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30 dezembro 2010

A HISTÓRIA DO MASSACRE DE ÍNDIOS NO ACRE

Pedro Biló: O massacre do lago Arapapá (*)

Sérgio Aparecido Dias (**)

"E a lua prateada testemunhou a extrema covardia do ser humano, embrutecido em sua loucura assassina"

Segunda Parte

Evaristo tinha lá as suas razões, o Arapapá parecia um socavão de serra. Barrancos altíssimos, de rocha pura, erguiam-se ameaçadores ao longo de grande parte das terras firmes, pela margem esquerda do rio Envira. Mesmo adentrando os vários lagos, as várzeas altas se alternavam com as baixadas, misturando pedras duras como o aço, com a tabatinga argilosa. Um paraíso de riquíssimo ecossistema, abrigava vários espécimes vegetais como cedro, mogno, angelim, copiúba e outras, além do “ouro branco”, o látex das seringueiras. Seus lagos eram um autêntico viveiro de pacús, curimatãs, matrinchãs, piaus e tucunarés. Nas matas, bandos de queixadas conviviam com veados, caititús, pacas, capivaras, antas e onças. E as aves e pássaros, às centenas de milhares, enchendo a floresta de gorjeios e trinados, de colorações as mais diversas, desde o próprio arapapá, que deu nome ao local, aos magoarís, garças, papagaios, araras, mutuns, galos da serra, ciganas e maracanãs.

Depois de 2 dias de cautelosa aproximação, Pedro Biló e seus homens se acercaram do Arapapá.

Viajando com extremo cuidado, sempre rente às margens, adentravam em todos os igapós, escondendo-se entre as canaranas e o araçazal e dormindo nas ilhotas de terra úmida dos chavascais. Quando necessário, a canoa seguia com 2 homens, ziguezagueando entre as moitas de espinhos e as tiriricas, enquanto o resto do grupo se esgueirava entre os paredões do barranco alto, procurando fazer o mínimo ruído possível, quase invisíveis aos olhos de uma possível sentinela.

Por volta das 3 horas da tarde do 3º dia, já observavam a aldeia e estudavam a disposição das malocas. Tudo muito simples: as famílias ficavam em cabanas dispostas em volta das malocas principais. Nestas, em número de 2, ficavam os guerreiros, o chefe e o pajé. Havia ainda 2 cabanas onde armazenavam alimentos e guardavam as suas armas.

Teriam que tomar cuidado com os cães. Contaram mais ou menos uns 8, afora alguns filhotes. Esses cães, embora dóceis na aparência, eram acostumados a enfrentar queixadas e acuar onças nos grotões das furnas. Tinham um excelente faro, especialmente para detectar a presença de seres humanos.

Mas Pedro Biló havia tomado suas precauções. Desde o dia anterior, ele e seus homens besuntaram os seus corpos com uma mistura de malva, malvarisco, ahuasca, pólvora e fumo. Além disso, procuraram colocar-se contra o vento, para dificultar o máximo possível a detecção pelo faro. Prepararam vários nacos de carne de sol, temperados com uma mistura de timbó com ahuasca. A ahuasca (também conhecida como ayahuasca), planta nativa comum na Amazônia, especialmente no Estado do Acre, provoca delírios, visões, descoordenação motora e distúrbios mentais. O timbó é um cipó das muitas espécies de plantas tóxicas da floresta amazônica, que inibe os sentidos, entorpece o sistema nervoso e leva à morte por asfixia e paralisação do sistema respiratório.

Tudo agora era uma questão de tempo e paciência. Neutralizados os cães, tomadas as armas e dominadas as sentinelas, o resto seria um combate normal, com o rugido do papo amarelo e a agudeza das lâminas dos punhais.

Noite alta, lua brilhando no céu azul. A aldeia Caxinauá era uma clareira aberta na selva, inundada com a luz do luar. Nas malocas centrais, os guerreiros ressonavam e roncavam, tomados pelo sono profundo. As 4 sentinelas recostavam nas árvores próximas às cabanas laterais, visívelmente entorpecidas de sono, práticamente dormindo em pé.

Pedro Biló deslizava como cobra, rente ao solo, sem fazer o mínimo ruído, protegendo-se entre as moitas. De vez em quando, levantava levemente o braço e jogava um naco de carne em direção aos cães. Esses, sem a menor cerimônia, disputavam os pedaços e engoliam gulosamente cada porção daquele alimento letal. Sorrindo, Pedro Biló rastejou de volta. Agora era só aguardar que as drogas fizessem efeito. A mistura havia sido muito bem planejada. Se apenas tivesse usado a ahuasca, os cães se recuperariam 1 hora depois. Se tivesse colocado só o timbó, o ruído que eles fariam na proximidade da morte teria alertado as sentinelas. Perfeito, em cerca de 30 minutos poderiam agir com mais segurança!

O leve estremecimento dos cães mostrou que a morte havia chegado para eles. Pedro Biló e mais 3 capangas deslocaram-se ágilmente em direção às sentinelas, protegendo-se na escuridão da mata. Nas mãos, levavam os temidos punhais nordestinos, de 2 gumes, utilizados pelos cangaceiros, com grossas lâminas de aço temperado, com ponta de 25 centímetros de agudeza.

Saltando das trevas, num movimento felino e uno, cada um tomou a sua vítima, tapando a sua boca com uma das mãos e, com a outra, enterrando profundamente o punhal nos rins. Com um estertor convulsivo, na terrível dor do rompimento dos rins, as sentinelas tombaram sem um gemido sequer, com os olhos a saltarem das órbitas, e os dentes cerrados rilhando num ruído áspero, violentamente sacudidas numa terrível crise aguda de insuficiência renal, mortífera e súbita. A morte sobreveio em cerca de 10 segundos.

Em seguida, todo o bando invadiu a aldeia e tomou posições estratégicas em relação às malocas principais. Pedro Biló apontou para a porta da maloca dos guerreiros e acionou o gatilho do papo amarelo. Em meio a um cerrado tiroteio, ainda entorpecidos de sono, os caxinauá saíram da maloca e correram em direção à cabana das armas. Mas encontraram-se com os homens de Pedro Biló, fortemente armados, que os mataram às dezenas. Mesmo assim, vários alcançaram as armas e ofereceram uma resistência heróica.

Crianças e mulheres, gritando aterrorizadas, procuravam se proteger nas cabanas ou entre as árvores. Alguns alcançaram as águas do lago e nadaram para os igapós. Mas diversos foram atingidos por balas certeiras e tingiram as águas do lago com a cor vermelha do seu sangue. Os valentes guerreiros caxinauá tombaram de pé e venderam bem caro as suas peles. Várias flechas trespassaram o peito dos homens de Pedro Biló e alguns tiveram as suas cabeças despedaçadas pelas bordunas e pelos tacapes. Invocando seus deuses e gritando, defenderam até à última gota de sangue a terra de seus ancestrais. Mas não podiam competir com a superioridade bélica dos homens brancos. E a lua prateada testemunhou a extrema covardia do ser humano, embrutecido em sua loucura assassina.

Após liquidar os guerreiros, aqueles homens, sedentos de sangue e possuídos de uma tara pervertida, agarraram as índias mais jovens e as que mais lhes apeteceram e promoveram um festim de estupros. Índias foram violentadas em meio ao sangue quente que jorrava dos guerreiros mortos. Seus gritos lancinantes ecoaram em vão através da selva. Ao longe, seus lamentos apenas eram ouvidos pelas outras índias e pelas crianças, jovens e velhos em fuga, que nada podiam fazer, a não ser chorar e esperar por uma futura vingança. E por toda aquela madrugada de horror, as índias capturadas foram o prêmio dos vencedores de uma batalha inglória.

Ao romper da manhã, havendo saciado a tara dos conquistadores, aquelas desventuradas índias tiveram as suas preces atendidas: uma bala na cabeça aliviou-lhes o sofrimento e levou-as aos braços piedosos de Mavutsinim, o deus maior, criador dos seres vivos e da floresta Com-pletada a obra e contabilizadas as baixas, o grupo vitorioso regressou para reportar a conquista e entregar o Arapapá nas mãos criminosas do mandante do covarde massacre.

Uma festa estrondosa foi realizada e o mundo testemunhou o surgimento de mais um herói.

Esta é apenas a ponta do iceberg, tão somente uma das muitas histórias envolvendo a figura controversa de Pedro Biló. E não somente ele, mas muitos outros matadores e pistoleiros, fizeram his-tória naqueles tempos perdidos de Deus. Teodoro, Evaristo, Zé da Onça e tantos outros, protegidos pelos coronéis de barranco, acobertados por autoridades corruptas, foram o terror das pessoas honestas, essas sim as verdadeiras desbravadoras do Acre e de toda a Amazônia.

Seringueiros trabalhadores e corajosos, heróis anônimos, não festejados e nem reconhecidos nas datas do calendário nacional. Seus nomes jamais figurarão em nossas praças e nem em nossas ruas e avenidas, emporcalhadas com os nomes de Raposo Tavares, Domingos Jorge Velho e Bartolomeu Bueno da Silva.

Fica registrado mais este protesto contra esses falsos heróis. Já basta de promover a fama de assassinos, mesmo que seus feitos tenham alargado as nossas fronteiras ou rechaçado os invasores de nossa pátria.

O que tenham feito de correto não é suficiente para encobrir seus crimes hediondos, assim como toda a água do mundo não é suficiente para lavar as mãos sujas de sangue de Pôncio Pilatos, que condenou Jesus à morte e tentou justificar-se lavando as suas mãos.

E tampouco conseguirão clarear as águas tintas de sangue do lago do Arapapá.

POST SCRIPTUM (12/11/1998): conheci e entrevistei Pedro Biló, em Feijó, no Estado do Acre, no verão de 1977. No inverno do ano seguinte, retornando de uma viagem missionária que fizera aos índios Caxinauá, acima do Seringal “Olinda do Maciel”, ele estava num dos seringais rio abaixo e tomou o mesmo barco em que eu estava. Pude testemunhar, pessoalmente, o pavor que ele despertava nos índios. Um velho índio Caxinauá, remanescente dos antigos guerreiros (talvez do Arapapá, mas não pude confirmar), encolhia-se num canto do barco e tremia como vara verde, olhando aterrorizado para Pedro Biló, que sorria, divertido com a situação. Acheguei-me ao índio velho, abracei-o e lhe assegurei que nada lhe aconteceria. Mesmo assim, o seu pavor incontrolável serviu para divertir os passageiros, até à chegada no porto de Feijó.

- O nome “Arapapá” foi dado ao local do massacre, em virtude da mudança do nome da comunidade na época, para proteger seus atuais moradores, a maioria ignorando os fatos que lá se deram;
- Caxinauá também pode ser grafado como Caxinawá e significa “povo morcego”;
- O deus maior dos indígenas brasileiros (de origem tupi-guaraní) é mais conhecido por Tupã. Todavia, na Amazônia, especialmente nas regiões do rio Xingú, seu nome é Mavutsinim. O rio Envira é tributário do rio Juruá, região mediana entre o alto e médio Amazonas. Mas os deuses diferem apenas pelos nomes regionais, sendo similares suas lendas e seus feitos;
- O nome “Nezinho”, dado ao seringalista é fictício, para proteger o autor desta história, tendo em vista possíveis represálias. Sobre Pedro Biló, basta verificar com os seus descendentes ou com os moradores mais antigos de Feijó. Quanto a “Evaristo”, “Zé da Onça” e os demais, são apelidos de pistoleiros conhecidos e fazem parte também de outros relatos em outras histórias.

* Este conto faz parte do livro “Dramas da Amazônia”

** Sérgio Aparecido Dias é pastor evangélico há mais de 30 anos, tendo realizado missões evangélicas entre várias tribos indígenas da Amazônia acreana e matogrossense. Morou em Feijó, Acre, entre 1976 e 1979, ocasião em que conheceu pessoalmente Pedro Biló e falou com muitas pessoas que contaram sobre os crimes hediondos cometidos por ele alguns anos antes. Foi informado dos assassinatos dos índios, especialmente dos Caxinawá. Baseado em algumas dessas histórias, escreveu "O Massacre do Lago do Arapapá". Depois de vários anos pastoreando Igrejas em Manaus e lecionando no Seminário Batista Regular do Amazonas, aceitou o convite para pastorear uma Igreja Batista em Tefé, no médio Solimões a partir da segunda semana de Janeiro de 2011, de onde também dará assistência a 4 comunidades indígenas no rio Japurá. Apoia toda as atividades que possam auxiliar os índios, preservando-lhes a vida e defendendo-os das investidas de abutres carniceiros, à semelhança de Pedro Biló.

Foto: Paulo França, disponível no site Povos Indígenas no Brasil, da organização Socioambiental