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27 maio 2014

COMO FOI POSSÍVEL CONSTRUIR GEOGLIFOS NAS FLORESTAS ACREANAS? (II)

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

O argumento de que os indígenas levaram mil anos para resolver o problema das ‘terras fracas’ da Amazônia, ou seja, desenvolver técnicas agrícolas para alimentar grandes contingentes populacionais em áreas de florestas de terra-firme onde foram construídos os geoglifos não se sustenta porque essas técnicas deveriam ter sido herdadas por seus descendentes, contemporâneos dos primeiros exploradores espanhóis e portugueses que adentraram a Amazônia no início do século XVII. Se isso tivesse acontecido, esses povos deveriam ter prosperado e formado assentamentos perenes, mas os primeiros exploradores encontraram apenas pequenos grupamentos nômades sobrevivendo da caça e da pesca, em sua maioria habitando as margens dos grandes rios da região.

Nessa altura os geoglifos já haviam sido ‘engolidos’ pela floresta e sua existência só seria revelada no final do século XX. É como se os povos construtores dessas estruturas magníficas, que dominaram uma ampla região no limite sul-ocidental da Amazônia, tivessem desaparecido de forma rápida em um evento pré-colombiano catastrófico – doença? – sem deixar descendentes que pudessem continuar as suas práticas culturais, construtivas e de manejo da floresta.

A chegada do homem no sul da Amazônia deve ter acontecido por volta de 10 mil anos atrás, no final da última glaciação. Antes da glaciação, a paisagem local era dominada por extensas savanas que abrigavam uma megafauna diversa composta por preguiças e jacarés gigantes, tatus ‘do tamanho de um fusca’, e outros herbívoros igualmente grandiosos. O aquecimento ao final da glaciação permitiu a rápida ocupação de toda a região por florestas tropicais abertas e densas. E foi nesse novo ambiente que há cerca de 2-3 mil anos atrás os geoglifos foram construídos. Portanto, os seus construtores não tiveram outra opção, mas ‘enfrentar’ a floresta para realizar suas obras.

Estudos já demonstraram que o desmatamento de um hectare de floresta usando machados feitos de pedra demandam grande tempo e uma quantidade imensa de mão-de-obra: 1.883 homem/hora. Embora a mobilização de tal contingente não tenha sido de todo impossível no passado, o principal fator limitante para tal empreendimento seria a alimentação desse batalhão de pessoas e respectivas famílias. Como produzir grãos, raízes e proteína animal em quantidade suficiente para alimentar adequadamente a todos?

Vários pesquisadores tem procurado uma explicação lógica para entender como os construtores dos geoglifos tiveram sucesso em sua empreitada trabalhando em um ambiente francamente desfavorável. E uma das que me chamou mais a atenção foi a proposta por pesquisadores da Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos, publicada em um artigo na edição de abril da revista Journal of Biogeography. Nesse artigo, tendo como base imagens de satélite e uma série de dados ambientais (temperatura, precipitação, características dos solos, elevação, etc) eles modelaram a distribuição presente das florestas com bambu (Guadua spp.) e dos geoglifos no sudoeste da Amazônia e encontraram uma forte associação entre a localização dos geoglifos e florestas dominadas pelo bambu. É importante observar que nesta região as florestas com bambu são muito comuns nas regiões dos interflúvios, popularmente conhecidas como terra-firme ou 'centro', na linguagem dos extrativistas da região.

Sabe-se que as populações de bambu morrem de forma sincrônica porque elas são clonais, ligadas por um complexo e extenso sistema rizomatoso subterrâneo. Assim, quando esse rizoma morre, todos os colmos de bambu ligados a ele morrem juntos. Um estudo recente determinou que a longevidade dos bambuzais no sudoeste da Amazônia varia entre 27 e 28 anos e que o tamanho médio dos mesmos é de 330 km², sendo que o maior deles ocupava uma extensão de 2.750 km². Quando uma dessas populações de bambu morre, uma grande quantidade de massa vegetal inflamável se deposita sobre o solo da floresta. E se esse evento acontece no auge do período seco, a probabilidade de realizar uma queimada eficiente e quase completa da floresta é elevada. Dessa forma, conforme sugerido pelos pesquisadores da Universidade de New Hampshire, a eliminação da floresta é imensamente facilitada.

De fato, as florestas com bambu são muito diferentes de outras florestas na região. Elas apresentam-se estruturalmente alteradas, especialmente nos estratos intermediários e no dossel, possuem menor riqueza florística e densidade de árvores, e a redução da área basal arbórea total varia entre 30 e 50%. A presença do bambu reduz em até 39% a biomassa aérea da floresta e entre 30-50% o potencial de armazenamento de carbono. O bambu também pode afetar o influxo de outras espécies arbóreas, enfraquecer a habilidade competitiva das espécies com baixa capacidade de adaptação e reduzir em quase 40% o número de espécies na amostra de um hectare. Inventários realizados em florestas com bambu no Acre revelaram uma densidade mínima de 300 árvores/hectare (diâmetro a altura do peito igual ou superior a 10 cm), enquanto nas florestas sem bambu esse número pode passar de 600/hectare.

Pode-se, portanto, pensar que os construtores dos geoglifos eram povos sistemáticos que monitoravam diversos bambuzais e que tinham ideia aproximada de quando a morte dos mesmos iria acontecer. Com paciência de sobra e um pouco de sorte, a morte de um ou outro bambuzal eventualmente ocorria no período mais seco do ano. Nessa condição, a queimada da floresta era facilitada e a eliminação da maior parte da vegetação era feita pelo fogo, restando aos indígenas apenas a derrubada das árvores de maior porte, que nas florestas com bambu são em número significativamente inferior ao de outros tipos de florestas.

A queimada das florestas nas quais o bambu morria colocava à disposição dos indígenas construtores dos geoglifos dezenas, talvez centenas de hectares de solos favoráveis aos mais diversos cultivos agrícolas visto que a queimada das plantas adiciona uma riqueza temporária ao solo, permitindo o seu uso por 2-3 anos, nos moldes do sistema de derruba e queima praticado pelos pequenos agricultores da atualidade. Nestas mesmas áreas os geoglifos eram construídos.

Dessa forma, é possível pensar que os povos construtores de geoglifos eram itinerantes (nômades) e essa itinerância era guiada pela dinâmica da mortandade das populações de bambu. Da mesma forma é possível supor que a extensão das clareiras abertas por este comportamento oportunístico dos indígenas era sempre suficiente para suportar a população existente no momento.

O que ainda permanece um mistério completo é a razão para a construção de tantos geoglifos. Alguns pesquisadores tem sugerido que eles tinham função de proteção, moradia e mesmo canais de irrigação para a agricultura. Por ora, penso, como uns poucos, que os geoglifos tinham um caráter sagrado. E me arrisco a especular que foram construídos como forma de agradecimento aos deuses pela dádiva que a morte recorrente dos bambuzais na região representava: a continuidade da sobrevivência desses povos. 

Imagem: Geoglifo 'Quinoá', localizado nas proximidades do ponto onde o igarapé Quinoá cruza a rodovia BR-364, sentido Porto Velho, a cerca de 20 km da cidade de Rio Branco (Fonte: Google Earth).