SERINGUEIROS ACREANOS: LIDERANÇAS, ESTRATÉGIAS, VISIBILIDADE, REIVINDICAÇÕES E AMBIENTALISMO
Parte 2
Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas (*)
Mauro W. Barbosa de Almeida
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP
(*) Originalmente publicado na Rev. Bras. Ci. Soc. vol.19 no.55, São Paulo, Junho de 2004.
Conflitos no Rio Tejo: Chico Ginu
O rio Tejo pertencia ao município de Cruzeiro do Sul no oeste acreano e contava com um Sindicato de Trabalhadores Rurais desde 1979, resultado de um processo de sindicalização conduzido por João Maia. Em 1981, havia delegados sindicais em regiões banhadas por dois afluentes do rio Tejo – rio Bagé e Riozinho da Restauração –, alguns deles com experiência na Revolta do Alagoas, uma greve de seringueiros do município vizinho de Tarauacá, num seringal cujos fundos eram os divisores de água do alto Tejo. Os moradores pobres, e mesmo os patrões menores, viam esses delegados com respeito, como representantes de uma instituição desconhecida, mas que era apoiada pelo governo federal e pelas leis. O principal delegado sindical no alto Tejo, no Riozinho da Restauração, chamava-se João Claudino, um seringueiro que viera com alguns companheiros do seringal Alagoas.
Em 1982, quando cheguei no Riozinho da Restauração, a reputação de Claudino era imensa. No ano anterior, contavam, ele havia liderado um grupo de seringueiros numa demonstração de força junto ao barracão, e, em conseqüência, haviam conseguido a redução ou o cancelamento de algumas delas, como forma de compensar as "injustiças". Lembremos que desde 1980, com o falecimento de Armando Geraldo, o alto Tejo, cujos proprietários moravam em São Paulo, encontrava-se sem "patrões fortes". O patrão local, Valdemar, teve, então, de ceder às exigências dos seringueiros, segundo alguns relatos, rangendo os dentes. O próprio Valdemar contou-me as humilhações por que passou, tendo que aceder a reivindicações dos fregueses.
João Claudino foi mais longe. Instruiu os seringueiros para que parassem de pagar a renda das estradas de seringa, já que os patrões nunca haviam exibido documentos de propriedade. Claudino começou também a construir uma enorme casa de madeira, cercada por um grande roçado de mandioca. A casa serviria como hospedaria e local de reuniões do sindicato, e o roçado proporcionaria alimento. Além disso, sugeriu uma coleta para comprar um batelão, com o qual os seringueiros poderiam levar sua borracha de saldo para vender diretamente na cidade.
As ações de João Claudino feriam dois dogmas centrais no sistema de seringal: o monopólio comercial e a renda das estradas de seringa. Em 1982, Sebastião Correa, comerciante urbano, visitou o Tejo para operações comerciais de regatão, sabendo de antemão que o rio estava "sem dono". No mesmo ano, voltou ao Tejo, agora para ocupar o barracão da Restauração como um novo "patrão forte". A princípio Sebastião Correa pareceu tolerar João Claudino. Os seringueiros depararam-se, no primeiro ano, com um barracão abarrotado de mercadorias, e o próprio João Claudino foi estimulado a comprar fiado. Ao mesmo tempo, em Cruzeiro do Sul, o presidente do sindicato de trabalhadores rurais avisou Claudino de que "a renda da estrada de seringa era sagrada".
Sebastião ofereceu a Claudino a função de cobrar a renda de 1983, e Claudino, já muito endividado com o novo patrão, aceitou. Mas Sebastião instruía os seringueiros a não pagarem a Claudino. Como conseqüência, no final de 1983, Claudino, bastante endividado, aceitou a oferta de Sebastião para deixar o seringal e assumir o posto de administrador de outro seringal. Com isso, o sindicato sofreu uma desmoralização aguda: todos os seringueiros sabiam que o presidente do sindicato havia sido comprado pelo novo patrão.
Entretanto, Claudino tinha seguidores no interior do sindicato. Um deles era Chico do Ginu, um seringueiro humilde originário de uma família de migrantes cearenses e mulheres indígenas, habitantes do rio Manteiga, vizinho ao Riozinho da Restauração. Chico do Ginu, ou simplesmente Chico Ginu, nunca se deixou subornar, dando continuidade à atividade sindical que aprendera com Claudino. Em 1985, Sebastião Correa deixou o seringal e foi sucedido por Orleir Cameli como arrendatário da Santana Empreendimentos. No ano seguinte, temendo não receber as dívidas dos seringueiros ao fim do período de arrendamento trienal – a forma de obter aumento de produção era encher o barracão de mercadorias e criar dívidas elevadas nos primeiros anos –, Cameli contratou uma equipe de soldados de Cruzeiro do Sul, que, durante os momentos de folga, passou a agir capitaneada pelo capataz Manuel "Banha".
Essa tropa pseudo-policial começou a cobrar as dívidas com violência nas próprias casas dos seringueiros, levando, quando achavam necessário, bens como forma de pagamento forçado, como máquinas de costura e até vacas leiteiras, espancando moradores e interrogando crianças para relevar esconderijos de borracha. Quando visitei o rio Tejo entre julho e agosto de 1997, o sindicato tinha readquirido respeito, porque Chico Ginu, mobilizando um grupo de seringueiros, conseguira a retirada dessa tropa. Utilizando uma tática empregada em 1981 por João Claudino, o grupo reunia-se na sede do barracão. Diante de aproximadamente cinqüenta seringueiros (vale lembrar que todo seringueiro andava armado pelos caminhos da floresta, com faca e talvez espingarda), a tropa de meia dúzia de policiais em função ilegal recuou e retirou-se do seringal. Era uma nova demonstração de força do sindicato junto ao barracão.9
Acompanhei algumas das reuniões sindicais de Ginu nas matas do rio Manteiga e do Riozinho da Restauração, durante o período que lá permaneci. Um dos motivos de preocupação de Ginu era a falta de zelo dos novos patrões para com o seringal. Cameli estava mais interessado em madeira do que em borracha. Os seringueiros eram estimulados a procurar o máximo de leite das seringueiras, mesmo que para isso tivessem de destruir as árvores. Mas Ginu dizia nas reuniões que quem matava assim as seringueiras estava matando a própria mãe, que os havia criado com seu leite. Ele repreendia os ambiciosos, lembrando a eles as obrigações de zelar pelas estradas, como se, na ausência de outra autoridade, o sindicato fosse responsável por proteger a floresta. Em suas palavras: "De que os filhos e netos viveriam no futuro?".
Dizia-se que a mãe da seringueira mostrava na bela face as cicatrizes do tratamento por maus seringueiros, e castigava os abusos, assim como a mãe da caça se ressentia de caçadores que insultavam a caça e não respeitavam dias protegidos. Chico Ginu e os seringueiros veteranos não estavam apenas protestando contra a exploração de pessoas, mas também contra a exploração da natureza pelos homens. Seus argumentos fundamentavam-se em convicções profundamente arraigadas no dia-a-dia dos habitantes do alto Tejo, as quais permanecem em vigor até os dias de hoje. Os seringueiros da região trabalham em uma floresta que pensam ser administrada por mães/pais da caça, que castigam de diversas maneiras caçadores que transgridem princípios imanentes a uma ordem em que humanos e não-humanos se relacionam, sem solução de continuidade. Nessa ordem social-natural, um animal abatido na floresta não deve ser insultado, sob pena de trazer para o caçador a condição de panema – isto é, torná-lo incapaz de obter caça e, portanto, alimento no futuro.
É possível, na mesma ordem de coisas, fazer pactos (ou pautas) com esses pais-mães da floresta, seja para ser feliz na caça, seja para se tornar um seringueiro produtivo. Isso acontecia no caso das mães-da-seringueira. Os rios são habitados por caboclinhos e por seres encantados. Há animais com encante, e que não podem ser abatidos. A circulação dos animais da mata entre vizinhos obedece, por fim, regras estritas de reciprocidade, e como o consumo impróprio da carne assim doada pode também representar insulto e tornar o doador panema, as relações de reciprocidade requerem a cooperação de todos no respeito aos animais trazidos da mata.
Isso poderia sugerir crenças no sobrenatural. Mas não é o caso. As idéias de panema não eram consideradas superstição por meu pai, quando já havia subido na escala social e se tornara bancário em Brasília; nem para Osmarino Amâncio, líder sindical, futuro fundador do PSTU, quando me explicava que não se tratava de superstição, mas de fatos empíricos.10 Os seringueiros não encontram dificuldades em entender que nós, da cidade, acreditamos em toda sorte de entidades invisíveis que afetam nossos corpos e que estão presentes no que comemos – germes, bactérias, vírus e assim por diante. Eles convivem, analogamente, com entidades invisíveis, cujos efeitos são observados por eles em seu cotidiano. Em suma, quando Chico Ginu trouxe para a reunião o tema das "reservas extrativistas", não precisou de nenhuma explicação detalhada dada por gente de fora, nem de cursos de ecologia. Ele sabia imediatamente do que se tratava – em sua própria ordem do mundo.11 Era ele quem me explicava agora, sob seu ponto de vista, o significado de proteger a natureza. A idéia de que havia agora um "apoio federal" para proteger as seringueiras foi introduzida por ele no discurso local contra o patrão, discurso que tinha seus próprios fundamentos ontológicos e não era uma mera imitação de minha fala de pesquisador que trazia na ocasião a notícia de novas "leis".
Chico Mendes
Em Xapuri e Brasiléia, o sindicato rural impediu, por meio do movimento conhecido como "empates",12 a derrubada de florestas habitadas por seringueiros, feita por peões armados de moto-serras. Em Xapuri, o movimento sindical tinha apoio da igreja católica progressista, de partidos de esquerda, como o PCdoB, e de organizações não-governamentais, como o Centro de Trabalhadores da Amazônia. O problema era que os "empates", por volta de 1985, tinham passado à defensiva, ou seja, não conseguiam responder à escalada das queimadas e da violência. Por esta razão Chico Mendes começou a buscar apoio e aliados externos, recorrendo cada vez mais a táticas gandhianas de ação direta com alta visibilidade. Em 1986, no "empate" da Bordon, ele liderou cerca cem seringueiros, que caminharam durante três dias pelas coivaras enegrecidas e fumegantes de florestas recém-queimadas, desviando-se da polícia militar e espantando peões de moto-serra, até que o cerco em torno deles se fechou, com o retorno, em marcha forçada, a Xapuri.
Antes da marcha, porém, Chico Mendes havia convocado, em reunião pública em Rio Branco, o apoio de moradores da cidade para um "empate de alto nível", para o qual ele queria repercussão nacional. Conseguiu a presença de um fotógrafo, dois agrônomos, um antropólogo e de uma jovem professora sindicalizada, Marina Silva. Quando as diferentes colunas formadas a partir da divisão do "empate" retornaram à cidade, aparentemente derrotadas, os participantes ocuparam a sede do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, e logo foram cercados pela polícia militar. Enquanto isso, Chico Mendes convocava por telefone a imprensa nacional presente em Rio Branco e, ao mesmo tempo, enviava companheiros aos seringais para chamar mais seringueiros para a cidade. Chico disse aos jornalistas que havia mais de cem seringueiros na sede do IBDF, mas precisava tomar providências para que eles realmente estivessem lá quando chegasse a imprensa. Enquanto a tensão crescia, em meio a ameaças da iminente invasão armada, Chico Mendes esperava novos negociadores, da igreja e do parlamento, assim como da imprensa. No último minuto, por assim dizer, foi firmado um acordo entre os seringueiros e o governo.
No início de 1985, para aumentar a visibilidade das lutas dos seringueiros, Chico Mendes buscou o apoio de sua amiga, a antropóloga Mary Allegretti, que depois de alguns anos de colaboração com o CTA vivia em Brasília. Allegretti havia estudado em sua dissertação de mestrado o seringal de Alagoas, em Tarauacá, e tinha um forte comprometimento com a causa dos seringueiros. Assim, não poupou esforços para promover um evento de impacto que respondesse às expectativas de Chico Mendes. De um lado, embora não se tratasse de um evento sindical, podia-se observar na platéia e na constituição das mesas de discussão a presença de líderes sindicais vindos de lugares remotos da Amazônia, como Novo Aripuanã, no rio Madeira, Carauari, no médio Juruá, Brasiléia e Xapuri, no Acre, Ariquemes, em Rondônia, e Cruzeiro do Sul, no oeste acreano, para mencionar apenas alguns dos delegados.
De outro lado, também foi marcante a presença de deputados e senadores, burocratas e técnicos, professores e estudantes, tanto no público como nas mesas, apesar de o seminário não ter um perfil acadêmico. Os seringueiros falavam sobre a violência de patrões e liam numa espécie de ladainha longas listas de preços cobrados nos seringais para ilustrar pelo contraste com os preços da cidade, a exploração de que eram vítimas. As autoridades escutavam-nos com uma mistura de fascínio, pelo exotismo das canções e dos poemas, e desconcerto, pelas reivindicações que pareciam anacrônicas e impossíveis de serem atendidas: o sonho dos seringueiros era transformar a Amazônia no que já fora no passado, uma abastecedora mundial de borracha.
O formato peculiar desse acontecimento criou não só constrangimento e vergonha, mas, sobretudo, revelação. Forçou as autoridades e os políticos a revelarem sua absoluta falta de planos em relação aos seringueiros, e mesmo sua ignorância sobre a própria existência dos seringueiros. Os especialistas não puderam mais escamotear sua visão pessimista acerca do futuro daquele movimento peculiar. O efeito de visibilidade visado por Chico Mendes fora atingido, mas no sentido inverso ao pretendido: em vez de tornar os seringueiros visíveis publicamente, a indiferença do governo é que subitamente veio à tona, sobretudo para os seringueiros.
Eles haviam chegado a Brasília acreditando que a borracha era "a riqueza do mundo", e que eles eram necessários à riqueza nacional como os únicos produtores da melhor borracha do mundo. De onde mais viria o dinheiro, senão da borracha? Como era possível que ministros e senadores não soubessem sequer o que era um seringueiro? Várias delegações exigiram uma reforma agrária adequada para os seringueiros, o que significava manter a integridade das estradas de seringa, o que implicava em módulos familiares de 400 a 600 hectares de floresta.
O documento final do encontro mencionou pela primeira vez a expressão "reservas extrativistas", cunhada por um grupo de trabalho formado por representantes do estado de Rondônia. O sentido era, por analogia às "reservas (de) indígenas", o de terras reservadas para trabalhadores extrativistas. Ademais, ocorreram outros fatos imprevistos, como a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Na última noite do encontro, antes de começarem a viagem de retorno, os seringueiros criaram esse conselho como forma de protesto, já que na véspera não tinham conseguido assistir às reuniões do Conselho Nacional da Borracha.
Uma evidência de que esse "conselho" não fora planejado, nem recebeu muita atenção na época é o fato de Chico Mendes, o principal líder da reunião, não pertencer a seus quadros "virtuais" nos primeiros anos, de 1985 a 1987. O presidente era Jaime Araújo, um obscuro mas eloqüente sindicalista do município de Novo Aripuanã, no rio Madeira, que hipnotizava o público com sua linguagem poética e rica em referências à floresta. Além disso, o fato de o presidente ser representante de uma delegação que continha apenas duas pessoas, em contraposição à delegação acreana com setenta membros, é outro indício do caráter improvisado desse conselho. Em suma, naquele momento o Conselho tinha um papel simbólico, mas sem real importância política.
O CNS reuniu-se algumas vezes após o encontro de Brasília, com recursos da OXFAM, uma organização não-governamental sediada na Inglaterra. Uma reunião de especial significado ocorreu em dezembro de 1996, no município de Brasiléia, numa paisagem rural marcada por castanheiras sobreviventes em meio à floresta devastada. Por sugestão de Mary Allegretti, fiz nessa ocasião um relato sobre o estado da economia da borracha na Amazônia, para expor aos seringueiros a conjuntura histórica e nacional que envolvia a questão e cuja síntese reproduzo aqui.
Durante o auge do ciclo da borracha, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, a Amazônia brasileira produzia cerca de 40 toneladas de borracha por ano. Com a recuperação da produção, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, a floresta atingiu e manteve uma marca entre 20 mil e 30 mil toneladas anuais. Contudo, na década de 1950, só a indústria de pneumáticos no Brasil consumia mais de 300 mil toneladas de borracha por ano, sendo que 120 mil eram importadas da Malásia e de outros países asiáticos. A borracha importada que chegava ao porto de Santos era muito mais barata e de melhor qualidade do que o produto da Amazônia que aportava em São Paulo. A perspectiva de crescimento da produção nacional de borracha não mais estava associada à Amazônia, mas ao planalto paulista, ao sul da Bahia e ao estado de Mato Grosso.
Desde 1945, preços administrados e quotas impostas haviam protegido a borracha amazônica, tornando-a lucrativa para aqueles que detinham o comércio na Amazônia. Entretanto, a partir de 1985 as novas políticas governamentais visavam abrir mercados e suprimir subsídios. Além disso, os antigos patrões começaram a vender seus títulos e novos interesses ligados à criação de gado e à exploração de madeira ocupavam progressivamente a região. Era um quadro cruel mas necessário para elucidar aquilo que os políticos e as autoridades tinham em mente quando olhavam surpresos e embaraçados para os seringueiros, mas que não ousavam dizer com clareza.
Após a exposição, o silêncio que se seguiu foi quebrado com uma pergunta de Osmarino Rodrigues, um dos mais radicais sindicalistas-seringueiros. Dirigindo-se aos "assessores" – como eram chamados antropólogos, advogados e historiadores presentes na reunião – ele disse: "Eu gosto de perguntar o significado de palavras que não conheço. Ouvi falar em ecologia. O que é ecologia?". Ele sabia onde queria chegar. E continuou depois da resposta: "Se não querem nossa borracha, podemos oferecer essa ecologia. Isso nós sempre fizemos".
Continua...
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Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas (*)
Mauro W. Barbosa de Almeida
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP
(*) Originalmente publicado na Rev. Bras. Ci. Soc. vol.19 no.55, São Paulo, Junho de 2004.
Conflitos no Rio Tejo: Chico Ginu
O rio Tejo pertencia ao município de Cruzeiro do Sul no oeste acreano e contava com um Sindicato de Trabalhadores Rurais desde 1979, resultado de um processo de sindicalização conduzido por João Maia. Em 1981, havia delegados sindicais em regiões banhadas por dois afluentes do rio Tejo – rio Bagé e Riozinho da Restauração –, alguns deles com experiência na Revolta do Alagoas, uma greve de seringueiros do município vizinho de Tarauacá, num seringal cujos fundos eram os divisores de água do alto Tejo. Os moradores pobres, e mesmo os patrões menores, viam esses delegados com respeito, como representantes de uma instituição desconhecida, mas que era apoiada pelo governo federal e pelas leis. O principal delegado sindical no alto Tejo, no Riozinho da Restauração, chamava-se João Claudino, um seringueiro que viera com alguns companheiros do seringal Alagoas.
Em 1982, quando cheguei no Riozinho da Restauração, a reputação de Claudino era imensa. No ano anterior, contavam, ele havia liderado um grupo de seringueiros numa demonstração de força junto ao barracão, e, em conseqüência, haviam conseguido a redução ou o cancelamento de algumas delas, como forma de compensar as "injustiças". Lembremos que desde 1980, com o falecimento de Armando Geraldo, o alto Tejo, cujos proprietários moravam em São Paulo, encontrava-se sem "patrões fortes". O patrão local, Valdemar, teve, então, de ceder às exigências dos seringueiros, segundo alguns relatos, rangendo os dentes. O próprio Valdemar contou-me as humilhações por que passou, tendo que aceder a reivindicações dos fregueses.
João Claudino foi mais longe. Instruiu os seringueiros para que parassem de pagar a renda das estradas de seringa, já que os patrões nunca haviam exibido documentos de propriedade. Claudino começou também a construir uma enorme casa de madeira, cercada por um grande roçado de mandioca. A casa serviria como hospedaria e local de reuniões do sindicato, e o roçado proporcionaria alimento. Além disso, sugeriu uma coleta para comprar um batelão, com o qual os seringueiros poderiam levar sua borracha de saldo para vender diretamente na cidade.
As ações de João Claudino feriam dois dogmas centrais no sistema de seringal: o monopólio comercial e a renda das estradas de seringa. Em 1982, Sebastião Correa, comerciante urbano, visitou o Tejo para operações comerciais de regatão, sabendo de antemão que o rio estava "sem dono". No mesmo ano, voltou ao Tejo, agora para ocupar o barracão da Restauração como um novo "patrão forte". A princípio Sebastião Correa pareceu tolerar João Claudino. Os seringueiros depararam-se, no primeiro ano, com um barracão abarrotado de mercadorias, e o próprio João Claudino foi estimulado a comprar fiado. Ao mesmo tempo, em Cruzeiro do Sul, o presidente do sindicato de trabalhadores rurais avisou Claudino de que "a renda da estrada de seringa era sagrada".
Sebastião ofereceu a Claudino a função de cobrar a renda de 1983, e Claudino, já muito endividado com o novo patrão, aceitou. Mas Sebastião instruía os seringueiros a não pagarem a Claudino. Como conseqüência, no final de 1983, Claudino, bastante endividado, aceitou a oferta de Sebastião para deixar o seringal e assumir o posto de administrador de outro seringal. Com isso, o sindicato sofreu uma desmoralização aguda: todos os seringueiros sabiam que o presidente do sindicato havia sido comprado pelo novo patrão.
Entretanto, Claudino tinha seguidores no interior do sindicato. Um deles era Chico do Ginu, um seringueiro humilde originário de uma família de migrantes cearenses e mulheres indígenas, habitantes do rio Manteiga, vizinho ao Riozinho da Restauração. Chico do Ginu, ou simplesmente Chico Ginu, nunca se deixou subornar, dando continuidade à atividade sindical que aprendera com Claudino. Em 1985, Sebastião Correa deixou o seringal e foi sucedido por Orleir Cameli como arrendatário da Santana Empreendimentos. No ano seguinte, temendo não receber as dívidas dos seringueiros ao fim do período de arrendamento trienal – a forma de obter aumento de produção era encher o barracão de mercadorias e criar dívidas elevadas nos primeiros anos –, Cameli contratou uma equipe de soldados de Cruzeiro do Sul, que, durante os momentos de folga, passou a agir capitaneada pelo capataz Manuel "Banha".
Essa tropa pseudo-policial começou a cobrar as dívidas com violência nas próprias casas dos seringueiros, levando, quando achavam necessário, bens como forma de pagamento forçado, como máquinas de costura e até vacas leiteiras, espancando moradores e interrogando crianças para relevar esconderijos de borracha. Quando visitei o rio Tejo entre julho e agosto de 1997, o sindicato tinha readquirido respeito, porque Chico Ginu, mobilizando um grupo de seringueiros, conseguira a retirada dessa tropa. Utilizando uma tática empregada em 1981 por João Claudino, o grupo reunia-se na sede do barracão. Diante de aproximadamente cinqüenta seringueiros (vale lembrar que todo seringueiro andava armado pelos caminhos da floresta, com faca e talvez espingarda), a tropa de meia dúzia de policiais em função ilegal recuou e retirou-se do seringal. Era uma nova demonstração de força do sindicato junto ao barracão.9
Acompanhei algumas das reuniões sindicais de Ginu nas matas do rio Manteiga e do Riozinho da Restauração, durante o período que lá permaneci. Um dos motivos de preocupação de Ginu era a falta de zelo dos novos patrões para com o seringal. Cameli estava mais interessado em madeira do que em borracha. Os seringueiros eram estimulados a procurar o máximo de leite das seringueiras, mesmo que para isso tivessem de destruir as árvores. Mas Ginu dizia nas reuniões que quem matava assim as seringueiras estava matando a própria mãe, que os havia criado com seu leite. Ele repreendia os ambiciosos, lembrando a eles as obrigações de zelar pelas estradas, como se, na ausência de outra autoridade, o sindicato fosse responsável por proteger a floresta. Em suas palavras: "De que os filhos e netos viveriam no futuro?".
Dizia-se que a mãe da seringueira mostrava na bela face as cicatrizes do tratamento por maus seringueiros, e castigava os abusos, assim como a mãe da caça se ressentia de caçadores que insultavam a caça e não respeitavam dias protegidos. Chico Ginu e os seringueiros veteranos não estavam apenas protestando contra a exploração de pessoas, mas também contra a exploração da natureza pelos homens. Seus argumentos fundamentavam-se em convicções profundamente arraigadas no dia-a-dia dos habitantes do alto Tejo, as quais permanecem em vigor até os dias de hoje. Os seringueiros da região trabalham em uma floresta que pensam ser administrada por mães/pais da caça, que castigam de diversas maneiras caçadores que transgridem princípios imanentes a uma ordem em que humanos e não-humanos se relacionam, sem solução de continuidade. Nessa ordem social-natural, um animal abatido na floresta não deve ser insultado, sob pena de trazer para o caçador a condição de panema – isto é, torná-lo incapaz de obter caça e, portanto, alimento no futuro.
É possível, na mesma ordem de coisas, fazer pactos (ou pautas) com esses pais-mães da floresta, seja para ser feliz na caça, seja para se tornar um seringueiro produtivo. Isso acontecia no caso das mães-da-seringueira. Os rios são habitados por caboclinhos e por seres encantados. Há animais com encante, e que não podem ser abatidos. A circulação dos animais da mata entre vizinhos obedece, por fim, regras estritas de reciprocidade, e como o consumo impróprio da carne assim doada pode também representar insulto e tornar o doador panema, as relações de reciprocidade requerem a cooperação de todos no respeito aos animais trazidos da mata.
Isso poderia sugerir crenças no sobrenatural. Mas não é o caso. As idéias de panema não eram consideradas superstição por meu pai, quando já havia subido na escala social e se tornara bancário em Brasília; nem para Osmarino Amâncio, líder sindical, futuro fundador do PSTU, quando me explicava que não se tratava de superstição, mas de fatos empíricos.10 Os seringueiros não encontram dificuldades em entender que nós, da cidade, acreditamos em toda sorte de entidades invisíveis que afetam nossos corpos e que estão presentes no que comemos – germes, bactérias, vírus e assim por diante. Eles convivem, analogamente, com entidades invisíveis, cujos efeitos são observados por eles em seu cotidiano. Em suma, quando Chico Ginu trouxe para a reunião o tema das "reservas extrativistas", não precisou de nenhuma explicação detalhada dada por gente de fora, nem de cursos de ecologia. Ele sabia imediatamente do que se tratava – em sua própria ordem do mundo.11 Era ele quem me explicava agora, sob seu ponto de vista, o significado de proteger a natureza. A idéia de que havia agora um "apoio federal" para proteger as seringueiras foi introduzida por ele no discurso local contra o patrão, discurso que tinha seus próprios fundamentos ontológicos e não era uma mera imitação de minha fala de pesquisador que trazia na ocasião a notícia de novas "leis".
Chico Mendes
Em Xapuri e Brasiléia, o sindicato rural impediu, por meio do movimento conhecido como "empates",12 a derrubada de florestas habitadas por seringueiros, feita por peões armados de moto-serras. Em Xapuri, o movimento sindical tinha apoio da igreja católica progressista, de partidos de esquerda, como o PCdoB, e de organizações não-governamentais, como o Centro de Trabalhadores da Amazônia. O problema era que os "empates", por volta de 1985, tinham passado à defensiva, ou seja, não conseguiam responder à escalada das queimadas e da violência. Por esta razão Chico Mendes começou a buscar apoio e aliados externos, recorrendo cada vez mais a táticas gandhianas de ação direta com alta visibilidade. Em 1986, no "empate" da Bordon, ele liderou cerca cem seringueiros, que caminharam durante três dias pelas coivaras enegrecidas e fumegantes de florestas recém-queimadas, desviando-se da polícia militar e espantando peões de moto-serra, até que o cerco em torno deles se fechou, com o retorno, em marcha forçada, a Xapuri.
Antes da marcha, porém, Chico Mendes havia convocado, em reunião pública em Rio Branco, o apoio de moradores da cidade para um "empate de alto nível", para o qual ele queria repercussão nacional. Conseguiu a presença de um fotógrafo, dois agrônomos, um antropólogo e de uma jovem professora sindicalizada, Marina Silva. Quando as diferentes colunas formadas a partir da divisão do "empate" retornaram à cidade, aparentemente derrotadas, os participantes ocuparam a sede do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, e logo foram cercados pela polícia militar. Enquanto isso, Chico Mendes convocava por telefone a imprensa nacional presente em Rio Branco e, ao mesmo tempo, enviava companheiros aos seringais para chamar mais seringueiros para a cidade. Chico disse aos jornalistas que havia mais de cem seringueiros na sede do IBDF, mas precisava tomar providências para que eles realmente estivessem lá quando chegasse a imprensa. Enquanto a tensão crescia, em meio a ameaças da iminente invasão armada, Chico Mendes esperava novos negociadores, da igreja e do parlamento, assim como da imprensa. No último minuto, por assim dizer, foi firmado um acordo entre os seringueiros e o governo.
No início de 1985, para aumentar a visibilidade das lutas dos seringueiros, Chico Mendes buscou o apoio de sua amiga, a antropóloga Mary Allegretti, que depois de alguns anos de colaboração com o CTA vivia em Brasília. Allegretti havia estudado em sua dissertação de mestrado o seringal de Alagoas, em Tarauacá, e tinha um forte comprometimento com a causa dos seringueiros. Assim, não poupou esforços para promover um evento de impacto que respondesse às expectativas de Chico Mendes. De um lado, embora não se tratasse de um evento sindical, podia-se observar na platéia e na constituição das mesas de discussão a presença de líderes sindicais vindos de lugares remotos da Amazônia, como Novo Aripuanã, no rio Madeira, Carauari, no médio Juruá, Brasiléia e Xapuri, no Acre, Ariquemes, em Rondônia, e Cruzeiro do Sul, no oeste acreano, para mencionar apenas alguns dos delegados.
De outro lado, também foi marcante a presença de deputados e senadores, burocratas e técnicos, professores e estudantes, tanto no público como nas mesas, apesar de o seminário não ter um perfil acadêmico. Os seringueiros falavam sobre a violência de patrões e liam numa espécie de ladainha longas listas de preços cobrados nos seringais para ilustrar pelo contraste com os preços da cidade, a exploração de que eram vítimas. As autoridades escutavam-nos com uma mistura de fascínio, pelo exotismo das canções e dos poemas, e desconcerto, pelas reivindicações que pareciam anacrônicas e impossíveis de serem atendidas: o sonho dos seringueiros era transformar a Amazônia no que já fora no passado, uma abastecedora mundial de borracha.
O formato peculiar desse acontecimento criou não só constrangimento e vergonha, mas, sobretudo, revelação. Forçou as autoridades e os políticos a revelarem sua absoluta falta de planos em relação aos seringueiros, e mesmo sua ignorância sobre a própria existência dos seringueiros. Os especialistas não puderam mais escamotear sua visão pessimista acerca do futuro daquele movimento peculiar. O efeito de visibilidade visado por Chico Mendes fora atingido, mas no sentido inverso ao pretendido: em vez de tornar os seringueiros visíveis publicamente, a indiferença do governo é que subitamente veio à tona, sobretudo para os seringueiros.
Eles haviam chegado a Brasília acreditando que a borracha era "a riqueza do mundo", e que eles eram necessários à riqueza nacional como os únicos produtores da melhor borracha do mundo. De onde mais viria o dinheiro, senão da borracha? Como era possível que ministros e senadores não soubessem sequer o que era um seringueiro? Várias delegações exigiram uma reforma agrária adequada para os seringueiros, o que significava manter a integridade das estradas de seringa, o que implicava em módulos familiares de 400 a 600 hectares de floresta.
O documento final do encontro mencionou pela primeira vez a expressão "reservas extrativistas", cunhada por um grupo de trabalho formado por representantes do estado de Rondônia. O sentido era, por analogia às "reservas (de) indígenas", o de terras reservadas para trabalhadores extrativistas. Ademais, ocorreram outros fatos imprevistos, como a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Na última noite do encontro, antes de começarem a viagem de retorno, os seringueiros criaram esse conselho como forma de protesto, já que na véspera não tinham conseguido assistir às reuniões do Conselho Nacional da Borracha.
Uma evidência de que esse "conselho" não fora planejado, nem recebeu muita atenção na época é o fato de Chico Mendes, o principal líder da reunião, não pertencer a seus quadros "virtuais" nos primeiros anos, de 1985 a 1987. O presidente era Jaime Araújo, um obscuro mas eloqüente sindicalista do município de Novo Aripuanã, no rio Madeira, que hipnotizava o público com sua linguagem poética e rica em referências à floresta. Além disso, o fato de o presidente ser representante de uma delegação que continha apenas duas pessoas, em contraposição à delegação acreana com setenta membros, é outro indício do caráter improvisado desse conselho. Em suma, naquele momento o Conselho tinha um papel simbólico, mas sem real importância política.
O CNS reuniu-se algumas vezes após o encontro de Brasília, com recursos da OXFAM, uma organização não-governamental sediada na Inglaterra. Uma reunião de especial significado ocorreu em dezembro de 1996, no município de Brasiléia, numa paisagem rural marcada por castanheiras sobreviventes em meio à floresta devastada. Por sugestão de Mary Allegretti, fiz nessa ocasião um relato sobre o estado da economia da borracha na Amazônia, para expor aos seringueiros a conjuntura histórica e nacional que envolvia a questão e cuja síntese reproduzo aqui.
Durante o auge do ciclo da borracha, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, a Amazônia brasileira produzia cerca de 40 toneladas de borracha por ano. Com a recuperação da produção, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, a floresta atingiu e manteve uma marca entre 20 mil e 30 mil toneladas anuais. Contudo, na década de 1950, só a indústria de pneumáticos no Brasil consumia mais de 300 mil toneladas de borracha por ano, sendo que 120 mil eram importadas da Malásia e de outros países asiáticos. A borracha importada que chegava ao porto de Santos era muito mais barata e de melhor qualidade do que o produto da Amazônia que aportava em São Paulo. A perspectiva de crescimento da produção nacional de borracha não mais estava associada à Amazônia, mas ao planalto paulista, ao sul da Bahia e ao estado de Mato Grosso.
Desde 1945, preços administrados e quotas impostas haviam protegido a borracha amazônica, tornando-a lucrativa para aqueles que detinham o comércio na Amazônia. Entretanto, a partir de 1985 as novas políticas governamentais visavam abrir mercados e suprimir subsídios. Além disso, os antigos patrões começaram a vender seus títulos e novos interesses ligados à criação de gado e à exploração de madeira ocupavam progressivamente a região. Era um quadro cruel mas necessário para elucidar aquilo que os políticos e as autoridades tinham em mente quando olhavam surpresos e embaraçados para os seringueiros, mas que não ousavam dizer com clareza.
Após a exposição, o silêncio que se seguiu foi quebrado com uma pergunta de Osmarino Rodrigues, um dos mais radicais sindicalistas-seringueiros. Dirigindo-se aos "assessores" – como eram chamados antropólogos, advogados e historiadores presentes na reunião – ele disse: "Eu gosto de perguntar o significado de palavras que não conheço. Ouvi falar em ecologia. O que é ecologia?". Ele sabia onde queria chegar. E continuou depois da resposta: "Se não querem nossa borracha, podemos oferecer essa ecologia. Isso nós sempre fizemos".
Continua...
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