JORNAL 'O VARADOURO', O PEQUENO DAS SELVAS
Quando o governo militar abriu as portas do Acre ao agronegócio, foi um pequeno jornal local que mostrou a violência contra seu povo
O pequeno das selvas
Bernardo Camara
Revista de História da Biblioteca Nacional
Os embates nas florestas do Acre estavam cada dia mais difíceis. Reunido com sua gente, Chico Mendes (1944-1988) matutava novas manobras de resistência. Mas as árvores não paravam de cair: com generosos incentivos federais, os novos fazendeiros chegavam arrombando as porteiras do estado. E se a imprensa local aplaudia o avanço do agronegócio, um rústico jornal nascia em maio de 1977 para denunciar a devastação. Virou material obrigatório nas reuniões dos seringueiros.
Com o nome de Varadouro e o slogan “Um jornal das selvas”, o periódico chegou para incomodar, “rude, caboclo e sem técnica”, como já avisava seu primeiro editorial. Mas, mesmo sendo o patinho feio dos alternativos, ganhou notoriedade por ter “peitado” os grandes numa época de grande violência no interior das matas. Três décadas mais tarde, as 24 edições do jornal estão sendo digitalizadas pelo site da Biblioteca da Floresta, órgão estadual de cultura.
À época, os planos do governo militar para integrar a Amazônia à economia nacional rapidamente se tornaram realidade. Com uma chuva de créditos e deduções tributárias, gente de todo o Brasil ia para a região. No início da década de 1970, a população do Acre não passava de 220 mil habitantes. Dez anos depois, 500 mil cabeças de gado já se espalhavam pelo estado, tomando o lugar de seringueiros, índios e ribeirinhos.
“Antes do Varadouro, o acontecimento era exaltado pelas elites locais. Toda a imprensa daqui defendia o fim do extrativismo e festejava a pecuária”, recorda o jornalista acriano Elson Martins, editor e um dos idealizadores do periódico.
O Varadouro seguiu o rumo oposto. Denunciou a ocupação desordenada e fraudulenta pelos novos fazendeiros e estampou em suas páginas o sofrimento dos antigos moradores. “Queríamos que as sociedades urbanas percebessem que o progresso anunciado pelo governo era desastroso”, explica o jornalista.
Rapidamente, os povos da floresta fizeram do jornal seu porta-voz. Após ler as matérias do boletim em voz alta nas reuniões sindicais, Chico Mendes saía rio abaixo distribuindo exemplares aos ribeirinhos. Seringueiros pediam letras maiores aos editores, pois liam sob a luz fraca de lamparinas. E não era rara a participação de índios nas reuniões de pauta para dar seus palpites.
A linguagem simples e direta, quase coloquial, também foi responsável por atrair um público amplo de leitores. O jornal chegou a rodar sete mil exemplares em algumas edições. “Isso representa mais do que a soma dos quatro diários que circulam hoje em Rio Branco”, afirma Elson Martins, orgulhoso.
A fama do periódico atravessou as fronteiras do estado. Todos os meses chegavam cartas do país inteiro elogiando a iniciativa. Uma delas, guardada até hoje com carinho por Martins, vinha do cartunista Henfil (1944-1988), já consagrado por seus traços. Era a prova de que a militância estava no caminho certo.
“Povo do Varadouro! Recebi os três primeiros números. Só achei uma coisa que muito me emocionou: não tem cheiro de Rio de Janeiro nem São Paulo. Tem cheiro de Acre. Quero receber o número 4 impresso em folha de seringueira! Viva o Acre!”, escreveu ele, de seu exílio no Rio Grande do Norte.
Ilustração: Yusseff Abrahim
O pequeno das selvas
Bernardo Camara
Revista de História da Biblioteca Nacional
Os embates nas florestas do Acre estavam cada dia mais difíceis. Reunido com sua gente, Chico Mendes (1944-1988) matutava novas manobras de resistência. Mas as árvores não paravam de cair: com generosos incentivos federais, os novos fazendeiros chegavam arrombando as porteiras do estado. E se a imprensa local aplaudia o avanço do agronegócio, um rústico jornal nascia em maio de 1977 para denunciar a devastação. Virou material obrigatório nas reuniões dos seringueiros.
Com o nome de Varadouro e o slogan “Um jornal das selvas”, o periódico chegou para incomodar, “rude, caboclo e sem técnica”, como já avisava seu primeiro editorial. Mas, mesmo sendo o patinho feio dos alternativos, ganhou notoriedade por ter “peitado” os grandes numa época de grande violência no interior das matas. Três décadas mais tarde, as 24 edições do jornal estão sendo digitalizadas pelo site da Biblioteca da Floresta, órgão estadual de cultura.
À época, os planos do governo militar para integrar a Amazônia à economia nacional rapidamente se tornaram realidade. Com uma chuva de créditos e deduções tributárias, gente de todo o Brasil ia para a região. No início da década de 1970, a população do Acre não passava de 220 mil habitantes. Dez anos depois, 500 mil cabeças de gado já se espalhavam pelo estado, tomando o lugar de seringueiros, índios e ribeirinhos.
“Antes do Varadouro, o acontecimento era exaltado pelas elites locais. Toda a imprensa daqui defendia o fim do extrativismo e festejava a pecuária”, recorda o jornalista acriano Elson Martins, editor e um dos idealizadores do periódico.
O Varadouro seguiu o rumo oposto. Denunciou a ocupação desordenada e fraudulenta pelos novos fazendeiros e estampou em suas páginas o sofrimento dos antigos moradores. “Queríamos que as sociedades urbanas percebessem que o progresso anunciado pelo governo era desastroso”, explica o jornalista.
Rapidamente, os povos da floresta fizeram do jornal seu porta-voz. Após ler as matérias do boletim em voz alta nas reuniões sindicais, Chico Mendes saía rio abaixo distribuindo exemplares aos ribeirinhos. Seringueiros pediam letras maiores aos editores, pois liam sob a luz fraca de lamparinas. E não era rara a participação de índios nas reuniões de pauta para dar seus palpites.
A linguagem simples e direta, quase coloquial, também foi responsável por atrair um público amplo de leitores. O jornal chegou a rodar sete mil exemplares em algumas edições. “Isso representa mais do que a soma dos quatro diários que circulam hoje em Rio Branco”, afirma Elson Martins, orgulhoso.
A fama do periódico atravessou as fronteiras do estado. Todos os meses chegavam cartas do país inteiro elogiando a iniciativa. Uma delas, guardada até hoje com carinho por Martins, vinha do cartunista Henfil (1944-1988), já consagrado por seus traços. Era a prova de que a militância estava no caminho certo.
“Povo do Varadouro! Recebi os três primeiros números. Só achei uma coisa que muito me emocionou: não tem cheiro de Rio de Janeiro nem São Paulo. Tem cheiro de Acre. Quero receber o número 4 impresso em folha de seringueira! Viva o Acre!”, escreveu ele, de seu exílio no Rio Grande do Norte.
Ilustração: Yusseff Abrahim
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