BULA MODERNA
O papa Alexandre VI editou a 'bula' Inter Coetera para doar as novas terras descobertas 100 léguas 'a oeste de Cabo Verde' à Espanha, mostrando que a bula é um exemplo clássico da arbitrariedade com que pessoas determinam coisas. A sanção do projeto que unifica os fusos horários nos estados 'a oeste de Brasília' pelo Presidente Lua é o perfeito exemplo de 'bula moderna'
O papa Alexandre VI nasceu em Valência. Embora naquela época ainda não existisse um país chamado Espanha, mas sim a união dos reinos de Castela e Leão e Aragão, o espírito nacionalista espanhol devia estar presente quando o papa deliberou, na famosa bula Inter Coetera, que todas as terras novas descobertas ou a descobrir a 100 léguas ao ocidente de Cabo Verde pertenceriam aos seus monarcas, "ilustres filhos caríssimos em Cristo".
A bula é um exemplo clássico da arbitrariedade com que pessoas determinam coisas. Doando terras "não cristãs" descobertas ou a descobrir para um determinado país, o papa ignorou a existência dos direitos de outros povos, ignorou fatos geográficos e a ambição dos outros países europeus envolvidos nas grandes navegações. Cedeu simplesmente aos interesses econômicos mercantilistas de Portugal e Espanha, que depois acertaram o limite exato da cerca nos tratados de Tordesilhas e de Saragossa. Mas arbitrários como a bula antecessora, foram solenemente ignorados pelos outros países, mormente França, Holanda e Inglaterra.
Pois uma bula moderna foi gerada no nosso congresso e agora sancionada pelo presidente da república. Trata-se da lei que unifica os fusos horários nos estados a oeste de Brasília, incluindo aí toda a imensa região norte. Resultado disso é que os acreanos passarão a ter, grosso modo, o meio-dia real a uma hora da tarde. Efeito oposto ao dos estados do extremo nordeste, como Paraíba e Pernambuco, que têm o meio-dia aparente às onze horas da manhã, por usarem o mesmo horário da capital federal.
O problema pode não parecer tão grave, já que horários são uma convenção humana. Mas é, devido à sua real motivação. Essa lei foi fecundada e gestada pelos executivos dos meios de comunicação teletransmitida, digam-se, das emissoras de rádio e televisão. Com o dever de adequar a grade de programação aos critérios de faixa horária e de faixa etária do público, as grandes redes de comunicação do país descobriram que é mais econômico mudar os fusos horários do que flexibilizar o que (e quando) as suas afiliadas replicam pelos cantões do Brasil. Assim, elas podem manter uma programação homogeneizada, monolítica, sem gastos adicionais. Economia para os grandes conglomerados, desconsideração às pessoas.
A divisão do mundo em fusos horários é uma convenção, mas traduz uma lógica: se uma localidade pertence a um determinado fuso, significa que seu horário real está mais próximo ao horário real do meridiano central daquele fuso do que de qualquer outro. No Brasil, essa regra vale cada vez menos. Crianças paraibanas e acreanas desconfiarão dos seus livros de geografia quando perceberem suas sombras estranhamente alongadas em pleno meio-dia.
* Texto originalmente publicado no Blog Verbatim em 24/04/2008.
O papa Alexandre VI nasceu em Valência. Embora naquela época ainda não existisse um país chamado Espanha, mas sim a união dos reinos de Castela e Leão e Aragão, o espírito nacionalista espanhol devia estar presente quando o papa deliberou, na famosa bula Inter Coetera, que todas as terras novas descobertas ou a descobrir a 100 léguas ao ocidente de Cabo Verde pertenceriam aos seus monarcas, "ilustres filhos caríssimos em Cristo".
A bula é um exemplo clássico da arbitrariedade com que pessoas determinam coisas. Doando terras "não cristãs" descobertas ou a descobrir para um determinado país, o papa ignorou a existência dos direitos de outros povos, ignorou fatos geográficos e a ambição dos outros países europeus envolvidos nas grandes navegações. Cedeu simplesmente aos interesses econômicos mercantilistas de Portugal e Espanha, que depois acertaram o limite exato da cerca nos tratados de Tordesilhas e de Saragossa. Mas arbitrários como a bula antecessora, foram solenemente ignorados pelos outros países, mormente França, Holanda e Inglaterra.
Pois uma bula moderna foi gerada no nosso congresso e agora sancionada pelo presidente da república. Trata-se da lei que unifica os fusos horários nos estados a oeste de Brasília, incluindo aí toda a imensa região norte. Resultado disso é que os acreanos passarão a ter, grosso modo, o meio-dia real a uma hora da tarde. Efeito oposto ao dos estados do extremo nordeste, como Paraíba e Pernambuco, que têm o meio-dia aparente às onze horas da manhã, por usarem o mesmo horário da capital federal.
O problema pode não parecer tão grave, já que horários são uma convenção humana. Mas é, devido à sua real motivação. Essa lei foi fecundada e gestada pelos executivos dos meios de comunicação teletransmitida, digam-se, das emissoras de rádio e televisão. Com o dever de adequar a grade de programação aos critérios de faixa horária e de faixa etária do público, as grandes redes de comunicação do país descobriram que é mais econômico mudar os fusos horários do que flexibilizar o que (e quando) as suas afiliadas replicam pelos cantões do Brasil. Assim, elas podem manter uma programação homogeneizada, monolítica, sem gastos adicionais. Economia para os grandes conglomerados, desconsideração às pessoas.
A divisão do mundo em fusos horários é uma convenção, mas traduz uma lógica: se uma localidade pertence a um determinado fuso, significa que seu horário real está mais próximo ao horário real do meridiano central daquele fuso do que de qualquer outro. No Brasil, essa regra vale cada vez menos. Crianças paraibanas e acreanas desconfiarão dos seus livros de geografia quando perceberem suas sombras estranhamente alongadas em pleno meio-dia.
* Texto originalmente publicado no Blog Verbatim em 24/04/2008.
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