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16 julho 2006

SERINGUEIROS ACREANOS: LIDERANÇAS, ESTRATÉGIAS, VISIBILIDADE, REIVINDICAÇÕES E AMBIENTALISMO

Parte 1

Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas (*)

Mauro W. Barbosa de Almeida
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP

(*) Originalmente publicado na Rev. Bras. Ci. Soc. vol.19 no.55, São Paulo, Junho de 2004.

RESUMO - Os seringueiros amazônicos eram invisíveis no cenário nacional nos anos de 1970. Começaram a se articular como um movimento agrário no início dos anos de 1980, e na década seguinte conseguiram reconhecimento nacional, obtendo a implantação das primeiras reservas extrativas após o assassinato de Chico Mendes. Assim, em vinte anos os camponeses da floresta passaram da invisibilidade à posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular. Este texto narra essa surpreendente história, tomando por base a trajetória de algumas lideranças e suas estratégias para dar ao movimento social uma visibilidade em escala nacional e internacional, conectando suas reivindicações agrárias a temas ambientais de interesse mais geral.

Introdução

Os seringueiros amazônicos eram invisíveis no cenário nacional nos anos de 1970. Começaram a se articular como um movimento agrário no início dos anos de 1980, e na década seguinte conseguiram reconhecimento nacional, obtendo a implantação das primeiras reservas extrativas após o assassinato de Chico Mendes. Assim, em vinte anos, os camponeses da floresta passaram da invisibilidade à posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular. Este texto narra essa surpreendente transição com base nas trajetórias de alguns líderes e nas estratégias por eles utilizadas para dar ao movimento social visibilidade em escala nacional e internacional, conectando suas reivindicações agrárias a temas ambientais de interesse mais geral.

Como se deu a transição? Tratou-se de um jogo de aparências por meio do qual líderes sindicais manipularam o discurso hegemônico para mascarar a defesa dos seus interesses corporativos; em outras palavras, de uma manobra tática ambientalista para realizar uma estratégia de luta agrária? Ou será que, ao contrário, observamos aqui um jogo de linguagem no qual se afirma, pela cooptação dos agentes locais, a hegemonia discursiva do "desenvolvimento sustentável", do "empoderamento" e de outros topoi da agenda dos bancos multilaterais, nas linhas sugeridas por Escobar (1995)?

De fato, a história do movimento dos seringueiros forneceu material para conclusões várias. Foi narrada por intelectuais aliados como exemplo de como os interesses de um grupo subalterno e economicamente marginal podem coincidir com os interesses gerais da sociedade (cf. Allegretti, 1990; Schwartzman, 1989; Almeida, 1990). Nessa mesma linha de raciocínio, as estratégias sociais e ambientais de "povos da floresta" tornaram-se paradigmáticas na literatura dos anos de 1990 sobre movimentos de resistência ecológica.1

Outros observadores, mais críticos, partiram do pressuposto de que os chamados "povos da floresta" seriam simplesmente pessoas pobres privadas da oportunidade de viver em outros lugares como agricultores ou como assalariados urbanos, sendo condenados a uma marginalidade involuntária.2 Há os alegam que as exigências de terra formuladas pelo movimento de seringueiros são exageradas, ou que a atividade extrativa dos seringueiros é "economicamente inviável", ressuscitando uma antiga identificação entre extrativismo e predação.

Finalmente, há quem veja em toda a exigência de "reservas extrativistas" uma conspiração de países ricos para bloquear o desenvolvimento da fronteira amazônica (Carneiro da Cunha e Almeida, 2000; Almeida e Carneiro da Cunha, 2001). Na posição defendida por Escobar, como mencionamos, o "discurso do desenvolvimento" funcionaria como uma estratégia de poder sobre as populações periféricas; para outros, os efeitos dessa estratégia incluiriam o deslocamento da ação política para um plano secundário (Ferguson, 1990). Se essas visões estiverem corretas, então a alternativa para grupos subalternos e marginalizados seria ou manter sua marginalidade como estratégia de resistência, ou aceitar uma integração passiva e manipulada nas estruturas de poder globais.

A discussão resulta em parte, talvez, do fato de que a reivindicação dos seringueiros – transformação de grandes áreas de floresta em áreas públicas para uso coletivo segundo práticas tradicionais – teve um relativo sucesso. Como reconhecer a validade dos argumentos ambientalistas dos seringueiros, e como conciliá-los com a sua condição de pobreza e marginalidade? Como justificar a pretensão dos seringueiros sobre territórios? No fundo, uma questão que está em jogo aqui é a do papel e do potencial de grupos minoritários no contexto global. Anna Tsing (1993), em um livro sobre os Dayak de Kalimantan (Indonésia), sugeriu que a marginalidade (no sentido espacial e social) seria uma estratégia contra o "desenvolvimento" imposto de fora, na qual o discurso desenvolvimentista seria de fato apenas parodiado.

Seria esse o caso dos seringueiros? Acredito que não. Primeiro, porque os seringueiros tentaram sair da marginalidade para a visibilidade. Segundo, porque, ao fazer isso, vários líderes seringueiras apropriaram-se de parte do discurso ambientalista/desenvolvimentista, não para parodiá-lo, mas para, de fato, incorporá-lo em suas próprias concepções e práticas locais, atribuindo a esse discurso novos significados. Ao fazê-lo, redefiniram sua maneira anterior de agir, mas o fizeram conforme critérios estabelecidos em tradições e costumes próprios; ao mesmo tempo redefiniram sua relação para com a sociedade, construindo para si um nicho onde pudessem ser reconhecidos, como "povos da floresta", com direitos agrários e sociais reconhecidos como legítimos.

Schmink e Wood (1992), comentando nos anos de 1990 o relativo êxito do movimento dos seringueiros, apontaram para o fato de que a complexidade da conjuntura mundial criou novas oportunidades para que os grupos locais conquistassem vitórias, imprevistas por uma visão determinista da história. Com efeito, em um contexto de expansão agressiva do capitalismo não é possível prever o que ocorrerá em um local particular, em uma luta particular que envolva um sujeito histórico específico. Surgem, assim, espaços de relativa liberdade para conduzir conflitos em direções historicamente criativas, construídas como resultado de discussões e choques entre vozes, representadas por grupos de explorados e poderes externos. Em conseqüência, ocorreram eventos inesperados que apenas em retrospecto, parecem ser evidentes e previsíveis (Almeida, 1993).

Neste texto tratarei do período entre 1982 e 1992.3 Em vez do problema de quem age sobre quem, de quem é sujeito manipulador e quem é objeto de manipulação, indago, à maneira de Jean-Paul Sartre, o que os agentes da história local fizeram daquilo que a história fez com eles. Para isso, narrarei uma série de episódios que ocorreram em três escalas amazônicas: no nível local do município remoto de Cruzeiro do Sul, no cenário nacional-internacional que vai de Brasília a Washington e na arena regional do estado do Acre, que interliga esses dois níveis. Três pessoas conduzirão essas narrativas: Chico Ginu, seringueiro, delegado sindical, organizador de associações e dirigente regional; Chico Mendes, seringueiro, sindicalista, militante partidário e ambientalista; e Antonio Macedo, seringueiro, piloto fluvial, mecânico de máquinas pesadas, sertanista e indigenista, dirigente político, líder místico e agitador revolucionário.

Com essas narrativas, todas baseadas na minha experiência pessoal, pretendo dar um exemplo de como atos e crenças da periferia articulam-se com políticas e agendas mundiais, em um "desenvolvimento combinado e desigual". O significado dessa frase foi dado por Trotsky no brilhante primeiro capítulo da sua História da Revolução Russa:

Um país atrasado assimila as conquistas materiais e intelectuais dos países avançados. [...] Embora forçado a seguir os países avançados, um país atrasado não faz as coisas na mesma ordem. O privilégio do atraso histórico – e tal privilégio existe – permite, ou melhor, impõe, a adoção do que estiver disponível, antes de qualquer data previamente especificada.

E prossegue:

[…] O desenvolvimento de nações historicamente atrasadas leva necessariamente a uma combinação peculiar de diferentes etapas no processo histórico. O seu desenvolvimento como um todo adquire um caráter não-planejado, complexo, combinado (Trotsky, 1967 [1930]).

O caráter "não-planejado, complexo, combinado" é de fato característico das histórias que se seguem. Seria fácil suprimi-lo com uma narrativa única que retrospectivamente fizesse com que os eventos ilustrassem uma tendência que só depois se concretizou. Mas o caso do movimento dos seringueiros, que se auto-organizou a partir de planos desconectados, realizados em diferentes escalas, que só depois se combinaram para adquirir um lugar de destaque no cenário político-ambiental, se torna mais compreensível como ilustração do potencial criativo de processos que nascem de situações de desordem, e em que, como resultado, uma periferia aparentemente passiva se afirma como fronteira ativa.

Por que "não planejado", ou, melhor ainda, não previsto? A Amazônia, na década de 1970, parecia seguir um curso histórico terrivelmente previsível: o caminho da modernização capitalista orientado para ocupar espaços vazios sob a direção de um bloco formado pela ditadura militar e por classes dominantes ansiosas por lucros rápidos na fronteira. Numa economia em rápida expansão, financiada pelo capital financeiro internacional, com uma geografia política dividida entre terras monopolizadas pelo grande capital e terras livres ocupadas por índios e caboclos, o cenário da acumulação primitiva parecia irreversível, no sentido dado a esse termo por Marx, qual seja, o da separação entre comunidades e a natureza, seguida do surgimento simultâneo de uma classe de proletários sem terra e da terra como meio de produção. Desse cenário resultaria a inevitável aniquilação dos índios, primeiras vítimas do milagre (Davis, 1977). Quanto aos camponeses da floresta amazônica – categoria que inclui caboclos destribalizados desde as guerras indígenas do século XIX e sobreviventes dos migrantes trazidos pelos ciclos de coleta –, que se denominam seringueiros, caçadores e pescadores, barranqueiros-agricultores, pequenos artesões e mestres-ferreiros, remeiros e pilotos fluviais, eles, até o início da década de 1980, eram praticamente desconhecidos tanto na esfera governamental como na literatura acadêmica que discutia intensivamente a "fronteira amazônica". As questões relativas à fronteira identificavam-se com o problema dos posseiros. Seringais eram tema de história ou de farsa (Nugent, 1993).

Durante a década de 1980 a história na região não se desenvolveu conforme esse cenário, pelo menos em seus detalhes. É evidente que o Estado brasileiro não abandonou sua agenda desenvolvimentista para a Amazônia. Mas as vítimas passivas se revelaram ativas. Os índios deixaram de ser vistos apenas como vítimas e passaram a agentes que, em uma série de contra-manobras, ganharam territórios e direitos civis. Os seringueiros e outros camponeses da floresta perderam a invisibilidade e, em outra série de manobras, ganharam o direito de posse coletiva de florestas. Muitos são escorraçados de suas terras, não mais por fazendeiros, mas pelo próprio Estado conservacionista, o que é paradoxal porque outros permanecem em suas terras exatamente porque alegam ser conservacionistas. Como Trotsky se expressou, o fato é que a história dessa década se caracterizou na região por reviravoltas "complexas" e "não planejadas", e o resultado aparece como conjunturas vividas na forma de conflitos locais que não poderiam ser previstos.

1870-1980: antecedentes da Revolução no Rio Tejo

Encontrei os seringueiros pela primeira vez no trecho do rio Juruá que corre no interior do estado do Acre, conhecido ali por "Alto Juruá". Ano de 1982, rio Tejo, último grande afluente do Juruá em território brasileiro, a meio dia de barco a motor da fronteira peruana. Nas cabeceiras do Tejo, então representado nos mapas do DNPM e do IBGE como despovoado, descobri, após uma primeira viagem exploratória, que havia uma população de seringueiros ativos, e que o próprio Tejo era chamado de "rio de borracha" no município de Cruzeiro do Sul. Da mesma forma, o Riozinho da Restauração era o último importante igarapé de seringueiros no coração do rio Tejo.4

Os primeiros seringueiros e posseiros de seringais haviam chegado ao rio Tejo na década de 1890, em florestas contestadas entre Peru e Bolívia, habitadas até então pelas populações nativas de língua Pano, sobre cuja organização social e modo de vida na época pouco se sabe hoje em dia. O território acima do rio Tejo, a partir do rio Amônia, era, no final do século XIX, uma zona de ninguém, onde seringueiros brasileiros e especuladores em busca de novos seringais, dirigindo-se ao sul rio acima, chocavam-se com os caucheros peruanos que se dirigiam ao norte, rio abaixo, em busca de novos cauchales. À frente dos seringueiros e dos caucheros, conforme Euclides da Cunha observou com detalhes em Contrastes e confrontos, podia-se observar diferentes características ecológicas e sociais.

Do lado dos seringueiros, na região que vai mais ou menos até onde passa hoje a fronteira entre Peru e Brasil, a floresta era rica em seringueiras, árvores de diferentes espécies pertencentes ao gênero Hevea (Emperaire e Almeida, 2002). Do lado dos caucheiros não havia seringueiras, mas árvores de caucho, pertencentes ao gênero Castilloa. O fato de que a fronteira entre Peru e Brasil coincide hoje, em termos gerais, com uma fronteira botânica, não se deve a uma coincidência, pelo menos em relação ao Acre ocidental. Tratou-se de um artefato do processo histórico pelo qual as florestas que são hoje acreanas, em terreno inexplorado mas disputado entre Peru e Bolívia, foram acrescentadas ao território brasileiro em 1903 (tratado Brasil-Bolívia) e em 1909 (tratado Brasil-Peru), com base na ocupação por seringueiros que se orientavam pela busca de Hevea e não de Castilloa. A geopolítica da fronteira amazônica, desde então, entremeava-se com a biogeografia econômica.

Os brasileiros migrantes, procurando a valiosa Hevea brasiliensis, que gerava o produto Acre fina – melhor borracha no mercado mundial –, ignoravam tanto as fronteiras mal conhecidas, como a borracha inferior da Castilloa elastica. Em contraste com os cauchais, onde caucheiros itinerantes acampavam para derrubar árvores de caucho e extrair de cada uma delas, de uma só vez, cerca de 30kg de látex, até esgotar as árvores e seguir adiante, os seringais constituíam-se em posses florestais que tinham valor permanente para seu dono virtual,5 já que nelas a Hevea de várias espécies podia ser explorada por tempo indefinido. Portanto, nos seringais podia se instalar uma população sedentária de trabalhadores, em contraste com a população nômade dos cauchais.

A diferença ecológica e econômica entre seringais e cauchais era acompanhada de contrastes étnicos. Nos cauchais empregava-se mão-de-obra indígena, que era explorada de modo tão brutal e temporário quanto as próprias árvores de caucho, sendo exemplo disso as atrocidades do Putumayo e outras menos célebres de Madre de Dios/Mamoré. Já nos seringais do Acre, a mão-de-obra era constituída de imigrantes nordestinos; a população indígena local foi vítima das atrozes "correrias", em que os índios eram aniquilados não em função da submissão à disciplina do trabalho forçado, mas para dar lugar aos imigrantes brasileiros. Os territórios de floresta tinham valor elevado, porque geravam renda e lucros especulativos, mas também a própria mão-de-obra, trazida com alto custo, não poderia ser pura e simplesmente trucidada como o foram os indígenas.6

A economia extrativa dos seringais amazônicos é semelhante à de outros sistemas de trabalho em que extratores detêm autonomia para explorar recursos naturais e se vinculam a postos de comércio com os quais se mantêm em dívida crônica.7 Cada seringueiro explorava pelo menos uma parelha de estradas de seringa, que ligavam a clareira residencial aos seringais. Dois ou três seringueiros podiam ocupar o conjunto estradas que, partindo da clareira, cobriam o território de uma colocação, limitado pelas estradas de outras colocações. O posto de comércio – barracão – adiantava mercadorias a esses trabalhadores isolados na mata, as quais deveria ser pagas ao final da estação de trabalho – fábrico, o que significa que eles estavam em débito quase permanente com os barracões.

Os barracões localizam-se em barrancos do rio, cercados de floresta, a distâncias variáveis de cada colocação dos seringueiros, que no rio Tejo podiam visitá-los a pé, nos finais de semana. Havia tanto uma lógica "hídrica" no acerto das contas uma única vez durante o ano, como uma lógica política. A borracha era feita em pélas que pesavam cerca de 60kg e eram difíceis de transportar nas costas pelos caminhos da floresta. Por conta disso, elas eram levadas uma vez por ano ao barracão durante as alagações, que transformavam os rasos espelhos d'água que margeavam as colocações em caudalosos igarapés.

Dos barracões, as pélas flutuavam rio abaixo, amarradas umas às outras formando balsas enormes, até Cruzeiro do Sul, e dali continuavam em vapores e depois em ferry-boats até Belém, de onde eram embarcadas para portos britânicos e norte-americanos. Era também durante o auge do período das "alagações" que navios, lanchas e grandes batelões podiam aportar aos barracões distantes, levando mercadorias pesadas e de grande volume, como sal, açúcar, sabão, gasolina, chumbo e ferramentas. Do encontro desses dois movimentos, um formado pelo produto-borracha, outro pela mercadoria, resultava um balanço que, na maioria dos casos, significava débito, mas que, em alguns casos, poderia constituir um crédito. Não obstante o tipo de resultado, era dessa forma que se estabelecia, ao longo dos anos, a relação credor-devedor, fornecedor-produtor, patrão-seringueiro. Tratava-se, pois, de uma economia de débito e crédito generalizados, a qual formava uma rede que ligava não apenas seringueiros a patrões, mas também patrões menores a patrões maiores, até chegar às casas importadoras-exportadoras; estas, por sua vez, eram devedoras de empresas internacionais que compravam a borracha.

Esse sistema foi capaz de expandir a oferta de borracha silvestre sem aumento de produtividade, chegando a um teto, por volta de 1912, de cerca de 40 mil toneladas na Amazônia. Isso foi obtido por meio da expansão da área abrangida pelo sistema de adiantamentos, e que requeria um aumento contínuo de trabalhadores, o que provocava, por sua vez, um custo de transporte cada vez maior. Essa expansão espacial e numérica foi sustentada por preços que cresciam regularmente, com ligeiras flutuações, de 1850 até 1910.

Contudo, esse crescimento sustentado de preços estimulou também a busca de alternativas à borracha silvestre, centrada na domesticação da seringueira e no estabelecimento de plantações de seringueiras – uma empresa realizada pela Inglaterra, principal país comprador da borracha extraída das selvas amazônicas. Tratava-se de uma luta para a domesticação da floresta e para o controle do trabalho, a qual resultou afinal, para usar o vocabulário de Marx, na subordinação real da natureza e do trabalho ao capital. Entretanto, isso ocorreu nas colônias inglesas da Ásia, e não na Amazônia, onde nem o trabalho nem o capital se mostraram dóceis a esse tipo de subordinação.

Em 1912, a Amazônia brasileira atingiu a marca de produção de 42 mil toneladas de borracha. Contudo, neste mesmo ano, as plantações da Malásia começaram a inundar o mercado com as primeiras safras da borracha de seringueiras domesticadas, descendentes clonadas do germoplasma retirado de centenas de milhares de sementes de seringueira, que seguiam do porto de Belém diretamente para Kew Gardens, os Jardins Botânicos Imperiais da Inglaterra, ainda no século XIX. O que eram 42 mil toneladas extraídas da floresta amazônica em 1914 diante das 400 mil toneladas produzidas pelas plantações asiáticas por volta de 1920, a preços muito menores? O capital havia domesticado a natureza, infelizmente não na Amazônia, mas na Ásia.

Ou deveríamos dizer – felizmente? Isso depende do ponto de vista. Os seringueiros da base do sistema do aviamento eram devedores, mas não credores, porque não havia ninguém abaixo deles na cadeia do aviamento. Os credores de fato foram à falência porque não era possível, numa conjuntura de queda abrupta de preços, continuar fornecendo aos elos inferiores da cadeia de endividamento para continuar a pagar aos elos superiores. Os seringueiros não poderiam falir, mas seus patrões, sim (cf. Weinstein, 1983). Muitos deles livraram-se assim de seus antigos patrões, que abandonaram a exploração dos seringais ou suspenderam o monopólio rígido sobre o comércio simplesmente porque não podiam mais abastecer os trabalhadores.8

Voltemos ao cenário do rio Tejo. A empresa Mello & Cia., que havia comprado o conjunto dos seringais do Tejo e arredores numa especulação infeliz em 1910, faliu em 1916, passando a propriedade a outra empresa de Belém, Nicolau & Cia, que, por sua vez, faliu em 1936 (cf. Pantoja Franco, 2001). Nesse meio tempo, porém, os seringueiros já haviam sido liberados para usar a floresta em lavouras alimentares, ou obter da caça e da pesca sua alimentação. Nesse novo quadro econômico, os seringais tornaram-se unidades econômicas quase auto-suficientes sob o ponto de vista alimentar, reduzindo assim ao mínimo a quantidade de mercadorias que precisavam comprar do exterior (sal, munição, tecido e instrumentos de trabalho). Pode-se dizer que os seringais sobreviveram ao se converter em "economias duais", para usar a expressão formulada por Boeke, Celso Furtado e Keith Hart, respectivamente para os casos na Indonésia, no Brasil e na África. Esse tipo de economia continha um setor exportador e um setor de subsistência.

Durante as crises de mercado, ocorria a contração do primeiro e, conseqüentemente, a expansão do segundo; em períodos de preços favoráveis, dava-se justamente o contrário, retração do setor de subsistência e ampliação do setor exportador. Um traço característico de tais sistemas é que podem sobreviver indefinidamente, mantendo a estrutura invariante, mas regulando suas proporções existentes entre suas partes (Boeke, 1953; Furtado, 1959; Hart, 1982).

A partir de 1936, após a falência da Nicolau & Cia., o proprietário Mauricio Quirino permaneceu, isoladamente, como o dono virtual de imensas áreas de seringais. Esses seringais, que na época nada valiam como terra, tornaram-se, por assim dizer, "senhorios feudais" onde os patrões eram sustentados pelo pagamento de rendas em espécie e em trabalho prestadas por camponeses da floresta que, por sua vez, se sustentavam como agricultores e caçadores. Muitos bens de consumo passaram a ser fabricados por artesãos locais, ou seja, houve uma redução de gastos com importação concomitante a uma produção exportadora que ocupava agora apenas parte da semana de trabalho. Assim, as famílias cresciam, a agricultura florescia, e os novos camponeses podiam ampliar seus conhecimentos práticos e místicos sobre a floresta, em alguns casos unindo-se a mulheres indígenas, dando início a verdadeiras dinastias de seringueiros caboclos como se encontram no Tejo hoje em dia. Cada nicho da floresta tinha uso, desde as várzeas inundadas até as florestas de terra firme, nessa economia regional emergente.

A história da conversão de proletários em camponeses, numa Amazônia isolada do mercado mundial, não termina aí. O processo que descrevemos ocorreu durante a crise aguda de redução de preços dos anos de 1920 e 1930, quando mesmo a economia das plantações asiáticas se viu atingida pela superprodução. Na década de 1940, porém, a Segunda Guerra Mundial fechou aos Estados Unidos, então o principal importador, as portas das plantações asiáticas. Localizadas em colônias inglesas, francesas e holandesas, estavam agora, em sua maioria, ocupadas pelo Japão imperial. Nessa conjuntura de guerra, qualquer fonte de borracha de curto prazo era essencial. Mas as plantações levam uma década para se desenvolver, e a borracha dos seringais nativos podia entrar em produção imediatamente, bastando que houvesse braços e capital para injetar nova vida ao velho sistema do aviamento.

Assim, iniciou-se a "Batalha da Borracha" na Amazônia. Os Estados Unidos fizeram um acordo com o governo de Vargas para obter borracha da floresta. O governo brasileiro, em uma operação de envergadura, passou a atuar como aviador principal em escala nacional, financiado pelos Estados Unidos, recrutando nesse momento uma segunda leva de migrantes entre camponeses pobres da Amazônia. Os patrões locais viram-se fortalecidos subitamente com capital e poder. Aos seringueiros prometiam-se ganhos rápidos e benefícios comparáveis aos dos soldados. Mas de fato seus contratos sujeitavam-nos a uma condição de trabalhadores coagidos a uma jornada semanal de seis dias nas estradas de seringa, impedidos de abandonar o trabalho enquanto estivessem endividados – condições essas expressas por escrito, nas cadernetas dos seringueiros. O trabalho escravo foi, assim, recriado na Amazônia brasileira pelo próprio Estado, com apoio norte-americano.

A batalha da borracha constituiu um fiasco. Os seringueiros não produziram o que se esperava. O trabalho coagido reintroduzido na Amazônia, apoiado no acordo entre Brasil e Estados Unidos, não conseguiu fazer com que os seringueiros produzissem acima no nível que fora atingido no início do século. Apesar das intenções do acordo e das condições expressas nas cadernetas, os trabalhadores recaíam nos baixos níveis de produção dos seringueiros do Entre-guerras. No período da Primeira Guerra Mundial, os seringueiros haviam se convertido em camponeses; os recém-chegados da Segunda Guerra Mundial encontraram em plena operação essa economia florestal-camponesa, e se incorporaram a ela. Nesse cenário, como já mencionado, um seringueiro com família trabalhava no "setor exportador", isto é, nas estradas de seringa, em jornadas médias de quatro dias por semana. Formalmente, ele trabalhava como um trabalhador autônomo em estradas de seringa pelas quais pagava renda em produto-borracha; no restante da semana, trabalhava como caçador ou em seus roçados. Esse regime durava cerca de nove meses; nos demais meses do ano, a família dedicava-se a cultivar os roçados, ou a outras atividades.

As famílias de seringueiros viviam em colocações distantes dos barracões, com os quais tinham contatos esporádicos. Como, então, controlar diretamente esses trabalhadores que utilizavam recursos da floresta com base no trabalho familiar, longe da presença dos empregados? Um chefe de família seringueiro utilizava cerca de 400 hectares da floresta, para extrair látex de cerca de duas estradas contendo aproximadamente trezentas seringueiras dispersas em uma floresta de colinas e pequenos vales, de várzeas e platôs, de matas densas ou abertas com palmeiras, cipós e bambus. Essas colocações ficavam a cerca de uma hora ou duas umas da outras. Um seringal com setenta chefes de famílias, dispersos por 25 ou 30 colocações, ocupava uma extensão de cerca de 30 mil hectares de floresta, entrecortada por inúmeros caminhos e atalhos. Estava, pois, fora de questão fiscalizar diretamente a rotina diária de trabalho. Não era possível impedir as famílias de implementar roçados e fazer farinha, e menos ainda de caçar para seu sustento: isso era uma espécie de direito adquirido. O que se podia fazer era o controle do volume de borracha, mas mesmo neste aspecto a rede de comércio clandestino nas fronteiras de seringal tornava inevitável o "contrabando de borracha". Disso resultavam conflitos crônicos entre patrões e regatões, patrões e seringueiros.

Mas a escassez de braços, numa economia que precisava absolutamente de mão-de-obra para funcionar, sem ter nenhuma inovação técnica que a substituísse, favorecia, em certo sentido, os próprios seringueiros. Os "patrões do rio Tejo", que nos anos 1980 se localizava no município de Cruzeiro do Sul, não tinham contato com os "patrões do rio Tarauacá", cujos seringais eram lindeiros com os dos fundos do Tejo. Tratava-se de uma zona de "contrabando" regular. Os seringueiros acreanos sobreviveram ao colapso do primeiro ciclo da borracha anterior à Primeira Guerra Mundial, atravessaram o período entre as guerras tornando-se camponeses e resistiram às tentativas de reproletarizá-los sob o comando norte-americano no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Todas essas fases puderam ser observadas na região do rio Tejo.

Na década de 1970, porém, a Amazônia como um todo foi objeto de um vasto movimento de ocupação conduzido pela ditadura militar, visando tanto a incorporar seus recursos naturais na economia capitalista nacional e internacional, como a resolver o problema agrário do sudeste e do nordeste do país. As estradas e os incentivos fiscais que acompanharam essa investida capitalista não chegaram até o rio Juruá. Mas a especulação fundiária, sim.

Dessa forma, o remoto curso do alto rio Juruá, onde desemboca o rio Tejo, e que em 1936 passara das mãos de uma companhia do Belém do Pará para um proprietário local, Maurício Quirino, foi comprado por volta de 1980 pela empresa paulista Santana Agropastoril Ltda. Apesar de não incidirem sobre títulos válidos, essas negociações significavam direitos de fato sobre o território e a expectativa de futura regularização fundiária, anunciada na época pelo Incra e iniciada em 1982. A empresa paulista passou a arrendar os seringais do rio Tejo por períodos trienais para seringalistas locais interessados em lucros rápidos. Vale lembrar que na primeira metade da década de 1980 estava em vigor o Probor II, generoso esquema de financiamento público de seringais.

Um dos comerciantes do município de Cruzeiro do Sul que se aproveitou da oportunidade foi Orleir Cameli, que arrendou o rio Tejo em 1985. Contudo, em 1986 começou a mudar a política econômica de subsídios e de preços administrativos, instaurada após o término da Segunda Guerra Mundial. Por volta de 1987, com o contrato de arrendamento prestes a expirar, e com o início do desmantelamento das políticas federais que haviam no passado sustentado os preços da borracha extrativa, Orleir Cameli perdera o interesse no antigo negócio. Dono de serrarias e de meios de transporte fluvial, entre outros negócios, Cameli planejava por essa época explorar o mogno do rio Tejo. Já havia sobrevoado o rio de helicóptero, enquanto outra equipe percorria a floresta a pé com o propósito de avaliar os melhores locais para estabelecer postos de operação da nova empresa. Nos anos anteriores, o mesmo Cameli havia devastado as matas do vizinho rio Amônia, ocupado pelos índios Ashaninka, com tratores pesados, para retirar madeira. Era o cenário clássico da fronteira capitalista em aproximação, com os seus típicos ingredientes de manipulação de títulos de terra, depredação da floresta e expulsão de moradores tradicionais. A estrutura amazônica de capitalismo selvagem tomava o lugar dos velhos seringais decadentes. Esse processo foi visto pelos moradores como a chegada dos maus patrões e a depredação das estradas de seringa.

1 Comments:

Blogger João Paulo said...

Gostei muito de ler o seu artigo sobre todo o problema acreano, uma vez que o meu Bisavô Benjamim José de Araújo - natural de S. João da Madeira, cidade portuguesa da qual foi o 1º Presidente, de 1926 a 1934 - também nele participou.

Todos os domingos, em casa da meus avós, Manuela de Moraes Araújo, porque o meu avô já tinha morrido, em 1958, era costume a família Araújo que se encontrava em Lisboa, reunir-se para jantar, e a conversa habitual era questionar o filho mais novo do meu Bisavô, de nome Alberto Araújo, sobre o que tinha acontecido aos negócios no Brasil.

Ele dizia que o Papá, - era assim que ele o chamava, e que nós gostávamos imenso de ouvir dizer - tinha umas plantações de borracha no Brasil, que eram maiores que o Algarve, que tinha uma frota de barcos para transportar a borracha pelo Juruá até Manaus, e depois até Belém, maior que a frota portuguesa, enfim, era uma coisa fabulosa.

Mas tinha havido um problema, era que o Papá tinha casado, em primeiras núpcias, com uma Senhora de nome Carolina, irmã mais velha da Mamã, e que tinha morrido em Belém do Pará, com 24 anos, e a Mamã, sua irmã , fê-lo jurar que só casaria com ele, se ele não voltasse para o Brasil.

E assim foi, quando o Papá um dia lá foi, não encontrou nada !!! E todos achávamos imensa graça.

À cerca de um mês, ao vasculhar uma gaveta de um móvel em casa da minha Mãe, já falecida, que tinha vindo da casa da minha avó Manuela, também já falecida, encontrei um balanço da sociedade do meu Bisavô Benjamim – Nicolau & Companhia, do Brasil. Foi então fácil encontrar tudo aquilo que eu gostava de saber, ao longo destes anos todos, com os meios hoje existentes. Juruá + Nicolau & Companhia = já está.

Só me falta uma coisa.

Será possível ajudar-me ?

Qual era a área explorada, na época, em ha, pela Nicolau & Companhia.

Melhores Cumprimentos,

João Paulo Moraes de Araújo Simões

jpsimoes@sapo.pt

18/04/2008, 06:35  

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