ENTRE OS LIMITES DA EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA (*)
A questão dos limites volta-se para os próprios pais e escola: a educação deve privilegiar o diálogo com crianças e adolescentes aos invés de punições, especialmente as corporais. A tríade punição-premiação-educação está na raiz da aprendizagem social e sua discussão é considerada sempre pertinente.
Dossiê: Punição
Por Luciano Valente
Revista Com Ciência
Educar crianças para que elas compreendam e obedeçam às regras da convivência é um desafio enfrentado por pais, escola e sociedade em geral. A tríade punição-premiação-educação está na raiz da aprendizagem social e sua discussão é considerada sempre pertinente. Para pesquisadores, as mudanças na família e na sociedade contemporâneas ainda não resultaram em uma configuração das relações entre educar e punir. A questão dos limites volta-se para os próprios pais e escola: a educação deve privilegiar o diálogo com crianças e adolescentes aos invés de punições, especialmente as corporais.
Os pais modernos têm tido dificuldades para conseguir impor limites e educar os seus filhos. Exemplo disto é o sucesso do programa Super Nanny (ou Super Babá, em português). O reality show britânico tem sua trama baseada em uma babá disciplinadora que visita casas de famílias em que os pequenos controlam, mandam e desmandam em seus pais. Jo passa uma semana com as crianças e ensina aos pais como conseguirem impor respeito e criar regras sem bater ou alterar a voz. Ela apresenta técnicas para coordenar brincadeiras, fazer com que os pequenos obedeçam os horários de dormir etc. No show seu disciplinamento baseado no diálogo e compreensão mútua funciona muito bem.
Edilza Ribeiro é professora de enfermagem na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e conduziu um projeto na unidade de pediatria no hospital universitário, criando oficinas de diálogo com a comunidade. Uma delas focou na discussão de como os pais trabalham, no seu processo educativo, as questões com as quais eles não concordam, como punem e se lançam mão de castigos físicos. “Sinto os pais um pouco perdidos. A família mudou, convive menos, tem mais estresse, tem menos pessoas para ajudar nas tarefas e a mulher não é mais a cuidadora oficial da família. Há um distanciamento maior entre pais e filhos. Os pais podem não conseguir acompanhar a tecnologia, nem mesmo saber ao que os filhos têm acesso. Nem a família e nem a sociedade têm encontrado formas punitivas que sejam significativas e produzam efeito nessa nova família”, afirma ela.
A diminuição no número de filhos é um outro ponto levantado por Ribeiro. O estresse aumentou devido a essa preciosidade que a criança ganhou. “Este modelo tem levado a essa preponderância da vontade da criança. É por isso que na Super Nanny, existem crianças de 5, 6 anos que controlam a vida familiar. Os adultos deixaram de ser adultos, os pais deixaram de cumprir os seus papéis e não atendem mais às necessidades das crianças, mas sim aos seus desejos” conclui. O trabalho dela aponta que é justamente nessa somatória que o castigo físico persiste, pois ele cessa imediatamente um comportamento indesejável e é fácil de aplicar, ao contrário do diálogo, que demanda tempo e convivência.
“Palmada já era”
O Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), do Instituto de Psicologia da USP, pesquisa a problemática da infância em geral, em especial temas como a educação infantil e a violência doméstica. Maria Amélia Azevedo, junto com outros pesquisadores do Lacri, publicou diversos livros, como Mania de bater e Palmada já era, que abordam o tema da violência doméstica e a educação.
Maria Amélia acredita que a punição é um recurso que deve ser usado como exceção. Ela defende um modelo de diálogo entre pais e filhos que aja preventivamente, ou seja, antes que seja necessária uma punição. “Eu sou absolutamente contrária à punição corporal, ou qualquer tipo de castigo que humilhe as pessoas. Minha perspectiva da criança é otimista. Ela é um ser com possibilidades e que, bem conduzido, de uma forma que se sinta valorizado, pode aprender qualquer coisa, inclusive a se comportar socialmente. Sou a favor da punição pedagógica, que significa lidar com as conseqüências dos seus atos”, defende a pesquisadora.
Junto com a deputada Maria do Rosário, a pesquisador foi autora do Projeto de Lei No. 2654/2003, ainda em trâmite no Congresso, que ficou conhecida como “Lei da Palmada”. O texto classifica como crime qualquer forma de punição corporal contra crianças, seja no lar ou na escola, e prevê punições contra os pais, assim como a perda da guarda dos filhos para “o pai, ou a mãe que castigar imoderadamente o filho”.
No livro Palmada já era, Maria Amélia apresenta 12 alternativas à punição corporal, levantadas em entrevistas com cerca de 500 crianças de 9 a 12 anos, alunas de escolas de São Bernardo do Campo. As crianças foram perguntadas sobre como é que elas poderiam ser educadas sem apanhar, mesmo quando elas apresentam maus modos, recusa de ir a escola, mentira, bagunça etc. “O meu trabalho levantou as sugestões das próprias crianças. As crianças devem aprender pelo diálogo que elas estão erradas. A palmada é violência. É preciso criar um castigo significativo e pedagógico, por exemplo, se ela copia um trabalho escolar, ela deve refazê-lo, perdendo o seu tempo de lazer e aprendendo a lidar com as conseqüências de seus erros”, diz a pesquisadora. O livro defende uma criação, em conjunto entre pais e filhos, de regras, com direitos e deveres de cada e afirma que ao participar dessa criação, as crianças criam uma predisposição para obedecê-las.
A punição corporal é abominada por ambas as pesquisadoras. Edilza Ribeiro aponta os riscos desse tipo de punição. “A problemática do castigo físico é colocar as pessoas que o aplicam em um nível de adrenalina e estresse altíssimo. Eu acho que ele deve ser combatido e reduzido até que ele seja zero. O castigo físico é uma escada. Ele tem um degrau, o segundo degrau etc. E quando você está no décimo degrau, já não existe autocensura e a pessoa não se escandaliza mais. É aí que ocorrem as agressões” descreve ela.
Maria Amélia tem uma postura ainda mais agressiva contra o castigo corporal:. “Bater num adulto é agressão, num animal é crueldade, como você pode dizer que bater numa criança é educação? Não sou contra punição, em certas situações é necessário você usar medidas de contenção. Mas, sem degradar, nem humilhar. A criança deve entender porque está sendo punida. O ser humano fala e dialoga e assim transmite valores. A palmada é o caminho do curto-circuito”, argumenta.
Na escola, o dilema da disciplina
A pedagoga Áurea Guimarães, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, cita Freud e sua célebre frase, “sem repressão não há civilização”, para exemplificar como o ato de educar é uma necessidade da vida em sociedade.
Áurea defende que a escola seja um espaço propício à discussão. “É preciso ensinar a criança a relação entre o ‘eu' e o ‘mundo', fazer com que ela reflita sobre em que medida aquilo que ela quer afeta os outros. Isto é um exercício, é uma prática social”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, a instituição da escola não tem conseguido ser um espaço fomentador dessa reflexão. Quando existe a punição, como suspensões, advertências e até expulsões, elas têm um caráter muito mais exemplar, do que reflexivo. “A criança deixa de fazer algo por medo, não por compreender o certo e o errado” conclui.
A temática da pesquisa da pedagoga é a depredação e a violência na escola. Ela conta que seu interesse pelo tema surgiu ao visitar escolas públicas na cidade de Campinas, São Paulo, onde havia algumas muito depredadas e outras bem conservadas. Ao desenvolver o estudo, ela pôde perceber que quanto mais disciplinador era o regime, menos havia depredação do patrimônio escolar. “A depredação surge não como uma revolta à disciplina, mas sim como uma tentativa de chamar a atenção. Pois nas escolas com um regime disciplinar muito frouxo, a sensação não era de liberdade, mas, de descaso e abandono”, conta Áurea.
Infelizmente, ela avalia que a escola, no momento atual, está sendo incapaz de ajudar nessa construção de um censo crítico. O número de escolas em estado de abandono é muito maior do que as com um disciplinamento mais presente, e os casos de indisciplina aumentam vertiginosamente, devido a falta de limites. Ela aponta que quando há escolas com maior ordem e disciplina, isto é fruto muito mais de iniciativas individuais do que do Estado. “Há, por exemplo, uma escola do Jardim Ângela, um dos bairros mais violentos de São Paulo, onde o diretor fez um trabalho, seguindo a linha do Paulo Freire, envolveu a comunidade, os pais, a sua equipe e teve um ótimo resultado. A escola evoluiu de uma aparência de destroços de guerra para um lugar limpo, organizado e disciplinado”, exemplifica.
A falta de medidas que envolvam um projeto pedagógico para toda a escola é o grande erro, segundo Áurea. Ela afirma que de nada adianta cada professor tentar disciplinar de uma maneira. Essa desordem pinta o cenário atual, em que os professores não conseguem impor limites aos alunos, chegando a casos extremos de até terem medo deles.
* Artigo originalmente publicado na edião 98 da revista Com Ciência
Dossiê: Punição
Por Luciano Valente
Revista Com Ciência
Educar crianças para que elas compreendam e obedeçam às regras da convivência é um desafio enfrentado por pais, escola e sociedade em geral. A tríade punição-premiação-educação está na raiz da aprendizagem social e sua discussão é considerada sempre pertinente. Para pesquisadores, as mudanças na família e na sociedade contemporâneas ainda não resultaram em uma configuração das relações entre educar e punir. A questão dos limites volta-se para os próprios pais e escola: a educação deve privilegiar o diálogo com crianças e adolescentes aos invés de punições, especialmente as corporais.
Os pais modernos têm tido dificuldades para conseguir impor limites e educar os seus filhos. Exemplo disto é o sucesso do programa Super Nanny (ou Super Babá, em português). O reality show britânico tem sua trama baseada em uma babá disciplinadora que visita casas de famílias em que os pequenos controlam, mandam e desmandam em seus pais. Jo passa uma semana com as crianças e ensina aos pais como conseguirem impor respeito e criar regras sem bater ou alterar a voz. Ela apresenta técnicas para coordenar brincadeiras, fazer com que os pequenos obedeçam os horários de dormir etc. No show seu disciplinamento baseado no diálogo e compreensão mútua funciona muito bem.
Edilza Ribeiro é professora de enfermagem na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e conduziu um projeto na unidade de pediatria no hospital universitário, criando oficinas de diálogo com a comunidade. Uma delas focou na discussão de como os pais trabalham, no seu processo educativo, as questões com as quais eles não concordam, como punem e se lançam mão de castigos físicos. “Sinto os pais um pouco perdidos. A família mudou, convive menos, tem mais estresse, tem menos pessoas para ajudar nas tarefas e a mulher não é mais a cuidadora oficial da família. Há um distanciamento maior entre pais e filhos. Os pais podem não conseguir acompanhar a tecnologia, nem mesmo saber ao que os filhos têm acesso. Nem a família e nem a sociedade têm encontrado formas punitivas que sejam significativas e produzam efeito nessa nova família”, afirma ela.
A diminuição no número de filhos é um outro ponto levantado por Ribeiro. O estresse aumentou devido a essa preciosidade que a criança ganhou. “Este modelo tem levado a essa preponderância da vontade da criança. É por isso que na Super Nanny, existem crianças de 5, 6 anos que controlam a vida familiar. Os adultos deixaram de ser adultos, os pais deixaram de cumprir os seus papéis e não atendem mais às necessidades das crianças, mas sim aos seus desejos” conclui. O trabalho dela aponta que é justamente nessa somatória que o castigo físico persiste, pois ele cessa imediatamente um comportamento indesejável e é fácil de aplicar, ao contrário do diálogo, que demanda tempo e convivência.
“Palmada já era”
O Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), do Instituto de Psicologia da USP, pesquisa a problemática da infância em geral, em especial temas como a educação infantil e a violência doméstica. Maria Amélia Azevedo, junto com outros pesquisadores do Lacri, publicou diversos livros, como Mania de bater e Palmada já era, que abordam o tema da violência doméstica e a educação.
Maria Amélia acredita que a punição é um recurso que deve ser usado como exceção. Ela defende um modelo de diálogo entre pais e filhos que aja preventivamente, ou seja, antes que seja necessária uma punição. “Eu sou absolutamente contrária à punição corporal, ou qualquer tipo de castigo que humilhe as pessoas. Minha perspectiva da criança é otimista. Ela é um ser com possibilidades e que, bem conduzido, de uma forma que se sinta valorizado, pode aprender qualquer coisa, inclusive a se comportar socialmente. Sou a favor da punição pedagógica, que significa lidar com as conseqüências dos seus atos”, defende a pesquisadora.
Junto com a deputada Maria do Rosário, a pesquisador foi autora do Projeto de Lei No. 2654/2003, ainda em trâmite no Congresso, que ficou conhecida como “Lei da Palmada”. O texto classifica como crime qualquer forma de punição corporal contra crianças, seja no lar ou na escola, e prevê punições contra os pais, assim como a perda da guarda dos filhos para “o pai, ou a mãe que castigar imoderadamente o filho”.
No livro Palmada já era, Maria Amélia apresenta 12 alternativas à punição corporal, levantadas em entrevistas com cerca de 500 crianças de 9 a 12 anos, alunas de escolas de São Bernardo do Campo. As crianças foram perguntadas sobre como é que elas poderiam ser educadas sem apanhar, mesmo quando elas apresentam maus modos, recusa de ir a escola, mentira, bagunça etc. “O meu trabalho levantou as sugestões das próprias crianças. As crianças devem aprender pelo diálogo que elas estão erradas. A palmada é violência. É preciso criar um castigo significativo e pedagógico, por exemplo, se ela copia um trabalho escolar, ela deve refazê-lo, perdendo o seu tempo de lazer e aprendendo a lidar com as conseqüências de seus erros”, diz a pesquisadora. O livro defende uma criação, em conjunto entre pais e filhos, de regras, com direitos e deveres de cada e afirma que ao participar dessa criação, as crianças criam uma predisposição para obedecê-las.
A punição corporal é abominada por ambas as pesquisadoras. Edilza Ribeiro aponta os riscos desse tipo de punição. “A problemática do castigo físico é colocar as pessoas que o aplicam em um nível de adrenalina e estresse altíssimo. Eu acho que ele deve ser combatido e reduzido até que ele seja zero. O castigo físico é uma escada. Ele tem um degrau, o segundo degrau etc. E quando você está no décimo degrau, já não existe autocensura e a pessoa não se escandaliza mais. É aí que ocorrem as agressões” descreve ela.
Maria Amélia tem uma postura ainda mais agressiva contra o castigo corporal:. “Bater num adulto é agressão, num animal é crueldade, como você pode dizer que bater numa criança é educação? Não sou contra punição, em certas situações é necessário você usar medidas de contenção. Mas, sem degradar, nem humilhar. A criança deve entender porque está sendo punida. O ser humano fala e dialoga e assim transmite valores. A palmada é o caminho do curto-circuito”, argumenta.
Na escola, o dilema da disciplina
A pedagoga Áurea Guimarães, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, cita Freud e sua célebre frase, “sem repressão não há civilização”, para exemplificar como o ato de educar é uma necessidade da vida em sociedade.
Áurea defende que a escola seja um espaço propício à discussão. “É preciso ensinar a criança a relação entre o ‘eu' e o ‘mundo', fazer com que ela reflita sobre em que medida aquilo que ela quer afeta os outros. Isto é um exercício, é uma prática social”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, a instituição da escola não tem conseguido ser um espaço fomentador dessa reflexão. Quando existe a punição, como suspensões, advertências e até expulsões, elas têm um caráter muito mais exemplar, do que reflexivo. “A criança deixa de fazer algo por medo, não por compreender o certo e o errado” conclui.
A temática da pesquisa da pedagoga é a depredação e a violência na escola. Ela conta que seu interesse pelo tema surgiu ao visitar escolas públicas na cidade de Campinas, São Paulo, onde havia algumas muito depredadas e outras bem conservadas. Ao desenvolver o estudo, ela pôde perceber que quanto mais disciplinador era o regime, menos havia depredação do patrimônio escolar. “A depredação surge não como uma revolta à disciplina, mas sim como uma tentativa de chamar a atenção. Pois nas escolas com um regime disciplinar muito frouxo, a sensação não era de liberdade, mas, de descaso e abandono”, conta Áurea.
Infelizmente, ela avalia que a escola, no momento atual, está sendo incapaz de ajudar nessa construção de um censo crítico. O número de escolas em estado de abandono é muito maior do que as com um disciplinamento mais presente, e os casos de indisciplina aumentam vertiginosamente, devido a falta de limites. Ela aponta que quando há escolas com maior ordem e disciplina, isto é fruto muito mais de iniciativas individuais do que do Estado. “Há, por exemplo, uma escola do Jardim Ângela, um dos bairros mais violentos de São Paulo, onde o diretor fez um trabalho, seguindo a linha do Paulo Freire, envolveu a comunidade, os pais, a sua equipe e teve um ótimo resultado. A escola evoluiu de uma aparência de destroços de guerra para um lugar limpo, organizado e disciplinado”, exemplifica.
A falta de medidas que envolvam um projeto pedagógico para toda a escola é o grande erro, segundo Áurea. Ela afirma que de nada adianta cada professor tentar disciplinar de uma maneira. Essa desordem pinta o cenário atual, em que os professores não conseguem impor limites aos alunos, chegando a casos extremos de até terem medo deles.
* Artigo originalmente publicado na edião 98 da revista Com Ciência
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