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12 julho 2021

NOSSA GAMELEIRA, QUEM DIRIA, AGORA É UM APUÍ (OU MATA-PAU)

 Evandro Ferreira*

A cidade de Rio Branco foi fundada pelo cearense Neutel Maia em 28 de dezembro de 1882, por ocasião do estabelecimento de seu primeiro seringal em terras acreanas. Segundo relatos perpetuados oralmente, a razão da escolha do local para instalar seu seringal – batizado como “Volta da Empreza” – foi a existência de uma gigantesca e frondosa árvore conhecida como “gameleira” em uma curva do rio Acre.

Eu me arrisco a especular que Neutel Maia escolheu o local da gameleira provavelmente por ele ser, nas redondezas, a única área de “terra firme” cujo “barranco” – que chegava até a margem do rio Acre – não era afetado pela erosão comum em margens de rios meândricos como o nosso. Isso facilitou o estabelecimento de um porto funcional no inverno e no verão, apto para barcos de variadas tonelagens.

De fato, o programa “Google Earth” mostra que a montante, ou seja, acima da curva da gameleira, área com condição similar só existe onde hoje está instalado o CEASA, cerca de 7 km rio acima. A jusante, locais similares só são encontrados mais de 10 km seguindo o curso do rio, na região hoje conhecida como Belo Jardim.

O fato é que a existência da gameleira no local de fundação da nossa cidade se constituiu em uma referência histórica usada para se chegar ao “marco zero” de Rio Branco. Tanto que para homenagear e proteger nossa árvore símbolo, o local foi tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal de Rio Branco através do Decreto Nº 752, de 28 de dezembro de 1981.

A partir de 2002 o sítio histórico localizado no entorno da gameleira foi revitalizado. Foi construída uma barreira de contenção para evitar o desbarrancamento do rio, restaurados diversos prédios históricos, construído um marco para abrigar uma gigantesca bandeira do Acre e um calçadão equipado com quiosques, bancos e deck de observação do rio.

Em razão da presença marcante da gameleira, toda aquela região é hoje conhecida como “calçadão da gameleira”. Até o mastro é referido como “mastro da gameleira”.

Apesar do esforço para preservar nossa história e, principalmente, a árvore símbolo da fundação de nossa cidade, a lenta e inexorável ação da natureza resultou em uma mudança biológica que põe em cheque a manutenção do nome “gameleira” como o de “batismo” de todo o complexo que conhecemos como “calçadão da gameleira”.

A verdade é que não existe mais “gameleira” no calçadão da “gameleira”. Não se sabe ao certo quando a gameleira original deixou de existir. De certo, o que temos certeza é que hoje, no lugar da gameleira, temos um majestoso pé de “apuí”, árvore também conhecida popularmente como “mata-pau”.

E como isso aconteceu?

Vamos à explicação. Tanto a “gameleira” como o “apuí” pertencem à família botânica das Moráceas, que inclui 37 gêneros e mais de 1000 espécies no mundo, dos quais 17 gêneros e cerca de 80 espécies no Acre. Algumas plantas muito conhecidas dessa família no Acre são, além da gameleira e do apuí, o caucho, a caxinguba, a guariúba, o inharé e o manitê.

Gameleira é um nome popular que se aplica a diversas árvores de Morácea do gênero Ficus. O nome popular possivelmente deriva do fato da madeira dessas árvores ser usada na confecção de gamelas.

No Acre, o nome gameleira, conforme resultado de consulta ao acervo do Herbário do Parque Zoobotânico da UFAC, é usado para designar pelo menos três espécies distintas: Ficus coerulescens, Ficus insipida e Ficus maxima. Todas elas são árvores convencionais, ou seja, suas sementes germinam no solo e seu tronco se desenvolve normalmente até atingir o dossel da floresta.   

O nome “apuí” se aplica a pelo menos 16 espécies de Ficus nativas do Acre. Ao contrário da gameleira, alguns apuí são plantas “estranguladoras” ou seja, crescem sobre outras plantas como epífitas (sem ser parasitas), se alimentando inicialmente de água e nutrientes que se acumulam no emaranhado de galhos da planta hospedeira.

Com o tempo, o apuí lança raízes em direção ao solo para obter de forma mais segura e abundante água e nutrientes para o desenvolvimento do seu tronco e copa. Nesse processo, ele “abraça” o corpo da planta que lhe hospeda e o “estrangula”, ocupando o seu lugar após um processo que pode durar dezenas de anos. Essa é a razão do apuí também ser chamado de “mata-pau”. Pois é: ingratidão existe até no mundo vegetal.

Isso aconteceu com a majestosa “gameleira” que testemunhou a fundação de Rio Branco. Lugares entre seus galhos eram propícios para a germinação de sementes de outras plantas, como se vê em troncos de palmeiras vivas cheias de samambaias. Essas sementes são trazidas por pássaros que se alimentam dos frutos de uma árvore e voam para longe, defecando as sementes sobre outras árvores.

Portanto leitores, nossa “gameleira”, a do calçadão, a do mastro, a que foi tombada pelo patrimônio histórico, não existe mais. Ela foi “estrangulada” e no seu lugar se desenvolveu um majestoso e grandioso “apuí”.

O nome científico da antiga gameleira, símbolo de nossa cidade, não é mais possível determinar. Mas o do apuí que está no seu lugar (posando de gameleira) esse sabemos. Chama-se Ficus sphenophylla.

E agora? O que fazer? Mudar tudo para “Calçadão do Apuí”? “Mastro da bandeira do apuí”? Ou vamos viver na ilusão de que ainda temos uma gameleira por lá?

* Evandro Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e do Parque Zoobotânico (PZ) da Universidade Federal do Acre (UFAC).