PEDAÇOS DE VIDA E DE MUNDO
Comentário a “Menino da Rua do Bagaço”
Isaac Melo*
O crítico, nas palavras de Oscar Wilde, é aquele que traduz de uma nova maneira ou em um novo material a sua impressão de beleza. É o que se pretende neste texto. A crítica, no cânone tradicional, se volta para explicar o verdadeiro sentido dos livros (linguagem, estilo, estrutura...) ou em avaliar algo que se costuma designar por “mérito literário”. Não é essa a pretensão aqui, até porque nos falta competência para tal. Se apreendermos o desdito, aquilo que é dito aparecerá por si só. Antes da obra interessa-nos o poeta, antes do poeta, o seu ato criador.
O Acre esconde um passado literário expressivo com cronistas, contistas, poetas, romancistas... que extrapolaram as fronteiras amazônicas e por força de seus escritos irromperam no cenário nacional. Mas, quando muito se fala no passado tende-se a negligenciar o presente. Hoje é necessário que se diga que a produção literária, no Acre, se acentua cada vez mais. Que dizer de um Sílvio Martinello com seu “Corações de Borracha”, de um Clodomir Monteiro com seu “Derroteiro de Rotinas”, uma Florentina Esteves com “O Empate”, um Moisés Diniz com seu “Santo de Deus”... para citar os primeiros que me acorrem a memória. São obras, sobretudo, que ampliam as perpectivas para a formação de uma literatura que extrapole as fronteiras do regionalismo, embora, sem deixar, necessariamente, de absorver elementos regionais. Novos tempos pedem novas formas de se escrever.
Ainda recente veio a lume “Menino da Rua do Bagaço” (Rio de Janeiro: Publit, 2009) sem grandes alardes e modestamente, tal qual seu autor, José de Anchieta Batista. E, nesse sentido, recordo Milan Kundera que dizia que os romancistas que são mais inteligentes que suas obras deveriam mudar de profissão. É o que penso em relação aos poetas. O chão que pariu Anchieta Batista já pariu outros José’s ilustres como José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Filho de Teixeira, o menino serelepava pelo chão árido do sertão até um dia resolver buscar os verdes mares. Entre idas e vindas, outro sertão, agora d’água, lhe cruza o caminho, é o Acre onde resolve aportar e no qual permanece até hoje. Foi professor durante anos, presidente de diversas estatais e secretário de estado de administração. O atual Diretor-Presidente do Instituto de Previdência do Acre é na verdade um exímio poeta, que ao juntar pedaços de vida e de mundo fez com eles uma singular poesia.
Menino da Rua do Bagaço não é fruto do ardor literário juvenil, já é obra amadurecida, embora sabendo que esta obra madura seja expressão do menino que nunca morreu no poeta. Não é preocupação do poeta fazer um mergulho às profundezas existenciais nem escalar os altos píncaros em busca da verdade. Antes vai à vida, à infância, ao amor, aos causos. Escreve o que sente, sente o que vive.
O livro apresenta, sobretudo, os seguintes esquemas de rimas: 1-2/3-4; 1-3/2-4; 1-4/2-3... Grosso modo, se poderia enfeixar Menino da Rua do Bagaço em três temáticas principais. O primeiro com poemas que faz um movimento memorialístico às reminiscências: “Mas que bom que voltasse o tempo antigo / E eu voltasse de novo a ser menino”. O poeta revisita o cenário em que nasceu e cresceu, faz referências a lugares, como o Rio do Peixe, e a fatos que lhe ocorreram na tenra idade. Não se trata de saudosismo, é antes, a saudade tal como ela é: “É um rio que nunca seca nas saudades que há em mim”.
No segundo momento, aparecem os poemas de cunho social, com mordaz crítica às injustiças sociais, à classe política e aos usurpadores da religião. O grito é de alerta, de revolta e não de desespero: “Que tempo nos sobrará, / para nos nossos anseios / ainda ouvir os gorjeios / de um último sabiá?”. Longe de professar o ateísmo o poeta lança seu grito contra aqueles que se utilizam da religião a seu bel-prazer e acabam deturpando as diversas práticas religiosas e a própria imagem de Deus. Por isso, o poeta confessa: “Já não tenho mais medo de Deus” e o Deus ameaçador e castigador da infância cede lugar a um Deus mais humano, à luz de um homem maduro: “O Cristo só me serve de exemplo enquanto homem. Eu não posso imitar um Deus”.
Poemas que retratam o Acre encerram o conjunto dos temas principais. Aqui o poeta narra fatos da política acreana, situações cômicas, etc. muitos dos quais registrados em certo jornal da época. Destacam-se, nesse sentido, os textos em prosa, permeados de humor e ironia, como é o caso de “Doutor Honoris Causa”.
Não há verdadeiro poeta sem sua amada. Se Dante imortalizou Beatriz em suas páginas, Anchieta Batista o faz em relação à Glads, esposa amada. Pois, em seus versos, o amor é praticamente sinônimo de vida: “Eu sinto que amo! / Eu sinto que vivo!”. É esse amor-matriz que o move a outros amores, que lhe dá a sensibilidade de poeta e o olhar crítico sobre o mundo.
O poema “O adeus do gari”, um dos poemas mais profundos que já li, justamente por desnudar de forma tão humana, verdadeira e sem enfeites o destino de um homem, pode ser entendido como uma metáfora da própria condição humana. Não é um apelo social, é uma indagação pela nossa própria humanidade, se é que ainda a temos: “E em busca do lixo, / Morreu na avenida... / Levando os seus sonhos, / Partiu desta lida, / Num trágico adeus / Aos lixos da vida”.
Drummond tem um verso em que diz que certos papéis são sensíveis, certos livros nos possuem, tal é o que me ocorre em relação a “Menino da Rua do Bagaço”. Desde quando ele chegou às minhas mãos percebi que não era uma obra qualquer, porque o seu autor confirma por meio de seus versos que somente o amor torna o homem necessário neste mundo. É um livro que não serve apenas ao deleite humano, mas nos restitui um pouco de nossa humanidade perdida. E, parafraseando o crítico espanhol Juan Dolent, àqueles que me disserem: “É estranho como você elogia sempre os livros de seus amigos!” O que, prontamente, respondo: “Entede-se, pois sujeitos que escrevem livros ruins não se encontram entre os meus amigos”.
*Editor do Blog Alma Acreana
Isaac Melo*
O crítico, nas palavras de Oscar Wilde, é aquele que traduz de uma nova maneira ou em um novo material a sua impressão de beleza. É o que se pretende neste texto. A crítica, no cânone tradicional, se volta para explicar o verdadeiro sentido dos livros (linguagem, estilo, estrutura...) ou em avaliar algo que se costuma designar por “mérito literário”. Não é essa a pretensão aqui, até porque nos falta competência para tal. Se apreendermos o desdito, aquilo que é dito aparecerá por si só. Antes da obra interessa-nos o poeta, antes do poeta, o seu ato criador.
O Acre esconde um passado literário expressivo com cronistas, contistas, poetas, romancistas... que extrapolaram as fronteiras amazônicas e por força de seus escritos irromperam no cenário nacional. Mas, quando muito se fala no passado tende-se a negligenciar o presente. Hoje é necessário que se diga que a produção literária, no Acre, se acentua cada vez mais. Que dizer de um Sílvio Martinello com seu “Corações de Borracha”, de um Clodomir Monteiro com seu “Derroteiro de Rotinas”, uma Florentina Esteves com “O Empate”, um Moisés Diniz com seu “Santo de Deus”... para citar os primeiros que me acorrem a memória. São obras, sobretudo, que ampliam as perpectivas para a formação de uma literatura que extrapole as fronteiras do regionalismo, embora, sem deixar, necessariamente, de absorver elementos regionais. Novos tempos pedem novas formas de se escrever.
Ainda recente veio a lume “Menino da Rua do Bagaço” (Rio de Janeiro: Publit, 2009) sem grandes alardes e modestamente, tal qual seu autor, José de Anchieta Batista. E, nesse sentido, recordo Milan Kundera que dizia que os romancistas que são mais inteligentes que suas obras deveriam mudar de profissão. É o que penso em relação aos poetas. O chão que pariu Anchieta Batista já pariu outros José’s ilustres como José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Filho de Teixeira, o menino serelepava pelo chão árido do sertão até um dia resolver buscar os verdes mares. Entre idas e vindas, outro sertão, agora d’água, lhe cruza o caminho, é o Acre onde resolve aportar e no qual permanece até hoje. Foi professor durante anos, presidente de diversas estatais e secretário de estado de administração. O atual Diretor-Presidente do Instituto de Previdência do Acre é na verdade um exímio poeta, que ao juntar pedaços de vida e de mundo fez com eles uma singular poesia.
Menino da Rua do Bagaço não é fruto do ardor literário juvenil, já é obra amadurecida, embora sabendo que esta obra madura seja expressão do menino que nunca morreu no poeta. Não é preocupação do poeta fazer um mergulho às profundezas existenciais nem escalar os altos píncaros em busca da verdade. Antes vai à vida, à infância, ao amor, aos causos. Escreve o que sente, sente o que vive.
O livro apresenta, sobretudo, os seguintes esquemas de rimas: 1-2/3-4; 1-3/2-4; 1-4/2-3... Grosso modo, se poderia enfeixar Menino da Rua do Bagaço em três temáticas principais. O primeiro com poemas que faz um movimento memorialístico às reminiscências: “Mas que bom que voltasse o tempo antigo / E eu voltasse de novo a ser menino”. O poeta revisita o cenário em que nasceu e cresceu, faz referências a lugares, como o Rio do Peixe, e a fatos que lhe ocorreram na tenra idade. Não se trata de saudosismo, é antes, a saudade tal como ela é: “É um rio que nunca seca nas saudades que há em mim”.
No segundo momento, aparecem os poemas de cunho social, com mordaz crítica às injustiças sociais, à classe política e aos usurpadores da religião. O grito é de alerta, de revolta e não de desespero: “Que tempo nos sobrará, / para nos nossos anseios / ainda ouvir os gorjeios / de um último sabiá?”. Longe de professar o ateísmo o poeta lança seu grito contra aqueles que se utilizam da religião a seu bel-prazer e acabam deturpando as diversas práticas religiosas e a própria imagem de Deus. Por isso, o poeta confessa: “Já não tenho mais medo de Deus” e o Deus ameaçador e castigador da infância cede lugar a um Deus mais humano, à luz de um homem maduro: “O Cristo só me serve de exemplo enquanto homem. Eu não posso imitar um Deus”.
Poemas que retratam o Acre encerram o conjunto dos temas principais. Aqui o poeta narra fatos da política acreana, situações cômicas, etc. muitos dos quais registrados em certo jornal da época. Destacam-se, nesse sentido, os textos em prosa, permeados de humor e ironia, como é o caso de “Doutor Honoris Causa”.
Não há verdadeiro poeta sem sua amada. Se Dante imortalizou Beatriz em suas páginas, Anchieta Batista o faz em relação à Glads, esposa amada. Pois, em seus versos, o amor é praticamente sinônimo de vida: “Eu sinto que amo! / Eu sinto que vivo!”. É esse amor-matriz que o move a outros amores, que lhe dá a sensibilidade de poeta e o olhar crítico sobre o mundo.
O poema “O adeus do gari”, um dos poemas mais profundos que já li, justamente por desnudar de forma tão humana, verdadeira e sem enfeites o destino de um homem, pode ser entendido como uma metáfora da própria condição humana. Não é um apelo social, é uma indagação pela nossa própria humanidade, se é que ainda a temos: “E em busca do lixo, / Morreu na avenida... / Levando os seus sonhos, / Partiu desta lida, / Num trágico adeus / Aos lixos da vida”.
Drummond tem um verso em que diz que certos papéis são sensíveis, certos livros nos possuem, tal é o que me ocorre em relação a “Menino da Rua do Bagaço”. Desde quando ele chegou às minhas mãos percebi que não era uma obra qualquer, porque o seu autor confirma por meio de seus versos que somente o amor torna o homem necessário neste mundo. É um livro que não serve apenas ao deleite humano, mas nos restitui um pouco de nossa humanidade perdida. E, parafraseando o crítico espanhol Juan Dolent, àqueles que me disserem: “É estranho como você elogia sempre os livros de seus amigos!” O que, prontamente, respondo: “Entede-se, pois sujeitos que escrevem livros ruins não se encontram entre os meus amigos”.
*Editor do Blog Alma Acreana
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