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23 outubro 2012

HOMEM, AMAZÔNIA E ECOLOGIA: A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE DJALMA BATISTA

Isaac Melo*

Pode-se, sem falso louvor, situar Djalma Batista entre os grandes estudiosos amantes da Amazônia; um amazonófilo, utilizando-se, aqui, da expressão cunhada por Gilberto Freyre para se referir a Leandro Tocantins. A ecologia, posteriormente a integrar as ciências ecológicas, passou a ganhar feições próprias, como ciência, a partir do século XIX, adquirindo expressiva força na década de 1960, com o advento dos movimentos ambientais. Apesar de ser alvo de estudos desde tempos remotos, como os desenvolvidos, na Grécia antiga, por Hipócrates e Aristóteles, referentes à história natural, só mais recente o nosso “grande lar” passou a ser objeto de atenção e estudo científico.

A Amazônia, enquanto grande reserva natural do planeta, desde a lenda das amazonas, propagada pelo relato de Frei Gaspar de Carvajal, em 1542, sempre atraiu sobre si a curiosidade exploratório-científica, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, exemplificada, entre outras, pelas clássicas expedições naturalistas de La Condamine (1735), Alexandre Rodrigues Ferreira (1786), Martius-Spix (1817-1820), Bates-Wallace (1848), Agassiz (1865-1866). Inicialmente a natureza exercia o predomínio sobre o fator humano. Aquela era maior do que este, e o absorvia. Daí a expressão de Euclides da Cunha, em princípio do século XX, inebriado pela grandiosidade da selva frente ao homem: “O homem, ali, é ainda um intruso impertinente”. Porém, com o aumento do fluxo humano, entre outros, proporcionado pela migração, somado ao aperfeiçoamento da técnica que permitiu desenvolver novas tecnologias, a Amazônia passou a sofrer considerável impacto sobre o seu meio natural. O que antes parecia ser inviolável, indobrável, mostra-se um complexo sensível às intervenções humanas desmedidas. A Amazônia passa então a necessitar ou a exigir uma ética que regule e oriente o agir humano sobre ela. A ecologia ou as ciências ecológicas vem colaborar, nesse primeiro momento, para tal reflexão, ao conceber o homem em interação com toda a biosfera.

Djalma Batista (1916-1979) encontra-se entre aqueles que vem colocar a Amazônia na grande pauta da reflexão nacional e mesmo internacional, num momento em que a própria Amazônia passa a ser alvo da cobiça internacional, frente ao descaso governamental brasileiro, que, pode-se afirmar, não sabia como integrá-la ao restante do país. Cientista, pesquisador, escritor, literato, homem de profunda cultura, Djalma, arguto nas observações e rigoroso nos registros, distancia-se do pensamento romantizado acerca da Amazônia para lançar um olhar mais acurado e crítico, com embasamento científico, às grandes questões que se apresentavam à complexa realidade amazônica.

Médico formado pela famosa Faculdade de Medicina da Bahia (1939), quando de seu retorno à Amazônia, aos 23 anos, lança-se ao estudo dos diversos problemas que assolavam a região, entre os quais, as doenças tropicais, a hanseníase e a tuberculose, onde alcança resultados notáveis. Quando mais adiante assume a direção do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), de 1959 a 1968, irá reclamar a necessidade do desenvolvimento tecnológico da região aliado ao desenvolvimento cultural de seus habitantes.

A Amazônia de Djalma ainda é, em grande parte, desconhecida cientificamente, por isso ele afirmava que “a Amazônia, se não é o infinito, é pelo menos o indefinido” (2003, p.65), por isso a necessidade de pesquisadores para descerrar o ‘véu de Ísis’ que envolvia a região, hoje, em parte, desnudada pelos modernos satélites que exibem, com precisão, detalhes dos lugares mais remotos da planície amazônica. Por isso afirmava que a natureza amazônica não estava suficientemente conhecida e estudada, o que ainda persiste.

Djalma não encarava a Amazônia segundo os critérios tradicionais da geografia física, política ou continental, mas a partir da geografia humana. Logo percebeu o ponto nevrálgico da ocupação amazônica. Para ele, toda a história da Amazônia tinha sido, até aquele momento, uma colonização desorganizada, em que a produção extrativa era a base de todo erro estrutural da economia, devido sua condição arcaica. Compreendia que todo o processo de ocupação tinha sido uma aventura, a serviço de empreendimentos mercantis, que começaram desde a primeira hora. “A ocupação da Amazônia, nos moldes de uma política meramente imediatista, é propriamente um crime”, ressaltava o cientista (cf. 1976, p.128).

Acerca do boom gomífero, a borracha, Djalma afirmava que esta era o verdadeiro símbolo da Amazônia, contemporaneamente, cujas oscilações constituiram o fluxo e o refluxo das marés sociais e econômicas. Entrevia, no entanto, a transposição desse símbolo para o rio, em perene movimento, sempre adiante, a insinuar, a exemplificar, a impor a atividade. Hoje diríamos as rodovias, e mesmo, o transporte aéreo. Segundo ele, o alvorecer promissor de um ciclo de cultura na Amazônia, proporcionado pela borracha, não correspondeu totalmente à expectativa, pois, na economia permanecemos sempre extrativistas e predatórios, e não principiamos sequer a construir uma economia no sentido capitalista; na alimentação, deixamos os enlatados, porém, continuamos a receber quase tudo de fora, o que poderia ser cultivado em nossas terras; o comércio em geral ainda não era comércio, mas puro escambo, troca de mercadorias por gêneros. Além disso, a condição de vida do povo, em geral, não havia progredido.

O resultado da época do fastígio, a toda a Amazônia, segundo Djalma, teria sido um certo quê de novo-rico, ou de aristocrata arruinado, que levou a exibicionismos e exteriorização muito além das reais possibilidades do meio. Da saga da especiaria aliada à exploração gomífera surgiu um sacrificado, ao mesmo tempo herói e mártir, que era o homem, em cuja defesa Djalma se colocava intransigentemente. Por meio da defesa à natureza, ele chegava à defesa do homem transposto àquelas paragens. Por isso, o pensamento djalmiano se contrapõe a do ‘homem impertinente’, de Euclides da Cunha. Assevera Djalma: “Reanimando o habitante da Amazônia, através da educação, enquanto a paisagem seja defendida, é preciso aprender a tirar, do que a terra possui ou pode dar, com a aplicação de novas técnicas e de nova orientação, as vantagens e os privilégios que não soubemos ou não pudemos até agora valorizar” (1976, p.101). A floresta não é uma redoma de cristal, de aura intocável, ela poder ser manejada de forma racional em favor de seus habitantes. É possível desenvolver, preservando.

Diferente de certos ecologistas radicais hodiernos, para Djalma a floresta não deve constituir uma barreira ao desenvolvimento da Amazônia, mas ser considerada um dos mais preciosos recursos. O que tem de se criar, afirmava o pesquisador, são bases econômicas realmente estáveis, simultâneas a bases culturais, que permitam o progresso da terra e representem boas condições para sua gente, sem que se destruam as potencialidades da terra e sem que o homem seja tentado a emigrar por se sentir abandonado e sem horizontes (cf. 1979, p.291). Lição que ainda não foi assimilada de toda. Depreende-se assim, que o desenvolvimento do homem amazônico encontra-se sempre atrelado à preservação da floresta. Por isso era categórico em afirmar: “é preciso de qualquer maneira defender a ecologia amazônica” (1979, p.25).

A preservação da floresta se conjugaria com o desenvolvimento cultural do povo. Djalma atacava o subdesenvolvimento cultural como um dos principais problemas da Amazônia a ser superado: “O que sei é que o importante, na Amazônia, é preparar o povo para procurar suas próprias soluções, criadas pela experiência de seus homens devidamente esclarecidos e amadurecidos, sem cópias nem modelos alienígenas” (1976, p.213). É claro que numa reflexão atualizada, o subdesenvolvimento cultural, apesar de não está superado, poderia ser substituído pelos grandes latifúndios agro-pecuários que devastam e dominam, rápido e assombrosamente, grandes áreas na Amazônia. Por isso Djalma pregava a necessidade de se criar uma consciência da importância da natureza amazônica, que deve ser conhecida e amada, para poder ser defendida na sua ecologia, isto é, nas relações que os seres têm de guardar entre si, partindo do homem, que é o comandante lógico de todo o processo transformador.

A educação assume um lugar de destaque no pensamento djalmiano. A cultura amazônica declinava, afirmava ele, pois havia se chegado a um nível de cultura muito baixo. Por isso os seus esforços, para o estudo do “complexo amazônico”, de formar pesquisadores locais, acrescidos aos de fora, enquanto esteve à frente do INPA. Essa pobreza generalizada, agravada pelo isolamento, teria suas raízes na ausência, pouca oportunidade ou má orientação da educação, e, consequentemente, subdesenvolvimento psicossocial ou sóciocultural. Portanto, para ele, a solução estaria na educação, que levantaria o nível cultural da população, dando-lhe novos horizontes, com a valorização do trabalho e novas perspectivas de vida, que deveria ser boa e digna, em qualquer lugar; estaria também na criação de novas condições econômicas, reduzindo o extrativismo a um número suportável pela natureza, sem que esta se desgastasse de modo ameaçador como estava acontecendo (cf. 1979, p.90), e prossegue até hoje.

A cultura, a que se chegaria pela educação, seria um forte fator para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da humanidade: “Estou convicto de que só há uma força, hoje, no mundo, capaz de sustentar os ideais supremos de Liberdade, de Justiça Social e de Paz: é a cultura” (2003, p.97). Djalma prosseguia afirmando que a memória, o raciocínio, a imaginação, o espírito crítico, dependem de exercício, treinamento e estímulo: só eles poderão conduzir à ciência, à arte, à criação literária, à filosofia, ao domínio das ideias e dos fatos, isto é, à cultura, como o patrimônio espiritual de um povo. Ainda acrescentava que essa civilização só poderia surgir de um movimento de cima para baixo, isto é, do homem de estudo para a massa, e com a elevação gradual desta, através de uma sistemática e eficiente divulgação do saber. Se não havia pesquisadores e cientistas, então o que se devia fazer era formá-los. Por isso ele propunha, em primeiro plano, a organização de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Como homem de letras, chegou mesmo a expressar: “Precisamos, enfim, de poetas, de muitos poetas na Amazônia, que eternizem no verso os anseios e os sentimentos do povo” (2003, p.94). É incomum ouvir apelos assim vindos do meio científico. Mas Djalma era um devoto do homem diante do altar da natureza.

Acerca da criação de um possível Centro de Estudos Amazônicos, em tom quase poético, Djalma se deleitava com a ideia que este só lhe podia trazer o concurso, inútil porque vazio, despretensioso porque sincero, de sua mocidade, formada no culto devocional e no amor afervorado pela terra e pelo homem amazônicos: terra feiticeira e boa, portentosa e triste, que encerra o futuro da humanidade no seu seio carinhoso – no recesso ignoto de suas florestas, onde corre a seiva fecunda de uma botânica intrincada e nova, e toda uma zoologia que assombra e fascina; na trama vascular de seus caudalosos rios; no sistema nervoso de suas cidades, vilas e povoados, vibrando ao toque mágico de suas convulsões potâmicas, geológicas e econômicas (cf. 2003, p.12).

Naquele momento crítico da história brasileira, em que o governo militar passou a incentivar a ocupação da Amazônia, Djalma alertava: “Não basta para o Brasil a posse física da Amazônia, urge recuperá-la para a economia e criá-la para a cultura brasileira” (2003, p.94). Isso não queria dizer uma ocupação desorganizada e uma exploração predatória, pois o que mais o impressionava constantemente naquele momento era o desmatamento desmedido, contra o qual ergueu sua voz veementemente. Por isso ressaltava que tudo nos cumpre fazer para defendê-la, e, defendendo-a, desenvolvê-la. Considerava uma estultície pensar em reduzir toda a riqueza amazônica a dinheiro, porque, em troca dele, teríamos o deserto. Além disso, a floresta comporta valor em si mesmo. A grande esperança continuava sendo, entretanto, o despertar da consciência ecológica, assegurava.

Por fim, decorridos mais de três décadas da publicação de sua principal obra, O Complexo da Amazônia (1976), e de seu falecimento (1979), seu pensamento ainda permanece uma verdade que não se esgotou e um testemunho que não envelheceu. Um homem que levantou ardorosamente a bandeira da preservação da Amazônia, num momento em que pouco se falava ou se conhecia em relação à ecologia. A Amazônia persiste a necessitar de outros Djalmas capazes de ir além de sua época, na busca de solução e empreendimentos que ajudem cada vez mais a garantia de todos ao bem supremo da vida, numa era em que esta se vê constantemente ameaçada. Que a memória de Djalma Batista não se reduza a nomes de avenidas e escolas, mas ganhe a consciência dos homens, de quem foi defensor intransigente, pois “asseguro que nada mais sou que um dos que muito desconhecem a Amazônia, pertencendo, no entanto, ao grupo dos que almejam entendê-la e defendê-la”. O que fez de modo ímpar.

Referências

Batista, Djalma. O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Conquista, 1976.

Batista, Djalma. Amazônia, Cultura e Sociedade (Org. Tenório Teles). Manaus: Editora Valer, 2003.

* Isaac Melo, natural de Tarauacá, terra natal de Djalma Batista, é formado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Reside em Curitiba – PR.