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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

10 junho 2007

REUNIÃO DA SBPC EM CRUZEIRO DO SUL

O dia em que um supersônico passou pelo céu do Juruá e o povo nem viu (*)


Nelson Liano Jr. (**)


Em relação à recente reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em Cruzeiro do Sul, é evidente que eu sou absolutamente favorável que eventos como esse aconteçam no Juruá. A discussão científica poderá gerar idéias e projetos que beneficiem de verdade a qualidade de vida das populações da região de maior biodiversidade do planeta.


Poderá e deverá abrir caminhos de pesquisa que resultem em novas atividades econômicas e sociais para o Juruá. Além disso, só o fato de vir gente das mais diversas partes do Brasil e movimentar a estrutura hoteleira e o comércio da cidade já são fatores altamente positivos. Sem falar no debate de idéias, o que deveria ser o mais importante.


Mas eu questiono é a maneira como o evento aconteceu em relação à sociedade regional. Parece que vieram deuses de outros planos de existência despejar sobre nós, pobres moradores do Juruá, a verdade absoluta sobre todas as coisas. Eu quero dizer que por aqui ninguém é tonto, não. A população do Juruá é generosa e humilde, e foram justamente essas qualidades que eu não vi na organização do evento e nos seus principais articuladores.


Eu vou dar um exemplo que dói. Convidaram para compor uma mesa sobre Políticas Públicas Necessárias ao Juruá, gente de Rio Branco que uma vez ou outra aparece por aqui. Bem, realmente eles devem conhecer bem o povo da região para falar sobre assunto. Só podem ser gênios onipotentes que tudo vêem e, já que estamos falando em ciência, devem ter poderes de se teletransportar magneticamente ao Juruá durante o sono para conhecer os problemas da nossa gente. Nós que estamos aqui somos cegos, surdos e mudos.


A gente não tem idéia do que é preciso a nível de políticas públicas. Então, qualquer coisa que vocês gênios decidirem “ tá” bom pra “nóis”. É claro, que eu não sou o dono da verdade. Sou a favor do diálogo e do debate democrático. Mas sou contra a manipulação das opiniões. Lutei durante todo o tempo em que estou na região para a instalação da Universidade da Floresta. Dei a minha pequena contribuição como jornalista. E nós, jornalistas da região, portanto, pontes de acesso à informação da população fomos simplesmente descartados durante o evento. Não recebemos sequer uma programação do aconteceu. Convite nem pensar. Ainda assim fizemos algumas reportagens sobre a SBPC e divulgamos aquilo que chegou em nossas mãos.


O que eu quero dizer é que posturas elitistas e estreitas só fazem é criar um abismo ainda maior entre os saberes acadêmicos e a população regional, seja “ tradicional” ou não. Aliás, aviso aos navegantes, se você nasceu no Juruá, foi criado e viveu toda a sua vida por aqui, se não for índio ou seringueiro você não é “tradicional”. Mesmo que a sua família esteja no Juruá há mais de 100 anos. São conceitos antropológicos inquestionáveis.


O fato é que a participação popular no evento foi um fiasco. A grande maioria da população do Juruá nem soube que o supersônico da SBPC passou por aqui. É um pena! Um professor da UFAC me disse que é assim mesmo. A SBPC é para discutir internamente questões dentro de uma linguagem científica específica. Não é pro povão, mesmo. Ah, bom! Então “tá” explicado. Eu, como me identifico com o povão, fiquei de fora do evento. Mas sem querer atrapalhar, divulguei tudo que caiu em minhas mãos. Só fiquei mesmo observando e ouvindo os comentários. E lendo o material (pouquíssimo) nos sites gerados pelo evento.


Agora, o pior ainda estava por vir. Intelectuais que não moram aqui, que não têm uma vivência do dia-a-dia da região, estão preocupados com os rumos da Universidade da Floresta. É justo. Por que talvez ela não vá atender os objetivos políticos dessa gente? Será que ela não vai dar a projeção egóica-intelectual que eles estão precisando?


Eu quero dizer pra essa gente que não sou cientista, nem antropólogo e nem tenho doutorado e pós-doutorado. Mas entendo, na minha ignorância, que quem vai fazer realmente a Universidade da Floresta são os seus alunos. Eles, com o conhecimento que receberem, seja acadêmico ou “tradicional” ou transversal (a palavra está na moda), irão modelar esse projeto. Eles vão ser a vida da Universidade da Floresta. Eles, que vivem aqui e conhecem realmente o problema deles e das gerações antecessoras do Juruá.Os alunos com o tempo e de maneira natural irão fundir os conhecimentos com a realidade cotidiana da região. E vão fazer uma grande universidade, que só pelo fator isolamento humano e geográfico, será diferenciada de todas as outras.


Alguns intelectuais presentes criticaram um possível uso político do projeto. Mas quero dizer que foi graças ao empenho de políticos como o deputado Henrique Afonso, do senador Tião Viana, do ex-governador Jorge Viana e da Ministra Marina Silva, que a Universidade da Floresta se tornou uma realidade. Quero dizer ainda que eles foram visionários ao concretizar um projeto que nasceu sim do empenho desses mesmos “intelectuais” que agora estão cheio de críticas, questionamentos e preocupações. “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”

Vocês ajudaram a criar o leito para o rio correr. Agora, deixem o rio correr com naturalidade e todos poderão dar as suas contribuições navegando com liberdade e dando a liberdade dos outros também navegarem. Lembrem-se de que a diversidade é a mola propulsora da democracia. Muitos de vocês viveram a época da ditadura e tenho certeza de que não querem isso de volta. Chega de discriminação, vamos dialogar e debater no nível de idéias e de ideais. Sem ataques pessoais e maniqueísmo do bem contra o mal. A Rainha da Floresta irá abençoar todos que trabalharem com o coração leve e sem rancor pessoal. Minha gente, esse projeto é muito maior do que qualquer um de nós.

(*) Originalmente publicado no jornal Página 20, edição de Domingo, 10 de junho de 2007.
(**) Nelson Liano Jr. é jornalista profissional e Editor da revista bissexta "Retratos do Juruá".