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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

29 outubro 2008

NOVO FUSO HORÁRIO DO ACRE

Que não nos ouçam*

Antonio Alves
Editor do Blog 'O Espírito da Coisa'

Ainda essa coisa do horário. Vou insistir nesse assunto pra colocar uns pingos e pontos nos lugares certos. Começo com uma conversa mansa, assim como quem não quer nada, um papo de índio, mas depois chegarei às políticas. Acompanhem.

No encontro indígena recentemente realizado na terra dos Puyanawa, a primeira desarrumação na programação oficial foi por causa do horário. O quinto Encontro de Cultura, que deveria ser importante, estava espremido e encaixado nos intervalos dos primeiros Jogos da Celebração. Tudo bem, afinal os jogos também fazem parte da Cultura, embora sem toda aquela estrutura mental olímpica e sem a organização industrial dos “cariús” (palavra kaxinawá para designar os não-índios). Vai daí que a coisa sempre acaba sendo do jeito que é pra ser.

Pra começar, a maioria das aldeias não aderiu à mudança no horário oficial e logo no primeiro dia os técnicos do governo tiveram que ficar uma hora esperando pelos atletas. Depois surgiram os contratempos naturais: chuva, calor, barriga cheia depois do almoço, sono depois de uma noite de pajelança, essas coisas. Ainda teve a costumeira epidemia de diarréia, o consumo exagerado do rapé, uma caiçuma muito fermentada e o alvoroço hormonal da juventude ali reunida. Resultado: o horário predominante ficou sendo o velho tempo amazônico que não tem medida nem nunca terá.

O tempo no Aquiry “vareia” muito, mas dá pra observar alguns horários básicos, mais ou menos consensuais. Uma das possibilidades é dividir o dia em onze horas, a saber: manhãzinha, manhã, antes do almoço, almoço, depois do almoço, tarde, tardezinha, boca da noite, noite, tarde da noite e madrugada. Há duas vantagens nessa divisão: a primeira é a exatidão amazônica, que não sovina minutos nem regateia segundos, permitindo que as coisas sempre comecem na hora certa e ninguém chegue atrasado; a segunda é a facilidade para converter em outras convenções, a gosto do freguês, e até os mais formalistas podem ser atendidos, se fizerem questão de acertar seus relógios.

Assim sendo, quando fico insistindo no retorno ao horário antigo é que estou sacrificando minha coerência em favor de um debate interessante e, ainda por cima, tentando salvar um velho conhecido, o Estado acreano, tão mais amigo quanto menos assimilado pelo Estado brasileiro –este, incontestavelmente hostil em todas as épocas.

Por partes: a incoerência é porque eu deveria, na verdade, deixar de lado qualquer horário oficial, novo ou velho, e incentivar a vivência de outras temporalidades e a liberdade de inventar outros horários. Embora um horário oficial seja, em certa medida, necessário, o horário único é uma ditadura insuportável. É como o calendário oficial: serve para que os empregados recebam seus salários no dia certo e as crianças possam ter férias das escolas, mas tem pouca valia para a vida do corpo e do espírito. Para esta valem mais outros calendários –geralmente femininos: da lua, das águas, das árvores, das estrelas etc.

Quanto ao Estado acreano, se mantivesse um funcionamento mais próximo aos ciclos naturais, poderia guardar um certo espírito de diferença em relação ao estado colonial brasileiro e, eventualmente, quem sabe, servir como apoio às lutas do povo. É exatamente o contrário do que dizem os propagandistas do novo horário, que pensam que a Revolução Acreana foi feita para anexar o Acre ao Brasil. Que nada, antes disso a Revolução criou um Estado Independente, uma pátria de lunáticos que o Estado brasileiro tratou logo de desarmar e dissolver. O novo horário –hora de Porto Velho, Cuiabá e Manaus- não é revolucionário nem autonomista; na verdade, fundamenta-se numa submissão ao poder central igual à do antigo Território Federal.

E os políticos que cavalgam o chamado “aparelho de Estado” nem percebem que estou lhes proporcionando a chance de restabelecerem sua comunicação, se é que algum dia a tiveram, com a história e a cultura verdadeira do povo verdadeiro (os mais atentos sabem que há plurais ocultos na sentença: histórias, culturas, povos). A única coisa que se exige é que tirem o sapato na entrada ou, ao menos, desçam do salto e não venham com suas mesquinharias eleitorais.

Estou bem na entrada, vendo como se comportam. Um deles veio querendo tirar sarrinho com a minha cara, respondi logo com um desaforo. Atirarei quantas pedras forem necessárias para manter os urubus afastados. E faço questão de não personalizar a briga. Por exemplo, não vou aproveitar o assunto pra fazer política contra o Senador Tião Viana, que foi o principal (não foi o único) responsável pela aprovação da desastrosa mudança de horário. O mandato do Tião no Senado é produtivo e útil em muitas outras questões, sua respeitabilidade é um patrimônio do povo que o elegeu, é algo a ser preservado. E além do mais, a eleição já passou e a próxima é daqui a dois anos. Quem quiser fazer seu joguinho eleitoral vai ter bastante tempo pra isso.

Sei que é difícil para os habitantes dessa terra politiqueira compreenderem que o governador (anterior, atual ou futuro), seja ele quem for, é apenas um peão no tabuleiro e que estamos lutando contra peças muito mais poderosas. Mas vamos começando assim, devagarinho, como se fosse uma conversa sobre o igarapé que passa na nossa aldeia ou, digamos, uma conversa sobre o tempo. Deixa que pensem que só estamos fazendo barulho.

Vocês acham que vai chover, por esses dias?

*Originalmente publicado no Blog 'O Espírito da Coisa' em 28/10/2008