ULTA-SOM NA GRAVIDEZ: LAZER, ESPETÁCULO OU OBJETO DE CONSUMO?
Artigo aborda ‘verdades’ formadas a partir de exames de ultra-som durante a gravidez
Renata Moehlecke
Agência Fiocruz de Notícias
A ultra-sonografia obstétrica tem como razão de ser o diagnóstico pré-natal, mas, recentemente, no Brasil, a observação do feto vem progressivamente se transformando em uma modalidade de lazer, espetáculo e objeto de consumo. “Essa transformação do sentido do exame detém papel importante na reconfiguração simultânea das percepções sobre gravidez e feto, além de articular a outras questões que transcendem muito o campo médico obstétrico”: é o que explica a médica Lilian Krakowski Chazan, em artigo publicado na última edição da revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, da Fiocruz. Em seu trabalho, a pesquisadora avalia a produção de “verdades” construídas durante análises de ultra-som, com base nas crenças acerca da objetividade da imagem técnica apresentada.
Segundo a autora, chegava a ser surpreendente o clima alegre que ocorria na maioria das sessões e quão poucas vezes era mencionada de maneira clara a possibilidade de haver problemas (Foto: Jupiter Images)
Para o estudo, Lilian observou consultas em três clínicas privadas de ultra-sonografia no Rio de Janeiro durante 2003. “A criatividade com que gestantes, acompanhantes e parceiros se apropriavam e interpretavam as informações médicas, ‘objetivas’, produzidas pela aparelhagem e interpretadas pelos profissionais constitui um exemplo claro da dinâmica com que se estabelece e consolida a produção de verdades medicalizantes sobre a gestação e o feto”, comenta a pesquisadora. “Longe de ser um processo ‘de cima para baixo’, ou uma ‘imposição’ da tecnologia sobre as vivências ‘naturais’ da gravidez, que ocorre é no universo etnografado é que, ao atribuir os significados curiosos e inusitados às imagens esfumaçadas e cinzentas que passam rapidamente na tela do monitor, os atores – inclusive os médicos, em uma inflexão interessante – subjetivam as manchas e transformam-nas em algo bastante diferente do propósito original”.
De acordo com a estudiosa, como os exames ultra-sonográficos têm como princípio básico o monitoramento e a vigilância da saúde da gestante e do feto, a tecnologia empregada transmite aos participantes a noção de que ali se produzirão verdades incontestáveis e médicas. No entanto, a situação constituída é híbrida, ou seja, a objetividade dos dados apresentados depende da interpretação pessoal do técnico que está fazendo a análise. “O peso e o tamanho do feto, embora bastante objetivos em sua essência, eram na maior parte das vezes motivo de comentários, freqüentemente com conotação valorativa, acerca da normalidade ou não do desenvolvimento fetal”, esclarece Lilian. A avaliação do profissional, a partir daí, é rapidamente apropriada e transformada em uma nova fonte de produção se verdades, só que agora não-médicas. “Meninos deveriam ser fortes e bem desenvolvidos e meninas, pequenas e delicadas”, por exemplo.
Lilian ainda aponta que a tecnologia também pode desenvolver ansiedades, mas que esse sentimento, em geral, não é o mais observado. Por ser a consulta um processo avaliativo, a gravidez pode ser vista como perigosa, potencialmente patológica, tornando a ciência uma forma de prevenção e proteção contra os males naturais. No entanto, a pesquisadora afirma: “chegava a ser de certo modo surpreendente o clima alegre que ocorria na maioria das sessões e quão poucas vezes era mencionada de maneira clara a possibilidade de haver problemas. As perguntas ‘está tudo bem?’ ou ‘é normal?’ eram freqüentemente formuladas pelas gestantes em tom casual, como se a única resposta possível fosse a positiva”.
O espetáculo do exame fica então por parte dessa positividade e das verdades não-médicas declaradas durante a consulta. “A produção do ‘prazer de ver’ as imagens fetais é uma das resultantes de toda essa articulação, que, por seu turno, ativa a demanda de exames por parte das gestantes, o que gera um ciclo de realimentação”, conclui a estudiosa. “A apropriação, por assim dizer, lúdica do exame, assim como a atribuição de significados insólitos a partir das imagens fetais, e mesmo das próprias ‘verdades’ médicas resultam em uma instigação ao consumo da ultra-sonografia e, conseqüentemente, em um reforço da medicalização que se encontra implícita no uso do ultra-som na gravidez”.
Renata Moehlecke
Agência Fiocruz de Notícias
A ultra-sonografia obstétrica tem como razão de ser o diagnóstico pré-natal, mas, recentemente, no Brasil, a observação do feto vem progressivamente se transformando em uma modalidade de lazer, espetáculo e objeto de consumo. “Essa transformação do sentido do exame detém papel importante na reconfiguração simultânea das percepções sobre gravidez e feto, além de articular a outras questões que transcendem muito o campo médico obstétrico”: é o que explica a médica Lilian Krakowski Chazan, em artigo publicado na última edição da revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, da Fiocruz. Em seu trabalho, a pesquisadora avalia a produção de “verdades” construídas durante análises de ultra-som, com base nas crenças acerca da objetividade da imagem técnica apresentada.
Segundo a autora, chegava a ser surpreendente o clima alegre que ocorria na maioria das sessões e quão poucas vezes era mencionada de maneira clara a possibilidade de haver problemas (Foto: Jupiter Images)
Para o estudo, Lilian observou consultas em três clínicas privadas de ultra-sonografia no Rio de Janeiro durante 2003. “A criatividade com que gestantes, acompanhantes e parceiros se apropriavam e interpretavam as informações médicas, ‘objetivas’, produzidas pela aparelhagem e interpretadas pelos profissionais constitui um exemplo claro da dinâmica com que se estabelece e consolida a produção de verdades medicalizantes sobre a gestação e o feto”, comenta a pesquisadora. “Longe de ser um processo ‘de cima para baixo’, ou uma ‘imposição’ da tecnologia sobre as vivências ‘naturais’ da gravidez, que ocorre é no universo etnografado é que, ao atribuir os significados curiosos e inusitados às imagens esfumaçadas e cinzentas que passam rapidamente na tela do monitor, os atores – inclusive os médicos, em uma inflexão interessante – subjetivam as manchas e transformam-nas em algo bastante diferente do propósito original”.
De acordo com a estudiosa, como os exames ultra-sonográficos têm como princípio básico o monitoramento e a vigilância da saúde da gestante e do feto, a tecnologia empregada transmite aos participantes a noção de que ali se produzirão verdades incontestáveis e médicas. No entanto, a situação constituída é híbrida, ou seja, a objetividade dos dados apresentados depende da interpretação pessoal do técnico que está fazendo a análise. “O peso e o tamanho do feto, embora bastante objetivos em sua essência, eram na maior parte das vezes motivo de comentários, freqüentemente com conotação valorativa, acerca da normalidade ou não do desenvolvimento fetal”, esclarece Lilian. A avaliação do profissional, a partir daí, é rapidamente apropriada e transformada em uma nova fonte de produção se verdades, só que agora não-médicas. “Meninos deveriam ser fortes e bem desenvolvidos e meninas, pequenas e delicadas”, por exemplo.
Lilian ainda aponta que a tecnologia também pode desenvolver ansiedades, mas que esse sentimento, em geral, não é o mais observado. Por ser a consulta um processo avaliativo, a gravidez pode ser vista como perigosa, potencialmente patológica, tornando a ciência uma forma de prevenção e proteção contra os males naturais. No entanto, a pesquisadora afirma: “chegava a ser de certo modo surpreendente o clima alegre que ocorria na maioria das sessões e quão poucas vezes era mencionada de maneira clara a possibilidade de haver problemas. As perguntas ‘está tudo bem?’ ou ‘é normal?’ eram freqüentemente formuladas pelas gestantes em tom casual, como se a única resposta possível fosse a positiva”.
O espetáculo do exame fica então por parte dessa positividade e das verdades não-médicas declaradas durante a consulta. “A produção do ‘prazer de ver’ as imagens fetais é uma das resultantes de toda essa articulação, que, por seu turno, ativa a demanda de exames por parte das gestantes, o que gera um ciclo de realimentação”, conclui a estudiosa. “A apropriação, por assim dizer, lúdica do exame, assim como a atribuição de significados insólitos a partir das imagens fetais, e mesmo das próprias ‘verdades’ médicas resultam em uma instigação ao consumo da ultra-sonografia e, conseqüentemente, em um reforço da medicalização que se encontra implícita no uso do ultra-som na gravidez”.
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