham questão, no Brasil de hoje, é a premissa da absoluta autonomia brasileira diante do problema amazônico - já não bastasse a falta de credenciais do críticos do País para dar lições de moral ambiental.
E quanto mais se falar lá fora em compartilhamento de responsabilidades pela exploração sustentável da área, mais forte será aqui a reação de invocar o princípio da soberania nacional. Nem poderia ser de outra forma - a nação que não afirma a autoridade sobre o que é seu praticamente pede para perdê-lo, mais dia, menos dia. Mas, do ponto de vista do que é imperativo fazer correndo, a fim de amenizar a virada climática, o conceito puro e duro de soberania representa uma barreira insuperável.
É evidente que não há forma concebível de enfrentar o cataclisma ambiental que ameaça a humanidade - a começar da parcela da humanidade mais pobre e, portanto, mais vulnerável a suas conseqüências - sem a adoção de políticas supranacionais que, para não ficarem confinadas ao papel, em alguma medida devem pressupor uma abdicação consentida de soberania dos países participantes. Claro que isso parece um irrealismo cavalar quando se tem em conta que a potência superpoluidora, os Estados Unidos, nem sequer consentiu em aderir a um programa ainda aquém do necessário para controlar a tempo as emissões dos gases estufa, o (combalido) Protocolo de Kyoto.
O que demonstra, de toda maneira, que o exercício da soberania, no sentido ortodoxo desse conceito derivado da divisão do mundo em Estados-nações, é um anacronismo na luta para minorar os efeitos do aquecimento global engendrado pela queima em escala crescente de combustíveis fósseis. (“Perder de pouco” é tudo a que se pode aspirar.) E até onde a vista alcança não há quem possa com a soberania a serviço do empurra-empurra, entre os países, de responsabilidades pelo que já está aí - e vai ficar pior. O que emergidos e emergentes exigem, principalmente os mais capazes de blindar a sua soberania, é em última análise o direito de poluir. Mantendo, num caso, ou reproduzindo, no outro - e aqui a China puxa o cordão -, padrões suicidas de uso de energia.
E pensar que nessa frente o Brasil deu um senhor passo atrás. Na segunda-feira da semana passada, nesta página, o físico e ex-ministro José Goldemberg, da Universidade de São Paulo, comentou um “interessante documento”, de autoria do diplomata Everton Vieira Vargas, intitulado Mudança do Clima na Perspectiva do Brasil. Com o risco de maçar quem tiver lido o artigo do cientista, vale insistir no que ele destacou. “O argumento básico do embaixador”, apontou Goldemberg, “é o de que os países em desenvolvimento não devem aceitar nenhuma limitação às suas emissões (de gases estufa), tendo em vista que as ‘emissões históricas’ desses países são pequenas.” Ou seja, por terem poluído relativamente pouco enquanto os outros já poluíam muito, podem poluir mais.
Essa doutrina, em que parece se basear a nova política brasileira para o clima, marca uma guinada em relação à década anterior. Goldemberg lembra que, ao sediar a Rio-92, a primeira grande conferência promovida pela ONU para tratar do aquecimento global, e ao se destacar na formulação do Protocolo de Kyoto, em 1997, o País tinha uma posição “proativa”. Quer dizer: estava engajado na busca de soluções necessariamente supranacionais para um problema supranacional de proporções inéditas. Depois, o Brasil adotou uma posição “reativa”. Defende um estado de coisas que, na prática, ressalta o professor, “só beneficia os Estados Unidos e a China” - o que não deixa de ser uma triste ironia.
Em maio de 1991, observou-se neste espaço que a soberania em estado bruto, somada à tolerância - quando não ao apoio - dos governos a um modelo fadado a provocar catástrofes que desconhecem divisões geográficas, ata as iniciativas que procuram deter os níveis de envenenamento ambiental. À época, enquanto corriam os preparativos para a Rio-92, a esperança estava numa terceira via entre “a omissão indesejável e a coação impossível”: o aproveitamento dos vastos espaços abertos à criatividade política internacional em defesa da Terra. Passados 17 anos, a esperança definha a olhos vistos.
Luiz Weis é jornalista. Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 28/05/2008.
Luiz Weis
As últimas palavras do que viria a ser o último discurso do senador amazonense Jefferson Péres, uma semana atrás, foram talvez o que de mais lúcido se ouviu de uma figura pública brasileira em resposta ao novo surto de manifestações desatinadas no exterior sobre o compartilhamento da proteção da Amazônia, no combate à crise climática global. A saída da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, derrotada na defesa do ecossistema amazônico, deu gás ao disparate de que a região é “importante demais para ser deixada aos brasileiros”, na patada do diário londrino The Independent.
Velha como as árvores, a alegação permitiu que a fronda da motosserra - que reúne os devastadores da maior floresta tropical do mundo, seus influentes parceiros no governo e os ideólogos do desenvolvimento a todo custo - partisse para desqualificar as fundamentadas inquietações dos ecologistas com o impacto do desmatamento incontido para a piora do clima da Terra (e a ruína ambiental de mais da metade do território brasileiro). Ahá, contra-atacou a tigrada, envolta em verde-amarelo: com essa conversa de ajudar a preservar a natureza, o que eles querem é tomar os recursos naturais do País.
Jefferson Péres deu-lhes o troco na medida exata. “Não tenho tanto medo da cobiça internacional sobre a Amazônia”, ponderou da tribuna a que tantas vezes subira para denunciar a indecência de políticos e governantes. “Tenho medo da cobiça nacional sobre a Amazônia, da ação de madeireiros, de pecuaristas e de outros que podem provocar o holocausto ecológico naquela região.” É disso, rigorosamente, que se trata. Se existe algo em torno do qual governo, oposição e sociedade fecham questão, no Brasil de hoje, é a premissa da absoluta autonomia brasileira diante do problema amazônico - já não bastasse a falta de credenciais do críticos do País para dar lições de moral ambiental.
E quanto mais se falar lá fora em compartilhamento de responsabilidades pela exploração sustentável da área, mais forte será aqui a reação de invocar o princípio da soberania nacional. Nem poderia ser de outra forma - a nação que não afirma a autoridade sobre o que é seu praticamente pede para perdê-lo, mais dia, menos dia. Mas, do ponto de vista do que é imperativo fazer correndo, a fim de amenizar a virada climática, o conceito puro e duro de soberania representa uma barreira insuperável.
É evidente que não há forma concebível de enfrentar o cataclisma ambiental que ameaça a humanidade - a começar da parcela da humanidade mais pobre e, portanto, mais vulnerável a suas conseqüências - sem a adoção de políticas supranacionais que, para não ficarem confinadas ao papel, em alguma medida devem pressupor uma abdicação consentida de soberania dos países participantes. Claro que isso parece um irrealismo cavalar quando se tem em conta que a potência superpoluidora, os Estados Unidos, nem sequer consentiu em aderir a um programa ainda aquém do necessário para controlar a tempo as emissões dos gases estufa, o (combalido) Protocolo de Kyoto.
O que demonstra, de toda maneira, que o exercício da soberania, no sentido ortodoxo desse conceito derivado da divisão do mundo em Estados-nações, é um anacronismo na luta para minorar os efeitos do aquecimento global engendrado pela queima em escala crescente de combustíveis fósseis. (“Perder de pouco” é tudo a que se pode aspirar.) E até onde a vista alcança não há quem possa com a soberania a serviço do empurra-empurra, entre os países, de responsabilidades pelo que já está aí - e vai ficar pior. O que emergidos e emergentes exigem, principalmente os mais capazes de blindar a sua soberania, é em última análise o direito de poluir. Mantendo, num caso, ou reproduzindo, no outro - e aqui a China puxa o cordão -, padrões suicidas de uso de energia.
E pensar que nessa frente o Brasil deu um senhor passo atrás. Na segunda-feira da semana passada, nesta página, o físico e ex-ministro José Goldemberg, da Universidade de São Paulo, comentou um “interessante documento”, de autoria do diplomata Everton Vieira Vargas, intitulado Mudança do Clima na Perspectiva do Brasil. Com o risco de maçar quem tiver lido o artigo do cientista, vale insistir no que ele destacou. “O argumento básico do embaixador”, apontou Goldemberg, “é o de que os países em desenvolvimento não devem aceitar nenhuma limitação às suas emissões (de gases estufa), tendo em vista que as ‘emissões históricas’ desses países são pequenas.” Ou seja, por terem poluído relativamente pouco enquanto os outros já poluíam muito, podem poluir mais.
Essa doutrina, em que parece se basear a nova política brasileira para o clima, marca uma guinada em relação à década anterior. Goldemberg lembra que, ao sediar a Rio-92, a primeira grande conferência promovida pela ONU para tratar do aquecimento global, e ao se destacar na formulação do Protocolo de Kyoto, em 1997, o País tinha uma posição “proativa”. Quer dizer: estava engajado na busca de soluções necessariamente supranacionais para um problema supranacional de proporções inéditas. Depois, o Brasil adotou uma posição “reativa”. Defende um estado de coisas que, na prática, ressalta o professor, “só beneficia os Estados Unidos e a China” - o que não deixa de ser uma triste ironia.
Em maio de 1991, observou-se neste espaço que a soberania em estado bruto, somada à tolerância - quando não ao apoio - dos governos a um modelo fadado a provocar catástrofes que desconhecem divisões geográficas, ata as iniciativas que procuram deter os níveis de envenenamento ambiental. À época, enquanto corriam os preparativos para a Rio-92, a esperança estava numa terceira via entre “a omissão indesejável e a coação impossível”: o aproveitamento dos vastos espaços abertos à criatividade política internacional em defesa da Terra. Passados 17 anos, a esperança definha a olhos vistos.
Luiz Weis é jornalista. Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 28/05/2008.
1 Comments:
Óbviamente, corretíssima a fala do sábio e guerreiro Jefferson Peres.
Temos mais o que temer dos próprios brasileiros em relação à Amazônia do que dos estrangeiros.
O interesse estrangeiro na Amazônia é a exploração da biodiversidade e não a devastação. Nesta questão, é a soberania brasileira que se discute. Nós, somo donos da Amazônia, por ela estar em nosso território, ninguém a não ser os brasileiros podem ter soberania sobre ela.
Sem dúvida alguma, há riquezas inestimáveis na Amazônia e deveria ser explorada, essa riqueza, pelos brasileiros, mas como somos um país que exporta matérias primas e não produtos, o que acontece é apenas a devastação, pela sanha malévola dos derrubadores de árvores, que diga-se de passagem, não foram eles que plantaram.
Só quem é da Amazônia, compreende estas coisas, com um Ministro do Meio Ambiente carioca, não sei não...
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