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30 agosto 2006

A FLORESTA AMAZÔNICA E O FUTURO DO BRASIL

Charles R. Clement & Niro Higuchi (INPA)
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006

Parte 2
(clique aqui para ler a Parte 1)

A JANELA E A AMAZÔNIA

Segundo a Avaliação dos Recursos Florestais Globais (FRA 2005) (9), a cobertura florestal do Brasil corresponde a 477,7 milhões de hectares, dos quais, 89% estão na Amazônia, ou seja, 426,5 mi ha. Inventários realizados em 21 sítios diferentes mostram que o volume médio das florestas naturais na Amazônia é 262 ± 54 m3/ha, dos quais 10% são considerados comerciais. Isto é um estoque enorme, mas atualmente contribui pouco para o desenvolvimento da Amazônia.

Analisar a produção de madeira na Amazônia é uma tarefa muito difícil. As estatísticas mais organizadas são fornecidas por duas organizações multilaterais: ITTO, que congrega produtores e consumidores de madeira tropical e FAO (Food and Agriculture Organization) da Organização das Nações Unidas. O problema é quem abastece essas organizações, pois o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) nunca sistematizou a coleta e análise dos dados sobre a produção de madeira tropical no país. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mantém, com relativa atualização, a dinâmica da produção de madeira (10), com as limitações conhecidas devidas à amostragem.

Ocasionalmente, há trabalhos individuais, como os de Nepstad et al. (11) sobre a safra de 1996-97 e de Lentini et al. (12) sobre a safra de 2004. Apesar das dificuldades, é possível observar um crescimento na produção de madeira entre 1975 e 1991, e uma tendência de queda após 1991 (Tabela 1). Acreditamos que seja razoável adotar um valor de 25 milhões de m3 como a produção anual atual de madeira em tora.

A contribuição da Amazônia ao mercado internacional tem sido muito modesta apesar de produzir aproximadamente 25 milhões m3 por ano. As razões para isso são várias, incluindo a exploração concentrada em poucas espécies conhecidas pelo mercado, a falta de infra-estrutura apropriada, e, principalmente, a baixa qualidade da madeira produzida na Amazônia devido ao baixo nível tecnológico, o que resulta em grande desperdício; apenas 30% de uma tora é aproveitado, ou seja, 70% vira lixo urbano e rural no ato de processamento.

O quesito de qualidade é crítico e explica porque a maior parte da madeira da Amazônia é vendida no mercado interno e não tem uso nobre (enormes quantidades são usadas na construção civil e jogadas fora após um único uso). Essa falta de qualidade é devida ao uso de tecnologias e equipamentos ultrapassados, pois as empresas do setor não têm acompanhado a evolução tecnológica dos países concorrentes. Sem esses investimentos, até o mogno não capta todo o valor possível. Sem atingir os padrões de qualidade exigidos pelo mercado internacional, principalmente Japão, Europa e Estados Unidos, não é possível ocupar o espaço que Grainger (8) previa para o país.
Os fatores mencionados aqui são resultados do subdesenvolvimento da Amazônia e da falta de políticas públicas dirigidas ao setor florestal. Então, como aproveitar a janela de oportunidades e tentar garantir água para o Sudeste do país ao longo deste século?

A FLORESTA AMAZÔNICA E O FUTURO DO BRASIL

A Alemanha medieval e o Japão da era Tokugawa podem servir como modelos para o Brasil. Ambos países mudaram dramaticamente suas políticas públicas e os investimentos de seus governos federais e estaduais, estimulando o setor privado a investir. As memórias de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek foram recentemente ressuscitadas na televisão e lembram que alguns governos brasileiros também foram capazes de mudanças audaciosas.
A Lei 11.284/06, sobre a exploração sustentável de florestas para a produção de madeira, foi promulgada em março de 2006. Apesar de ser um passo importante, é polêmico, porque o tipo de concessão proposto não tem funcionado no mundo tropical. No caso brasileiro, sua eficácia é mais duvidosa ainda porque a lei será implementada apenas pelo Ministério de Meio Ambiente (MMA), via Serviço Florestal Brasileiro (a ser criado), quando deveria ser implementada pelo conjunto dos ministérios para alcançar o resultado pretendido: a produção sustentável de madeira na Amazônia com a conservação de grandes áreas florestais. Para o Brasil aproveitar essa janela é necessário muito mais do que uma lei e um ministério.

A visão que apresentamos neste artigo é de uma Amazônia desenvolvida com base na floresta, com indústrias madeireiras usando tecnologia de ponta para produzir produtos acabados para o mercado internacional e nacional e usando madeira oriunda de florestas manejadas, enriquecidas e certificadas. Quanta floresta será necessária? As estimativas de área e volume apresentadas na FRA 2005 incluem florestas primárias densas, manejadas, capoeiras e cerrados. Propomos uma área de floresta amazônica igual a 250 milhões de hectares, com uma média de 250 m3/ha (10% comercial), como razoável e conservador. Com este pressuposto, o estoque atual de madeira comercial na Amazônia é de 6,25 bilhões de m3, que daria para atender os mercados de madeira tropical (internacional = 52 milhões m3/ano e nacional = 20 milhões m3) durante 87 anos, movimentando US$ 22 bilhões por ano. Isso é tempo suficiente para desenvolver um modelo econômico baseado na floresta – se usarmos o tempo apropriadamente – e o desenvolvimento pagará sua própria conta após uma década.

Para começar, num espaço de 10 anos, teremos que inverter a relação aproveitamento e desperdício, passando de 30% versus 70% para 70% versus 30% e, principalmente, colocar no mercado não apenas 10 m3/ha e sim 50 m3/ha de madeira em tora. Isso pode ser conseguido usando os estudos de tecnologia de madeira já realizados pelos laboratórios da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, em Santarém, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em Manaus, da Fundação Tecnológica do Acre, em Rio Branco, do Ibama, em Brasília, e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em São Paulo. Depois de resgatar essas informações sobre espécies menos conhecidas no mercado, mas abundantes na floresta amazônica, como as várias espécies das famílias Lecythidaceae, Sapotaceae, Burseraceae e Leguminosae, o passo seguinte é introduzi-las no mercado, o que seria mais fácil no futuro porque o Brasil seria o principal fornecedor.

Essa visão oferece a possibilidade de gerar riqueza suficiente para pagar salários justos e gerar dividendos nas bolsas de valores, bem como garantir o ciclo hidrológico e, conseqüentemente, a chuva no Sudeste do Brasil. No entanto, essa visão somente pode ser alcançada se todos os ministérios do governo federal, todos os estados da Amazônia e todos os estados do Sudeste trabalharem juntos porque a floresta já está bastante fragmentada (2). A seguir, listamos algumas das mudanças nas políticas públicas que acreditamos necessárias em nível federal, as quais, logicamente, necessitam ter reflexo no âmbito estadual.

Moratória ao desmatamento O MMA expandirá a moratória com o apoio da Presidência da República, do Ministério de Justiça (MJ, Polícia Federal), do Ministério da Fazenda (MF, Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal), e do Ministério de Defesa (MD, Serviço de Proteção da Amazônia – Sipam). Somente a madeira certificada estará isenta da moratória, o que funcionará como estímulo para que as empresas do setor busquem a certificação. Esta ação é essencial para permitir que outras ações tenham o tempo necessário para serem viabilizadas.
Zoneamento econômico-ecológico da Amazônia Legal Os Ministérios de Integração Regional (MIR), Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e MMA combinarão para convencer os estados a expandir a área destinada a floresta em todas as áreas originalmente florestadas. De preferência, todas essas áreas deverão ser garantidas, pois o alvo é 250 milhões de hectares. Adicionalmente, ecossistemas especialmente críticos para a conservação da biodiversidade amazônica serão identificados para serem transformados em unidades de conservação. O objetivo é criar um mosaico com pelo menos 35% em unidades de conservação (existem 32% em áreas protegidas hoje (14), algumas das quais são florestas nacionais), 50% em florestas manejadas privadas, e o resto em agricultura e pecuária intensiva. Esse mosaico deverá manter 80-85% da floresta, superando o mínimo de 70% necessário para manter o ciclo hidrológico (15).
Regularização fundiária O MJ assumirá a supervisão minuciosa dos cartórios da Amazônia Legal para evitar grilagem de terras públicas e proteção aos direitos de propriedade na região, tanto para particulares, como para as florestas de produção, as unidades de conservação, as terras indígenas e as outras terras públicas. Titulação regular será essencial para garantir empréstimos bancários e de agências de fomento, e certificação. Todos os ministérios precisam apoiar as garantias de propriedade após a regularização, pois florestas precisam ser consideradas terras produtivas e não podem ser invadidas como aconteceu no Rio Grande de Sul em fevereiro de 2006.
Investimentos na indústria florestal Os Ministérios de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC, Suframa), MIR (Sudam), MF (BNDES, BASA) direcionarão seus investimentos na Amazônia para a atividade florestal, eliminando investimentos no agronegócio (que poderá captar financiamento na rede bancária privada); deverão manter os investimentos na pesca e aqüicultura (fonte de proteína para a maioria da população amazônida). Os investimentos se concentrarão na atualização tecnológica de empresas existentes, na viabilização de novos empreendimentos com tecnologias avançadas (especialmente a abertura de filiais de empresas do setor florestal com tecnologias modernas e fábricas atualmente localizadas fora da Amazônia), na criação de arranjos produtivos locais (como o pólo moveleiro que a Suframa está criando no Amazonas), e no adensamento da cadeia produtiva florestal em geral.
Tecnologias de ponta A incorporação de tecnologias de ponta na indústria florestal é essencial para o sucesso dessa visão, pois os europeus, japoneses e norte-americanos pagarão bem para produtos bem feitos com madeira nobre, e até os chineses pagarão bem para produtos bem feitos com madeira nobre ou comum. Um exemplo a ser seguido é da empresa Ikea, a maior varejista do setor florestal nos países desenvolvidos. A Ikea comercializa móveis e outros produtos feitos de madeira certificada, com cada móvel numa caixa pequena preparado para ser montado em casa. Produzir móveis montáveis como esses requer alta tecnologia e qualificação da mão-de-obra – e logicamente a mão-de-obra precisa ser bem paga. Tecnologias de ponta também reduzirão o desperdício de madeira, aumentando a eficiência das fábricas, reduzindo a geração de dejetos, e melhorando a razão custo/benefício da operação. Tecnologias de ponta incluem equipamentos, técnicas e desenho industrial e comercial. A Fundação Centro de Análises, Pesquisa e Inovação Tecnológica (Fucapi, Suframa, MDIC) em Manaus oferece orientação e capacitação na identificação e desenvolvimento dessas tecnologias.
Investimentos em produção florestal Seguir rigorosamente o que consta na legislação florestal é o primeiro passo em direção a sustentabilidade do manejo florestal. Os sistemas clássicos de silvicultura tropical (malaio uniforme – desenvolvido em Malásia na época colonial -, bosque abrigado e seletivo), utilizados em manejo de florestas tropicais do mundo todo, não produziram os resultados esperados(16). Na Amazônia, o sistema mais usado é o seletivo. Propomos um modelo misto, utilizando o sistema seletivo com faixas de enriquecimento com espécies valiosas e conhecidas do ponto de vista silvicultural, p.ex., cedrorana e castanha do Brasil. Dessa forma, será possível aumentar o volume comercial por unidade de área no primeiro ciclo de corte. Do ponto de vista florestal e econômico, os ciclos subseqüentes serão mais seguros por conta da disponibilidade de mais espécies comerciais introduzidas no primeiro ciclo.
Certificação Existem diversos tipos de certificação que poderiam ser úteis nessa perspectiva, especialmente a certificação de produção sustentável e a de qualidade (ISO). Para que essa visão gere benefícios na Amazônia, componentes sociais e laborais precisam ser incluídos como partes fundamentais dos processos de certificação, para que o Brasil e a Amazônia possam desenvolver-se no sentido mais completo da palavra. Uma outra vantagem da certificação é que ela exige fiscalização contínua e independente, o que, teoricamente, reduz as oportunidades para o tipo de corrupção que tem encharcado os projetos de manejo florestal na Amazônia.
Pesquisa e desenvolvimento Muitas das tecnologias e práticas necessárias para implementar essa visão já existem, mas outras precisarão ser geradas nas instituições de ensino e pesquisa na Amazônia e no Brasil. Os ministérios de Ciência e Tecnologia (MCT), MAPA e de Educação (MEC) possuem mecanismos para incentivar P&D na Amazônia. As Embrapas da Amazônia, o Inpa e as universidades federais e estaduais incrementarão suas pesquisas florestais para recuperar áreas degradadas por meio de projetos de silvicultura, bem como incrementarão suas pesquisas em enriquecimento de florestas em pé. Novas tecnologias de processamento e novos desenhos de produtos e processos serão de fundamental importância para garantir qualidade e atrair compradores nos países desenvolvidos.
Educação A educação sobre a Amazônia é deficiente no país e na própria região, particularmente em assuntos que ensinam a história, as tradições, os estilos de vida, os alimentos dos amazônidas, quase ao ponto de fazer crer que esses brasileiros não existem. A educação ambiental é igualmente pobre. Se a Amazônia espera se desenvolver com base na floresta, como na visão que aqui se apresenta, o MEC e as secretarias estaduais de Educação precisam revisar as grades curriculares de primeiro grau à universidade para refletir a nova base da economia regional – atualmente a agricultura convencional é considerada a base da economia brasileira e permeia as grades curriculares.

A visão apresentada é factível e contribuirá para o desenvolvimento da Amazônia com a floresta em pé, embora gradualmente a floresta deva ser transformada em termos de sua densidade econômica, mas mantendo a maior parte de sua biodiversidade. É a única proposta que tem as escalas geográfica e econômica necessárias para enfrentar o agronegócio, hoje em franca expansão. Deixará espaço abundante para as outras idéias sobre o uso da biodiversidade e das florestas, como a bioprospecção, os projetos de manejo comunitário e a estocagem de carbono para atender os compromissos brasileiros frente ao Protocolo de Kyoto. A visão contribuirá para garantir o ciclo hidrológico que abastece a região agrícola do Sudeste do Brasil, bem como os principais centros urbanos do país. A principal questão é a vontade política em fazer as mudanças necessárias de forma completa e rápida. Sabemos que essa vontade não virá de um só ministério – terá de vir da próxima geração de Getúlios e Juscelinos, apoiada em todos as agências dos governos federal e estaduais.

Charles R. Clement é pesquisador titular da Coordenação de Pesquisas em Ciências Agronômicas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Manaus, Amazonas.

Niro Higuchi é pesquisador titular da Coordenação de Pesquisas em Silvicultura Tropical do Inpa, Manaus, Amazonas.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. J. Diamond, Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. São Paulo: Editora Record. 2006.
2. W.F. Laurance et al., Science 291, 438. 2001.
3. P.M. Fearnside, Ciência Hoje 34, 63. 2004.
4. J.A. Guimarães Júnior, ComCiência, 2004: http://www.ifi.unicamp.br/~knobel/radar/newspro/fullnews.cgi?newsid1084158000,16737,
5. ITTO. Annual Review and Assessment of the World Tropical Timber Situation. http://www.itto.or.jp/
6. "A floresta pagou a conta do PT". Veja, 01/03/2006.
7. http://www.rainforests.mongabay.com/
8. A. Grainger, Tropform: A model of future tropical timber hardwood supplies. In Symposium in Forest Sector and Trade Models. University of Washington, Seattle. 1987.
9. Global Forest Resources Assessment (FRA 2005), Food and Agriculture Organization, http://www.fao.org/documents/show_cdr.asp?url_file=/docrep/008/a0400e/a0400e00.htm
10. IBGE. Anuário Estatístico. http://www.ibge.gov.br/
11. D.C. Nepstad et al., Nature 398, 505. 1999.
12. M. Lentini et al., O Estado da Amazônia, vol. 2, p.1. 2005.
13. R. Deusdará Filho, "Diagnóstico e avaliação do setor florestal brasileiro – Região Norte". Relatório preliminar (Sumário Executivo). Brasília: Ibama. 1996.
14. B.S. Soares-Filho et al., Nature 440, 520. 2006.
15. M.A.F. Silva Dias et al., Journal of Geophysical Research 107, 8072. 2002.
16. N. Higuchi et al., Revista Silvicultura 83, 32. 2000.