COMO FOI POSSÍVEL CONSTRUIR GEOGLIFOS NAS FLORESTAS ACREANAS? (I)
Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano
Uma grande parcela das pessoas que vive
no Acre sabe a dificuldade que é praticar agricultura e pecuária nesta parte da
Amazônia. O primeiro grande obstáculo é a floresta, que precisa ser retirada
tendo em vista que as atividades citadas não podem ser realizadas no ‘meio da
mata’.
Desde a chegada dos primeiros
colonizadores a Amazônia, no início do século XVII, a forma de preparo das
áreas para as atividades agropecuárias na região pouco mudou: primeiro é preciso derrubar
a floresta e depois eliminar a matéria vegetal resultante para limpar o terreno.
No início eram usadas apenas ferramentas manuais para a derrubada da floresta.
Hoje máquinas motorizadas facilitam e aceleram esse trabalho. A massa vegetal
resultante da derrubada foi e tem sido eliminada mediante o uso do fogo. Não
importam os meios, a retirada da floresta para a realização de atividades
agropecuárias na Amazônia não dispensa o uso de mão-de-obra e a aplicação de recursos
financeiros para ser realizada de forma adequada.
O cultivo de plantas e a criação de
animais, com destaque para o gado, têm sido praticados desde o início da
ocupação da Amazônia. Entretanto, a manutenção do terreno livre de plantas
invasoras, tanto na atividade agrícola quanto na pecuária, é um dos maiores
desafios para a perenidade destas atividades. O abandono de áreas agrícolas ou
de pastagens durante um ou dois anos é suficiente para que a floresta comece a
se regenerar rapidamente. E se providências não forem tomadas de imediato, em
pouco tempo vai ser necessário derrubar e queimar novamente a floresta. É uma
luta constante do homem contra a natureza.
Claro que na atualidade existe uma
maior facilidade de acesso e menor custo financeiro para a aquisição de
ferramentas, máquinas e produtos químicos para conter o retorno da floresta.
Mas nem sempre foi assim e, com exceção das áreas de pastagens mantidas sob
controle pela ação de pisoteio e pastoreio do gado e pelo uso recorrente de produtos químicos e do
fogo, a maioria das áreas usadas para cultivos agrícolas na Amazônia tem sido retomada pela
floresta. E os agricultores locais permitiram e permitem que isso ocorra porque
os solos da Amazônia são naturalmente pouco férteis. Derrubar e queimar a
floresta agrega uma riqueza temporária ao solo que permite o seu cultivo
durante alguns anos.
Dito isso, coloco um desafio aos
leitores. Como é possível retirar a floresta e manter aberta uma clareira com
área de 5 a 10 hectares sem dispor de máquinas (motosserra e tratores) e ferramentas manuais feitas de ferro e aço (serras manuais, machados,
terçados, foices e enxadas)? Considerem que a floresta a ser derrubada é
formada por árvores de variados tamanhos (castanheira, aroeira) e dureza da
madeira (cumaru-ferro, angelim). Considerem ainda que a derrubada e a queimada
da área a ser aberta terá que ser, necessariamente, feita em uma única temporada do verão
amazônico, ou seja, entre o final das chuvas (abril-maio) e o final do período seco (meados de setembro). Tentem responder também como, depois de aberta a clareira, será
possível controlar a regeneração da floresta durante meses, ou talvez anos, sem
dispor de máquinas, ferramentas manuais de ferro e aço, de animais de pastoreio
e de produtos químicos desenvolvidos especificamente para controlar o crescimento
de plantas indesejadas?
Uma coisa é certa, a abertura de uma
clareira desse porte sem o uso de ferramentas e máquinas modernas durante uma
estação do verão amazônico, ou seja, ao longo de um período de aproximadamente cinco meses, iria requerer um ‘exército’ de dezenas, talvez
centenas, de homens fortes e bem nutridos. A manutenção da clareira aberta livre de
plantas indesejadas também iria requerer atenção constante de um numeroso grupo
de trabalhadores braçais. Agora adicione a este trabalho a abertura, sem uso de
ferramentas e máquinas modernas, de trincheiras em formatos geométricos
diversificados, algumas em forma de círculos com até 300 m de diâmetro, com vão
com de até 10 m e profundidade de até 7 m.
Pois foi esse o trabalho que ‘indígenas
primitivos’ que habitavam o leste do Acre há cerca de 2 mil anos atrás realizaram
em dezenas de localidades, deixando como legado os geoglifos. As razões para a
realização de todo esse trabalho ainda não estão completamente esclarecidas. Algumas
publicações científicas sugerem que os geoglifos eram estruturas de defesa para
esses grupos indígenas, outras sugerem uma função ritualístico-religiosa.
Independente da destinação das estruturas, um debate latente no meio científico
é a possível explicação para a forma como esses indígenas ‘domaram’ ou lidaram
com a floresta para fazer as suas construções.
Mas antes de entramos nessa discussão, é importante ressaltar um aspecto pouco considerado, mas que foi crucial no processo que resultou na construção dos geoglifos: como
os indígenas conseguiram alimentar o exército de homens e suas respectivas
famílias (mulheres, crianças e idosos) que participaram da abertura da floresta
e da construção dos Geoglifos?
Os registros arqueológicos indicam que
a maioria dos assentamentos humanos mais antigos da Amazônia foi instalada em
áreas de várzeas ou nas proximidades de grandes rios que cortam a região, onde
os solos são mais ricos, a água é abundante, e a pesca e a prática da agricultura são facilitadas. Ocorre que a grande maioria dos geoglifos encontrados no leste do
Acre foi construída nas áreas de florestas de terra firme, nos interflúvios dos
rios Acre, Iquiri e Abunã. Estas regiões são tradicionalmente ‘ruins de água’
nos períodos mais secos do ano, a obtenção de proteína animal é mais complexa e
demorada (e se a caça tiver que ser feita com arco e flecha, as coias ficam ainda mais difícil), e a floresta no local geralmente tem o maior porte que se possa
imaginar. Em conjunto, estes fatores contribuem para limitar a perenidade dos
assentamentos humanos nesses interflúvios à temporada de chuvas e dificultam sobremaneira a
abertura das clareiras. Os pequenos agrupamentos de índios isolados que habitam
a região das cabeceiras dos rios Purus e Iaco são um bom exemplo disso. Até
hoje migram de uma região para outra em função da sazonalidade das chuvas.
Não se sabe como os construtores dos
geoglifos resolveram essa questão da alimentação de um grande número de pessoas
em um ambiente teoricamente não favorável à produção agrícola primitiva em
larga escala. Entretanto, a existência dos geoglifos, o legado de sua presença
nas regiões de interflúvios, quebrou um antigo paradigma de que assentamentos
humanos primitivos capazes de abrigar um grande número de pessoas não teriam condições de prosperar longe dos
grandes rios na Amazônia. Nesse contexto, o pesquisador Alceu Ranzi, de maneira
genérica, sugeriu que “os construtores de geoglifos, durante mais de mil anos,
resolveram o problema das terras "fracas" e da falta dos grandes rios
para navegar e buscar o alimento. Depois de satisfeitas as necessidades básicas
de alimentação e segurança da família, restou tempo suficiente para o
planejamento e construção destes monumentos de terra”.
[Artigo continua...]
Imagem: Geoglifo 'Quinoá', localizado nas proximidades do ponto onde o igarapé Quinoá cruza a rodovia BR-364 sentido Porto Velho, a cerca de 20 km de Rio Branco (Fonte: Google Earth, 2014).
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