O PT MUDOU O BRASIL? OU FOI O CONTRÁRIO?
"Lula e o PT conseguiram, mediante a desconstrução sistemática das realizações de outros governos, convencer a maioria de que o Brasil teria começado em 2003. Nunca antes"
Maílson da Nóbrega
Rrevista Veja, Edição 2148, 20 de janeiro de 2010
Nunca antes na história deste país um partido se vangloriou tanto de feitos que não realizou. É o caso do PT. No seu último programa no rádio e na TV, o partido reivindicou o papel de marco zero. Até a estabilização da economia teria sido obra sua. Os petistas se jactam de ter mudado o país. Para um de seus senadores, 2009 foi "a segunda descoberta do Brasil".
No mundo, três transformações radicais sobressaem: (1) a Revolução Gloriosa (1688), que extinguiu o absolutismo inglês e levaria a Inglaterra à Revolução Industrial; (2) a Revolução Americana (1776), da qual surgiria a maior potência no século XIX; e (3) a Revolução Francesa (1789), a profunda mudança que substituiria os privilégios da nobreza, do clero e dos senhores feudais pelos direitos inalienáveis dos cidadãos.
Nada desse porte aconteceu no Brasil, nem agora nem antes. A independência foi declarada por dom Pedro, representante da metrópole. A República nasceu de um golpe de estado dado por Deodoro da Fonseca. A Revolução de 1930, a única que talvez possa ter esse título, promoveu mudanças, mas não daquela magnitude. Aqui não se viram rupturas nem violências. O regime militar findou sob negociação.
O PT pretendia mudar o Brasil, mas para pior. O título de seu programa para as eleições de 2002 era "a ruptura necessária". Prometia "uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado". Soa ridículo hoje, não?
As propostas continham inúmeros disparates: controles na entrada de capitais estrangeiros, mudanças na captação de recursos externos pelos bancos e a denúncia do acordo com o FMI, entre outros. Uma reforma tributária taxaria as grandes fortunas. O pagamento dos juros da dívida pública seria reduzido de forma voluntarista.
A Carta ao Povo Brasileiro (22 de junho de 2002) foi o começo do fim dessas ideias. Nela, Lula ainda defendia "um projeto nacional alternativo", mas falava em "respeito aos contratos e obrigações do país". O superávit primário seria preservado "para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos".
As visões econômicas do PT morreram de vez com Lula na Presidência. Um banqueiro foi presidir o Banco Central. No primeiro mês, elevaram-se a taxa de juros e a meta de superávit primário. Tudo o que o PT tachava de neoliberal. Na política, a coalizão de governo incluiu partidos políticos e figuras conhecidas que o PT abominava.
A política econômica foi mantida. Com a preservação da plataforma construída por seus antecessores, Lula conseguiu alçar o Brasil a novas alturas. O amadurecimento das mudanças anteriores ampliou o potencial de crescimento da economia, que foi adicionalmente impulsionada pelos ventos favoráveis da economia mundial entre 2003 e 2008. Tornou-se possível manter e ampliar os programas sociais herdados.
Muito se deve à intuição política do presidente e ao trabalho de seu primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Lula percebeu que a preservação de sua popularidade dependia do controle da inflação e por isso reforçou a autonomia do Banco Central. Ele cresceu aos olhos do mundo em razão de sua simpatia, de seu carisma e por ser um líder de esquerda moderado, defensor da democracia e da economia de mercado.
Lula e o PT conseguiram, mediante a desconstrução sistemática das realizações de outros governos, convencer a maioria de que o Brasil teria começado em 2003. Nunca antes. É um grande tento, que requereu doses elevadas de desfaçatez. Recentemente, na falta de energia no Sul e Sudeste, a preocupação não foi explicar, mas mostrar que o apagão de Lula era melhor que o de FHC.
A manutenção da política econômica foi uma decisão corajosa. Respondeu a um novo ambiente, caracterizado pela intolerância da sociedade à inflação, pela imprensa livre, pela nascente valorização da democracia e pela disciplina do mercado. Lula curvou-se às imposições dessa nova realidade. Ainda bem. O Brasil mudou o PT, que agora é, em todos os sentidos, um partido como os outros.
Maílson da Nóbrega
Rrevista Veja, Edição 2148, 20 de janeiro de 2010
Nunca antes na história deste país um partido se vangloriou tanto de feitos que não realizou. É o caso do PT. No seu último programa no rádio e na TV, o partido reivindicou o papel de marco zero. Até a estabilização da economia teria sido obra sua. Os petistas se jactam de ter mudado o país. Para um de seus senadores, 2009 foi "a segunda descoberta do Brasil".
No mundo, três transformações radicais sobressaem: (1) a Revolução Gloriosa (1688), que extinguiu o absolutismo inglês e levaria a Inglaterra à Revolução Industrial; (2) a Revolução Americana (1776), da qual surgiria a maior potência no século XIX; e (3) a Revolução Francesa (1789), a profunda mudança que substituiria os privilégios da nobreza, do clero e dos senhores feudais pelos direitos inalienáveis dos cidadãos.
Nada desse porte aconteceu no Brasil, nem agora nem antes. A independência foi declarada por dom Pedro, representante da metrópole. A República nasceu de um golpe de estado dado por Deodoro da Fonseca. A Revolução de 1930, a única que talvez possa ter esse título, promoveu mudanças, mas não daquela magnitude. Aqui não se viram rupturas nem violências. O regime militar findou sob negociação.
O PT pretendia mudar o Brasil, mas para pior. O título de seu programa para as eleições de 2002 era "a ruptura necessária". Prometia "uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado". Soa ridículo hoje, não?
As propostas continham inúmeros disparates: controles na entrada de capitais estrangeiros, mudanças na captação de recursos externos pelos bancos e a denúncia do acordo com o FMI, entre outros. Uma reforma tributária taxaria as grandes fortunas. O pagamento dos juros da dívida pública seria reduzido de forma voluntarista.
A Carta ao Povo Brasileiro (22 de junho de 2002) foi o começo do fim dessas ideias. Nela, Lula ainda defendia "um projeto nacional alternativo", mas falava em "respeito aos contratos e obrigações do país". O superávit primário seria preservado "para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos".
As visões econômicas do PT morreram de vez com Lula na Presidência. Um banqueiro foi presidir o Banco Central. No primeiro mês, elevaram-se a taxa de juros e a meta de superávit primário. Tudo o que o PT tachava de neoliberal. Na política, a coalizão de governo incluiu partidos políticos e figuras conhecidas que o PT abominava.
A política econômica foi mantida. Com a preservação da plataforma construída por seus antecessores, Lula conseguiu alçar o Brasil a novas alturas. O amadurecimento das mudanças anteriores ampliou o potencial de crescimento da economia, que foi adicionalmente impulsionada pelos ventos favoráveis da economia mundial entre 2003 e 2008. Tornou-se possível manter e ampliar os programas sociais herdados.
Muito se deve à intuição política do presidente e ao trabalho de seu primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Lula percebeu que a preservação de sua popularidade dependia do controle da inflação e por isso reforçou a autonomia do Banco Central. Ele cresceu aos olhos do mundo em razão de sua simpatia, de seu carisma e por ser um líder de esquerda moderado, defensor da democracia e da economia de mercado.
Lula e o PT conseguiram, mediante a desconstrução sistemática das realizações de outros governos, convencer a maioria de que o Brasil teria começado em 2003. Nunca antes. É um grande tento, que requereu doses elevadas de desfaçatez. Recentemente, na falta de energia no Sul e Sudeste, a preocupação não foi explicar, mas mostrar que o apagão de Lula era melhor que o de FHC.
A manutenção da política econômica foi uma decisão corajosa. Respondeu a um novo ambiente, caracterizado pela intolerância da sociedade à inflação, pela imprensa livre, pela nascente valorização da democracia e pela disciplina do mercado. Lula curvou-se às imposições dessa nova realidade. Ainda bem. O Brasil mudou o PT, que agora é, em todos os sentidos, um partido como os outros.
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