ACRE, A SIBÉRIA TROPICAL (FINAL)
Que razões obscuras levaram o infante governo republicano a desterrar para os “confins” da Amazônia, no Acre, quase 1900 homens e mulheres após as revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910)?
Do Rio de Janeiro para a Sibéria Tropical: Prisões e Desterros para o Acre nos Anos de 1904 e 1910 (*).
Francisco Bento da Silva (**)
[Jornal do Brasil. Geographia política, ano XIII, nº 334, 29/11/1904, p. 01. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional].
Porque a República escondeu os indesejados?
Nos dois casos citados, os desterrados foram todos penalizados com o desterro sem que quaisquer processos tenham sido abertos contra eles. Eram criminosos sem que crime algum fosse atribuído formalmente às suas pessoas. Tal situação era uma exceção provocada e sustentada pela instituição do estado de sítio, adotado pelo governo brasileiro nos dois episódios.
Entre os desterrados de 1904, nos jornais que fizeram a cobertura à época, aparecem apenas alcunhas dos chamados desordeiros que foram presos e banidos: o crioulo Horácio José da Silva, o vulgo Prata Preta (considerado líder das desordens em “Porto Artur”, no bairro da Saúde), Rato Branco, Truvisco, Machadinho, Almeidinha, Bombacha, Chico da Baiana, Valente, Chico Maluco, João Galego, José Moleque (José Antônio Vieira), Manduca de Luto (filho do açougueiro do bairro) e muitos outros “desordeiros” sem nomes e apenas com seus apelidos conhecidos, que somente aparecem juntos com outros silenciados nos números frios das estatísticas.
O jornal A Noticia (27/12/1904) assim narrou a partida do navio Itaipava na noite do feriado do dia 25 de dezembro de 1904, quando os deportados foram presenteados com uma viagem só de ida para o norte do país, um lugar que parte deles nem chegou conhecer, pois morreu antes:
“Dos porões do navio partiam rumores surdos, gritos, imprecações, blasfêmias (...). Ali, amontoados na maior promiscuidade, crianças e velhos, negros e brancos, nacionais e estrangeiros. Nos porões nenhuma luz! Os 334 condenados, quase nus, debatiam-se nas trevas, com enormes ratazanas que, audaciosamente, os atacavam, cobrindo-os de dentadas. Nos porões os presos sem apoio rolavam uns sobre os outros, magoando-se, escorregando na lama nauseabunda de fezes e vômitos”.
O debate acerca da situação dos degredados tanto da Revolta da Vacina quanto da Revolta da Chibata gerou na capital da Republica calorosas discussões.
O deputado Luiz Domingues protocolou requerimento onde solicitava do poder executivo informações sobre os desterrados para o Acre, cuja mensagem presidencial do dia 29 de maio de 1905 já afirmava: “foram, para garantia da ordem pública, retirados desta Capital para o território do Acre, como desordeiros reconhecidos e indivíduos de má reputação”. O requerimento fazia algumas indagações básicas: quantidade, nomes, nacionalidades dos degredados, em que trabalhavam, onde moravam, porque não foram julgados como outros indivíduos que tomaram parte do movimento, por que não foram submetidos a crimes sujeitos a fiança, etc. Depois do Estado de sítio, o Estado os traria de volta? Se eles não foram acusados do crime de desterros, que crime cometeram? Eles estavam vivos? Onde estavam?
O então deputado situacionista Garcia Pires afirmava categoricamente em discurso que a ação do governo serviu “para a salvação da cidade e para que nos víssemos livres de um desses movimentos que, por honra nossa, deveria ser apagado das páginas de nossa história”. Em seu pronunciamento ele afirmou:
“Não faço injúria de dizer que os conflictos dos dias 12, 13, 14 e 15, nesta cidade, foram praticados pela população da Capital Federal. Não; os homens trabalhadores, os que concorrem para a riqueza pública, esses absolutamente não se envolveram em taes conflictos. Vi nas ruas da cidade essa classe infeliz de indivíduos que abundam em todas as capitaes, homens inteiramente despreoccupados com do sentimento da honra, noctívagos, vagabundos, batedores de carteiras; eram esses que quebravam os lampeões e atacavam as propriedades particulares”.
Em relação aos desterrados da Revolta da Chibata, ocorrida 06 anos depois, o governo utilizou o mesmo procedimento adotado para o caso anterior. Mais uma vez os parlamentares se debruçam num debate em torno dos “criminosos sem crimes” enviados mais uma vez à Amazônia.
O então senador Rui Barbosa, em sessão de agosto de 1911, teceu seus comentários acerca dos passageiros do “navio fantasma” Satéllite nos seguintes termos:
“sobre o caso do navio Satélite chama o governo ‘verdadeiras feras’ aos 400 ex-marinheiros da nossa esquadra desterrados para o norte, nas regiões do Madeira. (...) trataram de ocultar as prisões negando-as até aos membros da Câmara dos Deputados que acudiram à polícia interessados em restituir à liberdade dos detidos”.
Barbosa afirmou que devido às arbitrariedades cometidas nas prisões e a falta de informações precisas sobre os desterrados, o Brasil era um país que ainda aspirava à condição de civilizado, mas os desterros era um fato que aviltava “o Brasil abaixo das últimas nações” do mundo.
Em seguida Rui Barbosa leu uma correspondência, enviada por uma testemunha ocular, sobre as últimas informações do navio Satélite. O missivista, Booz Belfort de Oliveira, justificou sua ausência prolongada da capital da República devido aos resultados negativos das eleições ocorridas em novembro do ano anterior, levando-o a dirigir-se para a região Norte a fim de realizar trabalhos como Auxiliar de Serviços Sanitários na Comissão Rondon. Ele confirmou que estava em Belém quando soube da Revolta da Armada e depois se dirigiu à vila de Santo Antônio do Rio Madeira para atuar na Comissão Rondon, onde soube que os desterrados seriam enviados para trabalhar nesta Comissão e na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Segundo ele na manhã do dia 03 de fevereiro o coronel Cândido Rondon recebeu 200 homens e o restante foi recusado pelos administradores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O navio então permaneceu ancorado e seus passageiros-prisioneiros em estado de quarentena, impedidos de descer do Satéllite durante alguns dias.
Foi então constituída uma Comissão, da qual Belfort de Oliveira fez parte, que constatou a seguinte situação: “posta a prancha para o barranco, conseguimos entrar a bordo. Soubemos estarem todos recolhidos nos porões do vapor, todos os prisioneiros, trezentos e tantos homens e quarenta e uma mulheres”. No comando da guarda do navio estava o primeiro-tenente Matos Costa, que a relatou para a Comissão os acontecidos durante a viagem pela costa brasileira, principalmente a ocorrência de fuzilamentos de alguns degredados que supostamente teriam tentado criar um motim a bordo e atentado contra a vida do comandante. De acordo com o tenente Matos Costa, na saída do porto baiano, houve a eliminação de nove desterrados: sete por fuzilamento e dois teriam se jogado ao mar antes dos tiros. Serviram de exemplo pedagógico para obstar qualquer nova tentativa dos demais prisioneiros em criar novos tumultos nos porões. Tudo ocorreu com carta branca do governo.
Depois das explicações do comandante, este permitiu que os porões do navio fossem abertos. Eis o que relatou a testemunha ocular:
“A guarnição formou ao longo do navio armado em guerra, de carabinas embaladas, os porões foram abertos, e, a luz de um sol amazonense (sic), os quatrocentos desgraçados foram guindados como qualquer cousa, menos corpos humanos, e lançados ao barranco do rio. Eram fisionomias esguedelhadas, mortas de fome, esqueléticas, e nuas como lêmures das antigas senzalas brasileiras. As roupas esfrangalhadas deixaram ver todo o corpo. As mulheres, então, estavam reduzidas às camisas”.
Então ele relata que uma porção de seringueiros começou a escolher aos lotes homens esfarrapados e magros, que mostravam restos de uma robustez passada, para realizarem trabalhos de cortes de seringa nos vastos seringais amazônicos. Já as mulheres, segundo o cronista, “como lobas famintas, entregaram-se a prostituição, para sustento do corpo e a estas horas talvez não existam mais”.
Nem todos os desterrados da Revolta da Chibata eram marinheiros, a grande maioria era de civis, presos durante o período do estado de sítio ou recolhidos na Casa de Detenção. Aqueles que ficaram a serviço da Comissão Rondon, Belfort de Oliveira relata que dormiam no chão, sem agasalho ou proteção contra os mosquitos anófeles e amanheciam sob o nevoeiro de “friagens malditas”. Realizavam serviços brutais sob o calor de 39º celsius e careciam de alimentação compensativa às suas necessidades diárias de calorias. Inclusive, ocorrendo na própria Comissão casos de fuzilamentos como relata Belfort de Oliveira em determinada passagem da sua carta.
Terminada a leitura da carta na tribuna, Rui Barbosa passou a fazer suas considerações com apontamentos voltados à luz do direito, sua seara. Afirmou a todos que tudo aquilo compunha um quadro horrendo de grosseria e desumanidade, uma abolição completa do respeito à vida, um nivelamento de seres humanos às criaturas irracionais e um desprezo “aos progressos cristãos de nosso tempo”. E continua diante de todos: “Em toda minha vida política, nos quarenta anos de sua duração, é o mais cruel dos cruéis desenganos por que tenha passado a minha consciência de homem sincero”. Contudo, sua indignação e denúncia não afetam as posições defendidas pelo governo e parte da imprensa que apoiaram aquelas medidas.
Já os desterrados de 1904, pouco conhecemos sobre suas vidas no Acre. Ainda hoje, o que sabemos é que saíram com destino a esta localidade e alguns jornais acreanos atestam a chegadas destas pessoas pelo menos nas cidades de Cruzeiro do Sul e Xapuri. Resta-nos, seguir os parcos indícios deixados nas margens através de poucos documentos e fazer o diálogo possível com estes lampejos que chegaram até nós. Como é o caso do Preto Lycurgo, alcunha de Álvaro de Carvalho, que foi preso alguns anos depois na cidade de Xapuri acusado de ter cometido um assassinato naquela cidade.
Amazônia, uma terra “sem história”
Porque a Amazônia? O olhar de grande parcela dos homens do sul do país — pertencentes à intelligentsia da época — desde muito tempo estava condicionado pela idéia de que a Amazônia era uma terra ignota, distante, inóspita e inadequada à presença humana. No zeitgeist (espírito do tempo) dominante à época, aqueles que nela habitavam eram considerados sujeitos que estavam em descompasso com certa visão acerca da “história nacional” e com os ideais civilizatórios, de lampejos eurocêntricos, que desembarcavam aqui nos trópicos.
O próprio antropólogo belga Claude Levi-Strauss, em sua obra Triste trópicos, referiu-se à região como “o mundo perdido”, de populações enigmáticas, uma terra proibida e ainda desconhecida da civilização, localizada para além das franjas do sertão do Brasil central onde ele realizou seus estudos etnológicos. Talvez o título do capítulo de sua obra remeta a uma possível leitura sua da obra do escritor Arthur Conan Doyle, lançada em 1912, chamada por sinal de O mundo perdido.
Quando o escritor Euclides da Cunha tem seu primeiro contato com a Amazônia, logo ele afirma existir uma Amazônia real e outra imaginada. Esta última seria aquela presente nos relatos de cronistas e viajantes desde o XVI. No capítulo Terra sem história, de sua obra póstuma A margem da História, ele afirma que a imagem real é inferior a subjetiva, tecida ao longo dos tempos. Segundo suas impressões telúricas constituídas in loco, faltava harmonia estética, beleza equilibrada à Amazônia, portadora de uma grandeza monótona, de horizontes vazios e indefinidos numa planura desmedida.
Nesse meio físico que era a Amazônia, Cunha apontava que o homem chegou como um intruso impertinente. Aparecera sem ser esperado e querido, quando a natureza era ainda uma opulenta desordem. A Amazônia aparecia aos seus olhos como pertencente à outra era geológica. Mais que um descompasso temporal, havia também um descompasso civilizatório e cultural da população local. Era uma região que tinha tudo e faltava tudo (artes, ciências, história, compreensão), dizia ele. Por isso ele considera que na Amazônia o brasileiro, mesmo pisando em terras pátrias, era um estrangeiro que não fincava raízes no lugar. A própria Amazônia era uma terra sem pátria, um local selvagem que impressionava uma civilização distante, que seria o sul do país, o litoral que há muito era a antítese do Sertão (idem, ibidem).
Esta natureza brutal e soberana seria sempre uma adversária do homem: diante do homem errante a natureza era estável; para o homem sedentário, ela seria revoltosa e volúvel. Por isso, a Amazônia se caracterizava por ser uma terra de nomadismo, da inconstância que remetia à figura metafórica dos seus rios erráticos. E era/é através dos rios, que se chega(va) aos seringais, que nada mais são que um misto de paraíso e inferno na visão euclidiana. Um mundo feudal, torto e bronco em “descompasso evolutivo”. Malgrado suas idiossincrasias culturalistas, seu tom é de denúncia.
Vejamos também como Belfort de Oliveira rememora suas impressões acerca dos degredados que ele observara desembarcando nas alastrantes terras amazônicas:
“...ali (na Amazônia) impera o cinismo, o crime, o contrabando e todas as misérias da humanidade (...) também sofrem os soldados, que recrutados em todos os estados da União, com as mesmas bazófias do futuro, vão para servir de escravos a mando de braços bordados de galardões, chibateados da manhã à noite”.
É também um misto de denúncia dos poderosos do mundo dito civilizado em oposição da vida sofrida do homem comum em uma terra sem lei e sem ordem. Visão semelhante a sua é a do inglês Henry Whistler, que em 1654 se referia desta forma ao relatar o fato da Inglaterra mandar para a colônia caribenha de Barbados seus degredados: “Esta ilha é um monte de estrume onde a Inglaterra despeja seu lixo: vadios e prostitutas e outras pessoas do tipo são as que em geral trazem para cá”.
A Amazônia adquire então aspecto parecido ao descrito por Whistler, um depósito para o “lixo”, para o “estrume social” indesejado e produzido pelas contradições do modelo republicano, que estava em transição de um renegado passado monárquico e escravista que teimava em permanecer com alguns traços nos comportamentos e feições de parte da população. Junto a isso, havia ainda o processo de urbanização e remodelamento da capital da República que vinham sendo implementados desde a última década do XIX, bem como as políticas de saúde pública com a vacinação obrigatória.
Estes sujeitos desterrados eram os homens e mulheres que, nos dizeres de Euclides da Cunha, “levavam a doloríssima missão de desaparecer” quando foram condenados ao desterro no Acre, a “Sibéria tropical”. Região vista como um local adequado aos recalcitrantes, por ser essa região considerada erma, distante, vazia, sem civilização, sem cultura constituída e, portanto, sem história. E o Acre, apenas “uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se sem limites”.
Neste sentido, a natureza amazônica com sua grandiosidade, seus “vazios” demográficos e seus perigos, seria uma mãe disciplinadora para os filhos rebeldes da Nação, que iriam ser “polidos” nas suas brutezas pela natureza e amaciados pelas dificuldades de adaptação que ela ofereceria àqueles que também “chegam sem ser convidados” (CUNHA, 1998).
Foram então condenados a viver, — ou morrer —, no Acre, entre uma “vaga população erradia e dispersa, perdida em um recanto selvagem da Amazônia”, como se refere Oliveira Vianna (Oliveira Viana, 146). Uma população que no entendimento deste sociólogo era formada majoritariamente por “cangaceiros tumultuários; jagunços explosivos e turbulentos; sertanejos rebeldes e indomáveis” (idem, p. 147). Se o Acre era assim, nada mais justo no imaginário de algumas personalidades da época em mandar pessoas com semelhantes predicados para viverem longe da república imaginada e sonhada. Foi assim que embarcaram em navios-prisões grupos heterogêneos de homens e mulheres para uma viagem sem volta, para um destino cruel, onde o horizonte que se apresentava era ou a morte ou o isolamento na “Sibéria tropical”.
Para os sobreviventes adventícios, restava o exílio na “própria” terra, num local afastado e desconhecido que paradoxalmente também era uma “outra” terra. Os defensores dos desterros acreditavam que somente por meio de um trabalho rigoroso e severo é que aqueles homens rudes e mulheres licenciosas teriam a oportunidade de abrandarem suas brutezas e práticas condenáveis pelo olho do poder civilizatório e policialesco que se tentava implantar na capital da nação brasileira. Vale lembrar que os verbos polir e policiar possuem a mesma matriz semântica. Neste sentido o Estado intentava exercer polimento e policiamento das mentes desviadas, dos corpos indômitos e das práticas condenáveis. Visava enquadrar os indivíduos para serem sujeitos “bons e do bem”, monopolizando a violência legal para instaurar a ordem imaginada.
Considerações finais
Neste breve artigo intentamos trazer ao presente algumas questões relativas aos desterros implementados pelo Estado brasileiro como punição e penalização aos “sujeitos incômodos”, considerados perigosos ao convívio social que se idealizava como correto na capital da república no início do século XX. Como afirmou certa vez Marc Bloch (2001), não existe passado morto. Existe passado esquecido — consciente e inconscientemente —, inacessível ou perdido. No caso dos desterrados, suas expulsões traziam a marca do isolamento, da tentativa de escondê-los nas selvas longínquas da Amazônia acreana. Além do banimento físico, se procurou bani-los da memória, apagar suas identidades e seus dramas à posteridade.
Se lembrarmos Andréas Huyssen (2000), diz ele que o lugar da memória em uma sociedade qualquer é determinado por uma rede discursiva complexa, portadora de aspectos rituais, míticos, históricos, políticos e psicológicos. Assim sendo, os acontecimentos do Rio de Janeiro envolvendo os desterros e os sujeitos por elas atingidos, tem relevância dada a presença dessa ampla rede discursiva atuando na imprensa da época, no sistema penal e policial do Estado brasileiro, nas representações em torno de uma história nacional, da República e da Nação. Pode se atestar que aqueles homens e mulheres desterrados não foram condenados somente pelo aparato repressivo republicano através do estado de sítio, mas acima de tudo condenados e punidos pela nova ordem política, moral e citadina que as elites brasileiras intentavam impor na capital do país.
Para saber mais/Referências bibliográficas
BARBOSA, Rui. Obras completas. Volume XXXVIII, tomo I. Fundação Casa de Rui Barbosa: Rio de Janeiro, 1911.
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. (2001). Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editores.
CARVALHO, Lia Aquino de. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro – 1886/1906. Coleção Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados da República: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 03ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CHALHOUB, Sidney. “Medo branco de almas negras: escravos libertos e republicanos na cidade do Rio”. In Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 08, nº 16, pp. 83/105, 1988.
___________, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós Temos Pasteur – Manguinhos: Oswaldo Cruz e a História da Ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumará, 2007.
CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre, 1998.
________. A margem da história. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2000. DO RIO DE JANEIRO PARA A SIBÉRIA TROPICAL: prisões e desterros para o Acre nos anos de 1904 e 1910 Francisco Bento da Silva Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 161 – 179, jan/jun. 2011 179.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: historia da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, nº 06, pp. 07/46, 1984.
LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
NEEDELL, Jeffrey. Belle èpoque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco. Pequenos estudos de psychologia social. 03ª edição, Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro – 1870/1920. Coleção Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995.
TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e tempo. 02ª edição. Rio de Janeiro: Civilização brasileira/Bibliex, 1982.
*Artigo originalmente publicado na revista Tempo e Argumento, v. 3, n. 1, p. 161–179, jan/jun. 2011.
**Professor do Centro de Ciências Humanas da UFAC. Graduado em Ciências Sociais, com mestrado e doutorado em História. Contato: chicobento_ac@yahoo.com.br.
Do Rio de Janeiro para a Sibéria Tropical: Prisões e Desterros para o Acre nos Anos de 1904 e 1910 (*).
Francisco Bento da Silva (**)
[Jornal do Brasil. Geographia política, ano XIII, nº 334, 29/11/1904, p. 01. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional].
Porque a República escondeu os indesejados?
Nos dois casos citados, os desterrados foram todos penalizados com o desterro sem que quaisquer processos tenham sido abertos contra eles. Eram criminosos sem que crime algum fosse atribuído formalmente às suas pessoas. Tal situação era uma exceção provocada e sustentada pela instituição do estado de sítio, adotado pelo governo brasileiro nos dois episódios.
Entre os desterrados de 1904, nos jornais que fizeram a cobertura à época, aparecem apenas alcunhas dos chamados desordeiros que foram presos e banidos: o crioulo Horácio José da Silva, o vulgo Prata Preta (considerado líder das desordens em “Porto Artur”, no bairro da Saúde), Rato Branco, Truvisco, Machadinho, Almeidinha, Bombacha, Chico da Baiana, Valente, Chico Maluco, João Galego, José Moleque (José Antônio Vieira), Manduca de Luto (filho do açougueiro do bairro) e muitos outros “desordeiros” sem nomes e apenas com seus apelidos conhecidos, que somente aparecem juntos com outros silenciados nos números frios das estatísticas.
O jornal A Noticia (27/12/1904) assim narrou a partida do navio Itaipava na noite do feriado do dia 25 de dezembro de 1904, quando os deportados foram presenteados com uma viagem só de ida para o norte do país, um lugar que parte deles nem chegou conhecer, pois morreu antes:
“Dos porões do navio partiam rumores surdos, gritos, imprecações, blasfêmias (...). Ali, amontoados na maior promiscuidade, crianças e velhos, negros e brancos, nacionais e estrangeiros. Nos porões nenhuma luz! Os 334 condenados, quase nus, debatiam-se nas trevas, com enormes ratazanas que, audaciosamente, os atacavam, cobrindo-os de dentadas. Nos porões os presos sem apoio rolavam uns sobre os outros, magoando-se, escorregando na lama nauseabunda de fezes e vômitos”.
O debate acerca da situação dos degredados tanto da Revolta da Vacina quanto da Revolta da Chibata gerou na capital da Republica calorosas discussões.
O deputado Luiz Domingues protocolou requerimento onde solicitava do poder executivo informações sobre os desterrados para o Acre, cuja mensagem presidencial do dia 29 de maio de 1905 já afirmava: “foram, para garantia da ordem pública, retirados desta Capital para o território do Acre, como desordeiros reconhecidos e indivíduos de má reputação”. O requerimento fazia algumas indagações básicas: quantidade, nomes, nacionalidades dos degredados, em que trabalhavam, onde moravam, porque não foram julgados como outros indivíduos que tomaram parte do movimento, por que não foram submetidos a crimes sujeitos a fiança, etc. Depois do Estado de sítio, o Estado os traria de volta? Se eles não foram acusados do crime de desterros, que crime cometeram? Eles estavam vivos? Onde estavam?
O então deputado situacionista Garcia Pires afirmava categoricamente em discurso que a ação do governo serviu “para a salvação da cidade e para que nos víssemos livres de um desses movimentos que, por honra nossa, deveria ser apagado das páginas de nossa história”. Em seu pronunciamento ele afirmou:
“Não faço injúria de dizer que os conflictos dos dias 12, 13, 14 e 15, nesta cidade, foram praticados pela população da Capital Federal. Não; os homens trabalhadores, os que concorrem para a riqueza pública, esses absolutamente não se envolveram em taes conflictos. Vi nas ruas da cidade essa classe infeliz de indivíduos que abundam em todas as capitaes, homens inteiramente despreoccupados com do sentimento da honra, noctívagos, vagabundos, batedores de carteiras; eram esses que quebravam os lampeões e atacavam as propriedades particulares”.
Em relação aos desterrados da Revolta da Chibata, ocorrida 06 anos depois, o governo utilizou o mesmo procedimento adotado para o caso anterior. Mais uma vez os parlamentares se debruçam num debate em torno dos “criminosos sem crimes” enviados mais uma vez à Amazônia.
O então senador Rui Barbosa, em sessão de agosto de 1911, teceu seus comentários acerca dos passageiros do “navio fantasma” Satéllite nos seguintes termos:
“sobre o caso do navio Satélite chama o governo ‘verdadeiras feras’ aos 400 ex-marinheiros da nossa esquadra desterrados para o norte, nas regiões do Madeira. (...) trataram de ocultar as prisões negando-as até aos membros da Câmara dos Deputados que acudiram à polícia interessados em restituir à liberdade dos detidos”.
Barbosa afirmou que devido às arbitrariedades cometidas nas prisões e a falta de informações precisas sobre os desterrados, o Brasil era um país que ainda aspirava à condição de civilizado, mas os desterros era um fato que aviltava “o Brasil abaixo das últimas nações” do mundo.
Em seguida Rui Barbosa leu uma correspondência, enviada por uma testemunha ocular, sobre as últimas informações do navio Satélite. O missivista, Booz Belfort de Oliveira, justificou sua ausência prolongada da capital da República devido aos resultados negativos das eleições ocorridas em novembro do ano anterior, levando-o a dirigir-se para a região Norte a fim de realizar trabalhos como Auxiliar de Serviços Sanitários na Comissão Rondon. Ele confirmou que estava em Belém quando soube da Revolta da Armada e depois se dirigiu à vila de Santo Antônio do Rio Madeira para atuar na Comissão Rondon, onde soube que os desterrados seriam enviados para trabalhar nesta Comissão e na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Segundo ele na manhã do dia 03 de fevereiro o coronel Cândido Rondon recebeu 200 homens e o restante foi recusado pelos administradores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O navio então permaneceu ancorado e seus passageiros-prisioneiros em estado de quarentena, impedidos de descer do Satéllite durante alguns dias.
Foi então constituída uma Comissão, da qual Belfort de Oliveira fez parte, que constatou a seguinte situação: “posta a prancha para o barranco, conseguimos entrar a bordo. Soubemos estarem todos recolhidos nos porões do vapor, todos os prisioneiros, trezentos e tantos homens e quarenta e uma mulheres”. No comando da guarda do navio estava o primeiro-tenente Matos Costa, que a relatou para a Comissão os acontecidos durante a viagem pela costa brasileira, principalmente a ocorrência de fuzilamentos de alguns degredados que supostamente teriam tentado criar um motim a bordo e atentado contra a vida do comandante. De acordo com o tenente Matos Costa, na saída do porto baiano, houve a eliminação de nove desterrados: sete por fuzilamento e dois teriam se jogado ao mar antes dos tiros. Serviram de exemplo pedagógico para obstar qualquer nova tentativa dos demais prisioneiros em criar novos tumultos nos porões. Tudo ocorreu com carta branca do governo.
Depois das explicações do comandante, este permitiu que os porões do navio fossem abertos. Eis o que relatou a testemunha ocular:
“A guarnição formou ao longo do navio armado em guerra, de carabinas embaladas, os porões foram abertos, e, a luz de um sol amazonense (sic), os quatrocentos desgraçados foram guindados como qualquer cousa, menos corpos humanos, e lançados ao barranco do rio. Eram fisionomias esguedelhadas, mortas de fome, esqueléticas, e nuas como lêmures das antigas senzalas brasileiras. As roupas esfrangalhadas deixaram ver todo o corpo. As mulheres, então, estavam reduzidas às camisas”.
Então ele relata que uma porção de seringueiros começou a escolher aos lotes homens esfarrapados e magros, que mostravam restos de uma robustez passada, para realizarem trabalhos de cortes de seringa nos vastos seringais amazônicos. Já as mulheres, segundo o cronista, “como lobas famintas, entregaram-se a prostituição, para sustento do corpo e a estas horas talvez não existam mais”.
Nem todos os desterrados da Revolta da Chibata eram marinheiros, a grande maioria era de civis, presos durante o período do estado de sítio ou recolhidos na Casa de Detenção. Aqueles que ficaram a serviço da Comissão Rondon, Belfort de Oliveira relata que dormiam no chão, sem agasalho ou proteção contra os mosquitos anófeles e amanheciam sob o nevoeiro de “friagens malditas”. Realizavam serviços brutais sob o calor de 39º celsius e careciam de alimentação compensativa às suas necessidades diárias de calorias. Inclusive, ocorrendo na própria Comissão casos de fuzilamentos como relata Belfort de Oliveira em determinada passagem da sua carta.
Terminada a leitura da carta na tribuna, Rui Barbosa passou a fazer suas considerações com apontamentos voltados à luz do direito, sua seara. Afirmou a todos que tudo aquilo compunha um quadro horrendo de grosseria e desumanidade, uma abolição completa do respeito à vida, um nivelamento de seres humanos às criaturas irracionais e um desprezo “aos progressos cristãos de nosso tempo”. E continua diante de todos: “Em toda minha vida política, nos quarenta anos de sua duração, é o mais cruel dos cruéis desenganos por que tenha passado a minha consciência de homem sincero”. Contudo, sua indignação e denúncia não afetam as posições defendidas pelo governo e parte da imprensa que apoiaram aquelas medidas.
Já os desterrados de 1904, pouco conhecemos sobre suas vidas no Acre. Ainda hoje, o que sabemos é que saíram com destino a esta localidade e alguns jornais acreanos atestam a chegadas destas pessoas pelo menos nas cidades de Cruzeiro do Sul e Xapuri. Resta-nos, seguir os parcos indícios deixados nas margens através de poucos documentos e fazer o diálogo possível com estes lampejos que chegaram até nós. Como é o caso do Preto Lycurgo, alcunha de Álvaro de Carvalho, que foi preso alguns anos depois na cidade de Xapuri acusado de ter cometido um assassinato naquela cidade.
Amazônia, uma terra “sem história”
Porque a Amazônia? O olhar de grande parcela dos homens do sul do país — pertencentes à intelligentsia da época — desde muito tempo estava condicionado pela idéia de que a Amazônia era uma terra ignota, distante, inóspita e inadequada à presença humana. No zeitgeist (espírito do tempo) dominante à época, aqueles que nela habitavam eram considerados sujeitos que estavam em descompasso com certa visão acerca da “história nacional” e com os ideais civilizatórios, de lampejos eurocêntricos, que desembarcavam aqui nos trópicos.
O próprio antropólogo belga Claude Levi-Strauss, em sua obra Triste trópicos, referiu-se à região como “o mundo perdido”, de populações enigmáticas, uma terra proibida e ainda desconhecida da civilização, localizada para além das franjas do sertão do Brasil central onde ele realizou seus estudos etnológicos. Talvez o título do capítulo de sua obra remeta a uma possível leitura sua da obra do escritor Arthur Conan Doyle, lançada em 1912, chamada por sinal de O mundo perdido.
Quando o escritor Euclides da Cunha tem seu primeiro contato com a Amazônia, logo ele afirma existir uma Amazônia real e outra imaginada. Esta última seria aquela presente nos relatos de cronistas e viajantes desde o XVI. No capítulo Terra sem história, de sua obra póstuma A margem da História, ele afirma que a imagem real é inferior a subjetiva, tecida ao longo dos tempos. Segundo suas impressões telúricas constituídas in loco, faltava harmonia estética, beleza equilibrada à Amazônia, portadora de uma grandeza monótona, de horizontes vazios e indefinidos numa planura desmedida.
Nesse meio físico que era a Amazônia, Cunha apontava que o homem chegou como um intruso impertinente. Aparecera sem ser esperado e querido, quando a natureza era ainda uma opulenta desordem. A Amazônia aparecia aos seus olhos como pertencente à outra era geológica. Mais que um descompasso temporal, havia também um descompasso civilizatório e cultural da população local. Era uma região que tinha tudo e faltava tudo (artes, ciências, história, compreensão), dizia ele. Por isso ele considera que na Amazônia o brasileiro, mesmo pisando em terras pátrias, era um estrangeiro que não fincava raízes no lugar. A própria Amazônia era uma terra sem pátria, um local selvagem que impressionava uma civilização distante, que seria o sul do país, o litoral que há muito era a antítese do Sertão (idem, ibidem).
Esta natureza brutal e soberana seria sempre uma adversária do homem: diante do homem errante a natureza era estável; para o homem sedentário, ela seria revoltosa e volúvel. Por isso, a Amazônia se caracterizava por ser uma terra de nomadismo, da inconstância que remetia à figura metafórica dos seus rios erráticos. E era/é através dos rios, que se chega(va) aos seringais, que nada mais são que um misto de paraíso e inferno na visão euclidiana. Um mundo feudal, torto e bronco em “descompasso evolutivo”. Malgrado suas idiossincrasias culturalistas, seu tom é de denúncia.
Vejamos também como Belfort de Oliveira rememora suas impressões acerca dos degredados que ele observara desembarcando nas alastrantes terras amazônicas:
“...ali (na Amazônia) impera o cinismo, o crime, o contrabando e todas as misérias da humanidade (...) também sofrem os soldados, que recrutados em todos os estados da União, com as mesmas bazófias do futuro, vão para servir de escravos a mando de braços bordados de galardões, chibateados da manhã à noite”.
É também um misto de denúncia dos poderosos do mundo dito civilizado em oposição da vida sofrida do homem comum em uma terra sem lei e sem ordem. Visão semelhante a sua é a do inglês Henry Whistler, que em 1654 se referia desta forma ao relatar o fato da Inglaterra mandar para a colônia caribenha de Barbados seus degredados: “Esta ilha é um monte de estrume onde a Inglaterra despeja seu lixo: vadios e prostitutas e outras pessoas do tipo são as que em geral trazem para cá”.
A Amazônia adquire então aspecto parecido ao descrito por Whistler, um depósito para o “lixo”, para o “estrume social” indesejado e produzido pelas contradições do modelo republicano, que estava em transição de um renegado passado monárquico e escravista que teimava em permanecer com alguns traços nos comportamentos e feições de parte da população. Junto a isso, havia ainda o processo de urbanização e remodelamento da capital da República que vinham sendo implementados desde a última década do XIX, bem como as políticas de saúde pública com a vacinação obrigatória.
Estes sujeitos desterrados eram os homens e mulheres que, nos dizeres de Euclides da Cunha, “levavam a doloríssima missão de desaparecer” quando foram condenados ao desterro no Acre, a “Sibéria tropical”. Região vista como um local adequado aos recalcitrantes, por ser essa região considerada erma, distante, vazia, sem civilização, sem cultura constituída e, portanto, sem história. E o Acre, apenas “uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se sem limites”.
Neste sentido, a natureza amazônica com sua grandiosidade, seus “vazios” demográficos e seus perigos, seria uma mãe disciplinadora para os filhos rebeldes da Nação, que iriam ser “polidos” nas suas brutezas pela natureza e amaciados pelas dificuldades de adaptação que ela ofereceria àqueles que também “chegam sem ser convidados” (CUNHA, 1998).
Foram então condenados a viver, — ou morrer —, no Acre, entre uma “vaga população erradia e dispersa, perdida em um recanto selvagem da Amazônia”, como se refere Oliveira Vianna (Oliveira Viana, 146). Uma população que no entendimento deste sociólogo era formada majoritariamente por “cangaceiros tumultuários; jagunços explosivos e turbulentos; sertanejos rebeldes e indomáveis” (idem, p. 147). Se o Acre era assim, nada mais justo no imaginário de algumas personalidades da época em mandar pessoas com semelhantes predicados para viverem longe da república imaginada e sonhada. Foi assim que embarcaram em navios-prisões grupos heterogêneos de homens e mulheres para uma viagem sem volta, para um destino cruel, onde o horizonte que se apresentava era ou a morte ou o isolamento na “Sibéria tropical”.
Para os sobreviventes adventícios, restava o exílio na “própria” terra, num local afastado e desconhecido que paradoxalmente também era uma “outra” terra. Os defensores dos desterros acreditavam que somente por meio de um trabalho rigoroso e severo é que aqueles homens rudes e mulheres licenciosas teriam a oportunidade de abrandarem suas brutezas e práticas condenáveis pelo olho do poder civilizatório e policialesco que se tentava implantar na capital da nação brasileira. Vale lembrar que os verbos polir e policiar possuem a mesma matriz semântica. Neste sentido o Estado intentava exercer polimento e policiamento das mentes desviadas, dos corpos indômitos e das práticas condenáveis. Visava enquadrar os indivíduos para serem sujeitos “bons e do bem”, monopolizando a violência legal para instaurar a ordem imaginada.
Considerações finais
Neste breve artigo intentamos trazer ao presente algumas questões relativas aos desterros implementados pelo Estado brasileiro como punição e penalização aos “sujeitos incômodos”, considerados perigosos ao convívio social que se idealizava como correto na capital da república no início do século XX. Como afirmou certa vez Marc Bloch (2001), não existe passado morto. Existe passado esquecido — consciente e inconscientemente —, inacessível ou perdido. No caso dos desterrados, suas expulsões traziam a marca do isolamento, da tentativa de escondê-los nas selvas longínquas da Amazônia acreana. Além do banimento físico, se procurou bani-los da memória, apagar suas identidades e seus dramas à posteridade.
Se lembrarmos Andréas Huyssen (2000), diz ele que o lugar da memória em uma sociedade qualquer é determinado por uma rede discursiva complexa, portadora de aspectos rituais, míticos, históricos, políticos e psicológicos. Assim sendo, os acontecimentos do Rio de Janeiro envolvendo os desterros e os sujeitos por elas atingidos, tem relevância dada a presença dessa ampla rede discursiva atuando na imprensa da época, no sistema penal e policial do Estado brasileiro, nas representações em torno de uma história nacional, da República e da Nação. Pode se atestar que aqueles homens e mulheres desterrados não foram condenados somente pelo aparato repressivo republicano através do estado de sítio, mas acima de tudo condenados e punidos pela nova ordem política, moral e citadina que as elites brasileiras intentavam impor na capital do país.
Para saber mais/Referências bibliográficas
BARBOSA, Rui. Obras completas. Volume XXXVIII, tomo I. Fundação Casa de Rui Barbosa: Rio de Janeiro, 1911.
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. (2001). Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editores.
CARVALHO, Lia Aquino de. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro – 1886/1906. Coleção Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados da República: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 03ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CHALHOUB, Sidney. “Medo branco de almas negras: escravos libertos e republicanos na cidade do Rio”. In Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 08, nº 16, pp. 83/105, 1988.
___________, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós Temos Pasteur – Manguinhos: Oswaldo Cruz e a História da Ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumará, 2007.
CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre, 1998.
________. A margem da história. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2000. DO RIO DE JANEIRO PARA A SIBÉRIA TROPICAL: prisões e desterros para o Acre nos anos de 1904 e 1910 Francisco Bento da Silva Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 161 – 179, jan/jun. 2011 179.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: historia da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, nº 06, pp. 07/46, 1984.
LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
NEEDELL, Jeffrey. Belle èpoque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
OLIVEIRA VIANNA, Francisco. Pequenos estudos de psychologia social. 03ª edição, Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro – 1870/1920. Coleção Biblioteca Carioca. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura, 1995.
TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e tempo. 02ª edição. Rio de Janeiro: Civilização brasileira/Bibliex, 1982.
*Artigo originalmente publicado na revista Tempo e Argumento, v. 3, n. 1, p. 161–179, jan/jun. 2011.
**Professor do Centro de Ciências Humanas da UFAC. Graduado em Ciências Sociais, com mestrado e doutorado em História. Contato: chicobento_ac@yahoo.com.br.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home