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25 maio 2014

COMO FOI POSSÍVEL CONSTRUIR GEOGLIFOS NAS FLORESTAS ACREANAS? (I)

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Uma grande parcela das pessoas que vive no Acre sabe a dificuldade que é praticar agricultura e pecuária nesta parte da Amazônia. O primeiro grande obstáculo é a floresta, que precisa ser retirada tendo em vista que as atividades citadas não podem ser realizadas no ‘meio da mata’.

Desde a chegada dos primeiros colonizadores a Amazônia, no início do século XVII, a forma de preparo das áreas para as atividades agropecuárias na região pouco mudou: primeiro é preciso derrubar a floresta e depois eliminar a matéria vegetal resultante para limpar o terreno. No início eram usadas apenas ferramentas manuais para a derrubada da floresta. Hoje máquinas motorizadas facilitam e aceleram esse trabalho. A massa vegetal resultante da derrubada foi e tem sido eliminada mediante o uso do fogo. Não importam os meios, a retirada da floresta para a realização de atividades agropecuárias na Amazônia não dispensa o uso de mão-de-obra e a aplicação de recursos financeiros para ser realizada de forma adequada.

O cultivo de plantas e a criação de animais, com destaque para o gado, têm sido praticados desde o início da ocupação da Amazônia. Entretanto, a manutenção do terreno livre de plantas invasoras, tanto na atividade agrícola quanto na pecuária, é um dos maiores desafios para a perenidade destas atividades. O abandono de áreas agrícolas ou de pastagens durante um ou dois anos é suficiente para que a floresta comece a se regenerar rapidamente. E se providências não forem tomadas de imediato, em pouco tempo vai ser necessário derrubar e queimar novamente a floresta. É uma luta constante do homem contra a natureza.

Claro que na atualidade existe uma maior facilidade de acesso e menor custo financeiro para a aquisição de ferramentas, máquinas e produtos químicos para conter o retorno da floresta. Mas nem sempre foi assim e, com exceção das áreas de pastagens mantidas sob controle pela ação de pisoteio e pastoreio do gado e pelo uso recorrente de produtos químicos e do fogo, a maioria das áreas usadas para cultivos agrícolas na Amazônia tem sido retomada pela floresta. E os agricultores locais permitiram e permitem que isso ocorra porque os solos da Amazônia são naturalmente pouco férteis. Derrubar e queimar a floresta agrega uma riqueza temporária ao solo que permite o seu cultivo durante alguns anos.

Dito isso, coloco um desafio aos leitores. Como é possível retirar a floresta e manter aberta uma clareira com área de 5 a 10 hectares sem dispor de máquinas (motosserra e tratores) e ferramentas manuais feitas de ferro e aço (serras manuais, machados, terçados, foices e enxadas)? Considerem que a floresta a ser derrubada é formada por árvores de variados tamanhos (castanheira, aroeira) e dureza da madeira (cumaru-ferro, angelim). Considerem ainda que a derrubada e a queimada da área a ser aberta terá que ser, necessariamente, feita em uma única temporada do verão amazônico, ou seja, entre o final das chuvas (abril-maio) e o final do período seco (meados de setembro). Tentem responder também como, depois de aberta a clareira, será possível controlar a regeneração da floresta durante meses, ou talvez anos, sem dispor de máquinas, ferramentas manuais de ferro e aço, de animais de pastoreio e de produtos químicos desenvolvidos especificamente para controlar o crescimento de plantas indesejadas?

Uma coisa é certa, a abertura de uma clareira desse porte sem o uso de ferramentas e máquinas modernas durante uma estação do verão amazônico, ou seja, ao longo de um período de aproximadamente cinco meses, iria requerer um ‘exército’ de dezenas, talvez centenas, de homens fortes e bem nutridos. A manutenção da clareira aberta livre de plantas indesejadas também iria requerer atenção constante de um numeroso grupo de trabalhadores braçais. Agora adicione a este trabalho a abertura, sem uso de ferramentas e máquinas modernas, de trincheiras em formatos geométricos diversificados, algumas em forma de círculos com até 300 m de diâmetro, com vão com de até 10 m e profundidade de até 7 m.

Pois foi esse o trabalho que ‘indígenas primitivos’ que habitavam o leste do Acre há cerca de 2 mil anos atrás realizaram em dezenas de localidades, deixando como legado os geoglifos. As razões para a realização de todo esse trabalho ainda não estão completamente esclarecidas. Algumas publicações científicas sugerem que os geoglifos eram estruturas de defesa para esses grupos indígenas, outras sugerem uma função ritualístico-religiosa. Independente da destinação das estruturas, um debate latente no meio científico é a possível explicação para a forma como esses indígenas ‘domaram’ ou lidaram com a floresta para fazer as suas construções.

Mas antes de entramos nessa discussão, é importante ressaltar um aspecto pouco considerado, mas que foi crucial no processo que resultou na construção dos geoglifos: como os indígenas conseguiram alimentar o exército de homens e suas respectivas famílias (mulheres, crianças e idosos) que participaram da abertura da floresta e da construção dos Geoglifos?

Os registros arqueológicos indicam que a maioria dos assentamentos humanos mais antigos da Amazônia foi instalada em áreas de várzeas ou nas proximidades de grandes rios que cortam a região, onde os solos são mais ricos, a água é abundante, e a pesca e a prática da agricultura são facilitadas. Ocorre que a grande maioria dos geoglifos encontrados no leste do Acre foi construída nas áreas de florestas de terra firme, nos interflúvios dos rios Acre, Iquiri e Abunã. Estas regiões são tradicionalmente ‘ruins de água’ nos períodos mais secos do ano, a obtenção de proteína animal  é mais complexa e demorada (e se a caça tiver que ser feita com arco e flecha, as coias ficam ainda mais difícil), e a floresta no local geralmente tem o maior porte que se possa imaginar. Em conjunto, estes fatores contribuem para limitar a perenidade dos assentamentos humanos nesses interflúvios à temporada de chuvas e dificultam sobremaneira a abertura das clareiras. Os pequenos agrupamentos de índios isolados que habitam a região das cabeceiras dos rios Purus e Iaco são um bom exemplo disso. Até hoje migram de uma região para outra em função da sazonalidade das chuvas.

Não se sabe como os construtores dos geoglifos resolveram essa questão da alimentação de um grande número de pessoas em um ambiente teoricamente não favorável à produção agrícola primitiva em larga escala. Entretanto, a existência dos geoglifos, o legado de sua presença nas regiões de interflúvios, quebrou um antigo paradigma de que assentamentos humanos primitivos capazes de abrigar um grande número de pessoas não teriam condições de prosperar longe dos grandes rios na Amazônia. Nesse contexto, o pesquisador Alceu Ranzi, de maneira genérica, sugeriu que “os construtores de geoglifos, durante mais de mil anos, resolveram o problema das terras "fracas" e da falta dos grandes rios para navegar e buscar o alimento. Depois de satisfeitas as necessidades básicas de alimentação e segurança da família, restou tempo suficiente para o planejamento e construção destes monumentos de terra”.

[Artigo continua...]

Imagem: Geoglifo 'Quinoá', localizado nas proximidades do ponto onde o igarapé Quinoá cruza a rodovia BR-364 sentido Porto Velho, a cerca de 20 km de Rio Branco (Fonte: Google Earth, 2014).