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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

20 abril 2006

AS CAPITAIS DO ACRE: A CIDADE E OS PODERES

PARTE 2

Maria Lucia Pires Menezes
Universidade Federal de Juiz de Fora

Nelson da Nobrega Fernandes
Universidade Federal Fluminense

Sena Madureira e Cruzeiro do Sul e a presença do Estado nos vales acreanos

O governo brasileiro decidiu incorporar o Acre como território federal estabelecendo estrutura política-administrativa organizada pela Lei 1181, de 25 de fevereiro de 1904, dividindo-o em 3 departamentos e apenas 1 comarca. Os destacamentos militares ali fixados além da tarefa de defesa foram encarregados da administração política. O General Siqueira de Menezes, combatente em Canudos e destacado para enfrentar os peruanos no Purus, ficou encarregado da escolha do sítio da futura cidade de Sena Madureira; o Coronel do Exército Nacional Gregório Taumaturgo de Oliveira, tornou-se o primeiro prefeito nomeado da cidade de Cruzeiro do Sul, e o General Olímpio da Silveira foi nomeado comandante do XV Batalhão de Infantaria e responsável pelo governo militar do Acre Setentrional.

Inicialmente, houve preocupação em fortalecer as localidades estratégicas na geografia local, levando-se em consideração a organização da produção, o porto e consequentemente sua posição em relação ao regime hidrográfico e a vigilância sobre as terras recém incorporadas ou a serem incorporadas ao território nacional. A administração militar esteve incumbida de agir sobre 3 departamentos: o Alto Acre, o Alto Purus e o Alto Juruá.

Na ocasião, o governo da cidade de Lima alegando validez de títulos coloniais, reivindicava todo o território do Acre e mais uma extensa área do estado do Amazonas. Delegações administrativas e militares desse país tentaram se estabelecer no Alto Purus (1900, 1901 e 1903) e no Alto Juruá (1898 e 1902), mas foram obrigadas a abandonar a região em setembro de 1903. O Barão do Rio Branco, para evitar novos conflitos, sugeriu um modus vivendi para a neutralização de áreas no Alto Purus e no Alto Juruá, através de uma administração conjunta a partir de julho de 1904. Isso não impediu um conflito armado entre peruanos e um destacamento do exército brasileiro em serviço no recém-criado departamento do Alto Juruá. A luta findou com a retirada dos caucheiros e das forças peruanas. Como resultante, criou-se por determinação federal a vila e futura cidade de Cruzeiro do Sul. Entre Sena Madureira e Cruzeiro do Sul o governo optou por localizar a capital do Acre na região do vale do Purus, pois atendia melhor as necessidades de investimentos na área com maior volume de produção, recém pacificada e de fato já incorporada oficialmente pelo Tratado de Petrópolis. Enquanto Siqueira de Menezes “fundava” Sena Madureira, reforçava-se a presença militar no Alto Juruá centralizada na vila de Cruzeiro do Sul, com a criação de um Batalhão de Fronteira do Exército.

A localização das principais cidades acreanas de então revela a historicidade da geografia política dos vales em relação a variação das linhas geodésicas; isto por que : Essa colocação obedeceu a dois imperativos: geográfico e político: Tivesse aquela linha sido jogada mais ao norte e essas cidades estariam deslocadas na direção dos baixos rios . O motivo político sobrepõe-se à necessidade natural, mas esta se vinga separando os aglomerados humanos, até que o homem os anule por meio de estradas de penetração. (Moura & Wanderley, 1938:10)

Isto revela que estas cidades assumiram, assim como Porto Acre (Puerto Alonso), Tarauacá (Vila Seabra) e Feijó uma posição de localidade fronteiriça, mas com a incorporação do Acre perdem evidentemente esta posição, ou seja, deixam de ser cidades sobre a antiga linha fronteiriça para inserirem-se numa situação de cidades da zona de fronteira, após a delimitação do território do Acre.

É preciso também considerar o fato da posição da região dentro da rede urbana, organizada em função da atividade extrativa, onde os centros comerciais e atacadistas direcionavam os diferentes fluxos para as posições de centralidade regional, no caso Belém e Manaus, então, as maiores e mais importantes cidades da Amazônia sul-americana. Havia portanto uma tensão entre a pressão do limite internacional e a direção imposta pela lógica comercial e hierárquica da rede urbana. Assim, os núcleos que deram origem as cidades localizaram-se e organizaram-se em função da lógica da atividade extrativa gomífera. Os sítios privilegiados estavam nas confluências de rios, como no caso de Sena Madureira, situada nas proximidades da confluência do rio Iaco com o rio Acre ou, também, os meandros - que permitiram uma maior disponibilidade de área portuária, bem como do adensamento da área ocupada. Tal situação permitiu a convergência da circulação dos fluxos da extração da goma e da localização da primeira etapa de comercialização, onde o sistema de aviamento instalou as feitorias comerciais para estocar a borracha extraída, ao mesmo tempo em que permitiu o fornecimento aos seringueiros dos víveres e dos instrumentos de trabalho. Formou-se assim uma ligação com o Barracão, sede administrativa e comercial do seringal e também lugar da vigilância do seringalista, da circulação de riqueza e da sociabilidade. Segundo Boff (1994), no barracão são celebradas festas de caráter social e religioso em fins de ano e no mês de junho, assim como cerimonias de batizado e de casamento. É claro que a confluência é, também, local ideal para os postos de fiscalização e a cobrança de impostos.

O crescimento das vilas e cidades após a anexação do Acre instaura sobre o espaço mecanismos para realização das razões geopolíticas e econômicas do poder do Estado em termos de tributação, aproveitando-se da infra-estrutura preexistente da empresa seringalista amazônica. A criação de Sena Madureira e sua transformação em capital do território do Acre revelam a junção dos interesses de Estado com a iniciativa privada frente a uma situação de limite internacional e borda fronteiriça, na exata medida que interessava ao Estado federal fiscalizar os fluxos de fronteira, tributar a produção e garantir a soberania territorial.

Em 1908, pouco antes de tornar-se cidade e capital do Acre, é instalado em Sena Madureira o Tribunal de Apelação e a sede da justiça federal no território. Segundo Boff (1990), no auge da valorização da borracha havia na cidade dezenas de casas comerciais, serviços de atendimento à grande parte das necessidades básicas da população e pelas casas que empreendiam inúmeras iniciativas de compra e venda de produtos dos mais variados, desde os regionais até os importados e de artigos de luxo. A cidade contava com jornais (ex. O Alto Purus e O Jornal), hospital de caridade, iluminação elétrica, telégrafo, um sistema de bondes puxados a burro, ruas bem traçadas com valas de drenagem, um teatro (Cecy) e dois cinemas. Os anos 1912-14 representaram o auge da cidade, quando Sena Madureira funcionou como a verdadeira capital do Acre, sendo a sede de inúmeros órgãos públicos como: a Justiça Federal, a Administração dos Correios, a Delegacia Fiscal, o Tesouro Nacional, a Comissão de Defesa da Borracha, a Estação Geral do Telégrafo, a Delegacia do Ministro da Agricultura, a Comissão de Limites Brasil- Peru, e um Vice- Consulado de Portugal.

A economia local baseava-se na borracha e na castanha o que garantia grandes safras anuais dos dois produtos. Este fator atraiu estrangeiros – peruanos, bolivianos, portugueses, judeus, sírios, libaneses e armênios; ricos comerciantes da Amazônia e do Nordeste, coronéis aventureiros em busca de riquezas na região. O movimento migratório proveniente do Nordeste brasileiro vendia sua mão de obra para três categorias de interessados – os estrangeiros, os comerciantes e os coronéis. (Cf. Boff,1990)

A debacle econômica e a atitude centralizadora da administração federal sobre o controle do território transferiu a capital de Sena Madureira para Rio Branco, em 1920. A efemeridade da vida urbana de Sena Madureira, causada pela falência das casas aviadoras com a desvalorização da borracha, anunciou um longo período de despovoamento do Alto Purus.

Na verdade, sequer o auge da riqueza das exportações foi capaz de sanar uma série de mandos e desmandos do governo federal em relação a administração do território acreano. Dentre os principais problemas estava a falta de comunicação entre os vales do rios Purus e Juruá, outro dizia respeito aos cargos federais empossados no Acre, fossem militares ou representantes do judiciário, que via de regra não tinham nenhum comprometimento com a região e sua presença em território acreano era sempre passageira. Ademais, a riqueza que saía da região não retornava na forma de verbas, investimentos ou infra-estrutura. Porém, o que mais afetava a vida administrativa eram as constantes mudanças na divisão territorial e a inadequação nas medidas de organização interna do Acre. Um projeto de 1908 do senador da república Francisco Sá propunha a extinção das prefeituras e estabelecia para o território um só governo. Para outros a realidade acreana demonstrava o contrário. E era preciso não viver no Acre para desconhecer a impraticabilidade dessa união administrativa, pois a União não procurara unir os diferentes municípios, ligá-los por meio de estradas, por um regime de navegação interna que o tirasse da dependência de Manaus, ainda hoje o centro de convergência e irradiação de comunicações com o território. (Costa, 1940:189)

Segundo Castelo Branco (1930), a penetração do alto Juruá até a região de seus formadores acontece a partir de 1880, quando frentes de brasileiros nordestinos se fixaram na foz do rio Liberdade, ao mesmo tempo em que se intensificam choques com indígenas e destes com peruanos. A partir de 1897 com o declínio da produção do látex de terra firme no alto rio Javari os peruanos se deslocam em direção aos rios Jutaí e Juruá. O Barão do Rio Branco admite essa invasão no correr de 1896, ano em que, segundo um dos desbravadores do alto Juruá, o peruano Vicente Mayna fundou um arraial no local em que atualmente se encontra Porto Valter, não com o fim de negociar e tão somente de explorar os cauchais vizinhos.(Castelo Brancodata:137) Porto Valter quando sob o domínio dos peruanos denominou-se Puerto Alberto e Vila de Iucatan, até que em 1905 decreto do prefeito brasileiro, coronel Taumaturgo de Oliveira, consignou o lugarejo como sede da segunda circunscrição de paz sob a prefeitura de Cruzeiro do Sul. Até o tratado com o Peru, coube ao governo brasileiro reforçar sua presença militar e administrativa no departamento do Alto Juruá, tendo como sua sede a cidade de Cruzeiro do Sul.

Fortalecida e assegurada a soberania do Brasil na região, a vida econômica segue no ritmo das exportações do látex, até que a pequena classe média de Cruzeiro do Sul, face ao isolamento e a precariedade da região inicia um enfrentamento com o governo central, do qual redundaria uma rebelião autonomista com importante participação do governo do Amazonas.

Com a vida administrativa, judiciária e política concentrada entre Sena Madureira e a próspera cidade de Rio Branco, o alto Juruá ficou numa situação de isolamento tal que eclode em 1910 a Revolta Autonomista do Acre, cujo pólo de organização se deu na cidade de Cruzeiro do Sul. Antes de sua fundação, em 28 de setembro de 1904, Cruzeiro do Sul era um pequeno povoado chamado de “Centro Brasileiro”. Na sua fundação, Cruzeiro do Sul foi elevada à categoria de vila. Em 31 de maio de 1906 foi considerada cidade, e a 23 de outubro de 1912 passou a ser a sede do município do Juruá (atual município de Cruzeiro do Sul). A cidade foi assentada entre o rio Juruá e pequenos igarapés, afluentes do mesmo rio que correm pelo meio da cidade. Durante muitos anos foi o ponto final das principais linhas de navegação que adentravam pelo vale do rio Juruá. Uma viagem de Cruzeiro do Sul a Manaus durava de 20 a 25 dias, o que sem dúvida dava uma conotação de epopéia aqueles que se deslocavam no sentido contrário.

Na época a região do Alto Juruá estava sobre os procedimentos do tratado de 1909 entre Brasil e Peru, que definiam seus limites e tentavam estabelecer, por conseqüência, ordem sobre as incursões e pretensões de peruanos nas áreas indivisas dos rio Breu e Amônea, onde havia relatos e ocorrências de conflitos envolvendo caucheiros de ambas as nacionalidades e indígenas. Em meio ao descaso administrativo, a livre ocupação e circulação propiciada pela atividade extrativa e a falta de investimentos e infra-estrutura territorial, principalmente nas localidades, os principais representantes da elite urbana que recém migrara para o Alto Juruá propõem a autonomia do território acreano e sua filiação à União como membro federado. A Junta Governativa reunida em 1 de junho de 1910 deliberou: respeitar a propriedade e demais direitos adquiridos nas formas das leis vigentes no país, manter a ordem pública no Departamento, manter todos os serviços públicos existentes, impedir a saída da borracha do Departamento para que o governo federal não continue a arrecadar o “extorsivo” imposto que onerava a produção. A posição de proibir a exportação de borracha gerou imediata reação das casas aviadoras de Belém e Manaus. A política adotada foi a de manobrar no sentido de cooptar elementos de dentro do movimento, com o qual, em parte, os interesses das elites econômicas na região concordavam e, principalmente, retomar o ciclo comercial da borracha.

Houve, ainda, uma proposta do Presidente Nilo Peçanha de instaurar no território apenas duas prefeituras: uma com sede em Rio Branco, com a alegação de ali o Acre ser mais comercial, rico e populoso; e outra, em Cruzeiro do Sul. Ambas com uma estrutura administrativa e fiscal semelhantes ao Distrito Federal (cidade-município do Rio de Janeiro), exceto quanto aos impostos municipais, pois seriam cobrados apenas os direitos de exportação sobre a borracha, reduzidos, porém, a 15% sendo 30% para a União e 70% para as duas prefeituras, na proporção de suas exportações. Houve da parte dos autonomistas uma aceitação inicial da sede do governo manter-se em Sena Madureira. Esta posição visava conquistar a adesão e a solidariedade do Alto Purus a causa autonomista.

O que se expressou do ponto de vista geográfico foi o reconhecimento de duas realidades distintas, isto é, de duas regiões diretamente conectadas ao centro mercantil mais próximo e importante – a cidade de Manaus. Cada região através de uma bacia hidrográfica, independentes entre si, mas tributárias do rio Solimões e que se assemelhavam em termos da história de ocupação, mas que se diferenciavam se analisadas as origens das frentes de trabalho, do circuito comercial da produção e da troca de serviços em que cada uma estava localizada: a bacia do Juruá e a bacia do Purus-Acre.

Em 1910, a borracha alcançou no mercado internacional a maior cifra, tendo o Brasil exportado o equivalente a 50% da produção mundial. No mesmo ano, em Cruzeiro do Sul, a primeira revolta autonomista depôs o Prefeito Departamental do Alto Juruá, proclamando a criação do Estado do Acre. Cem dias depois, tropas federais atacaram os revoltosos e restabeleceram a “ordem” e a tutela. Sena Madureira, em 1912, e Rio Branco, em 1918, também conheceram revoltas autonomistas que foram igualmente sufocadas pelo governo brasileiro.(9)

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