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04 março 2009

A EXTINÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR BRASILEIRA

"Extinção da Justiça Militar: um exemplo da Argentina para o Brasil?"

Blog do Frederico Vasconcelos

Na última sexta-feira, 27 de fevereiro, deixou de vigorar, seis meses após a aprovação da alteração legislativa, o Código de Justicia Militar argentino, datado de 1951. Com a mudança, foram abolidos a pena de morte e vários crimes, entre os quais homossexualismo e delitos contra a honra militar. Mais do que isso, é extinta a própria justiça militar, cuja existência fica reservada para tempos de guerra.

O Código Penal Militar brasileiro, Decreto-Lei 1.001, data de 1969 e foi imposto pelo triunvirato militar, com a autoridade que lhe foi conferida por atos institucionais, entre os quais o famigerado AI-5. Parte considerável dele já se encontra afastada: a própria pena de morte teve, por força da Constituição de 1988, sua aplicação limitada à guerra.

Quanto à Justiça Militar, a Constituição cidadã pouco inovou: manteve o Superior Tribunal Militar e autorizou a criação da justiça militar estadual e do Tribunal de Justiça Militar, este só nos estados com efetivo militar superior a vinte mil integrantes.

Um dos três estados que ainda têm tribunal militar – os outros são Minas Gerais e São Paulo –, o Rio Grande do Sul enfrenta hoje o debate acerca da sua extinção, assim como da extinção da própria Justiça Militar. Neste momento, está se realizando, por iniciativa do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Armínio José Abreu Lima da Rosa, a quem cabe a iniciativa de propor a sua extinção, consulta a todos os juízes do estado, para que manifestem sua posição sobre a questão.

A proposta de extinção começou a tomar corpo há pouco mais de meio ano, por iniciativa do Promotor de Justiça João Barcelos de Souza Júnior, que apontou vários vícios, entre os quais a composição do colegiado do Tribunal, majoritariamente de coronéis, o que favoreceria a impunidade dos réus de altas patentes, o nepotismo e a falta de transparência, esta em grande medida necessária para ocultar o baixíssimo número de processos que tramitam na Justiça Militar.

Pouco antes, embora sem apresentarem proposta de extinção da Justiça Militar, sete dos oito juízes de Primeiro Grau, estes civis e concursados, haviam iniciado um movimento de resistência às constantes investidas do Tribunal contra a independência judicial, consistente em determinações sobre o modo de julgar, abertura de processos administrativos e censuras em acórdãos.

No final de 2008, Inspeção do CNJ encontrou uma série de irregularidades no Tribunal, que deram corpo ao movimento pela extinção.

Evidentemente, nem todas as irregularidades existentes podem ser tomadas como motivo para a extinção – para o nepotismo, por exemplo, basta a adoção de medidas saneadoras.

Mesmo para as hipóteses de favorecimento a réus graduados ou censura aos magistrados de Primeiro Grau, situações que certamente exigem respostas mais fortes, não necessariamente a saída é a extinção: como às vezes se ouve, isso poderia ser resolvido com a mudança na sua composição.

Já o crônico déficit processual torna a Justiça Militar muito cara, o que recomenda a discussão sobre a conveniência de sua manutenção pelo prisma da racionalidade, principalmente quando se trata de um estado em permanente crise, que quase não tem recursos para investimentos ou para atender a demandas sociais.

Mas, acima disso tudo, há outra questão, de natureza política, que consiste em saber se interessa, notadamente em tempos de paz, manter tribunais militares.

Para fazer essa avaliação, nem ao menos chega a ser central o fato de que, tanto no plano federal quanto no estadual, esses órgãos subvertem a noção de Judiciário enquanto carreira e enquanto Poder independente, na medida em que os Tribunais carregam o pecado original da livre nomeação pelo chefe do Executivo.

A questão vai além: sua sobrevivência em tempos democráticos, nos quais se institucionalizou o poder civil, carrega a idéia anacrônica de que os delitos cometidos por militares devem ser submetidos ao julgamento feito por oficiais superiores, únicos capazes de compreender o que acontece na caserna e de dar a reprimenda adequada aos crimes militares.

No que se refere à Justiça Militar estadual, o anacronismo é ainda mais marcante, porque sua atribuição é o julgamento de crimes praticados por policiais militares, cuja função é a de atuar na segurança pública interna – e nisso se reforça a discutível idéia de uma segurança interna militarizada.

A estrutura do judiciário militar do Rio Grande do Sul é emblemática da estranha combinação entre juízes e militares, com prevalência destes últimos: no Primeiro Grau, há magistrados concursados, mas em grau recursal os processos são levados a um colegiado de sete membros, dos quais só um é magistrado de carreira; a maioria é constituída por coronéis, de quem nem ao menos se exige formação jurídica.

Com semelhante estrutura, não é de se estranhar que existam acórdãos em que, após feita forte censura ao julgador de Primeiro Grau, o teor da decisão seja levado ao conhecimento de autoridade militar: é a idéia de hierarquia e disciplina da caserna que se sobrepõe à do juiz independente.

A Argentina soube pôr fim a esse resquício antidemocrático; talvez o movimento que ora se desenvolve no Rio Grande do Sul possa servir de inspiração para que também em nosso país a questão seja reavaliada.

(*) Pio Giovani Dresch, juiz de direito em Porto Alegre