FORMAÇÃO E FIXAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS NA AMAZÔNIA
AÇÕES ESSENCIAIS PARA A AMAZÔNIA
Adalberto Luis Val (INPA)
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006
DA HISTÓRIA DISTAL AOS NOSSOS DIAS A necessidade de recursos humanos qualificados para o desenvolvimento da Amazônia se faz sentir desde os tempos coloniais. Ainda no reinado português de D. José I (1750-1777), Marques de Pombal deixava clara a importância estratégica de atrair capitais para o desenvolvimento de atividades econômicas no extenso território que o Tratado de Tordesilhas havia consagrado à Espanha, mas que Portugal aos poucos e pacificamente foi incorporando aos seus domínios. Sabiam todos os governantes da época que não bastava demarcar os novos limites consagrados por meio do novo Tratado de Madri (13 de janeiro de 1750) que reconhecia, então, a soberania lusitana nesse imenso e cobiçado mundo anfíbio, a Amazônia: era preciso vencer distâncias e se fazer presente para melhor aproveitar as riquezas da região. É preciso ter em conta que os países europeus eram ávidos por produtos tropicais, aliás, como ainda o são. Hoje, mais do que os produtos, ao mundo interessam informações acerca da complexa relação que permite a existência da própria Amazônia, nos seus mais diversos matizes.
Contudo, a avidez européia pelos produtos da região tropical não foi compensada por ações que possibilitassem o seu desenvolvimento. E assim tem sido. Com a subordinação das duas principais capitanias, Grão-Pará e São José do Rio Negro, ao Império do Brasil em 1823, a destinação das riquezas do Norte passou a ser o Sul do Brasil: pirarucu seco, salsaparrilha, tabaco, café, cacau, castanha, manteiga de tartaruga, entre outras. No período de 1844 a 1889, a contribuição do Norte para a receita imperial era de 35%, mas as despesas brutas eram de 16% no Norte e 68,8% no Sul, sendo que 15% das receitas eram repassadas a Londres a título de pagamento da dívida externa (1). No período seguinte, a exportação de borracha cresceu de forma estupenda. Por exemplo, entre os anos de 1890 e 1895, as receitas orçamentárias do Amazonas apresentaram crescimento maior que 350% o que possibilitou, à época, arrojados projetos urbanísticos (2). Em 10 de outubro de 1940, o presidente Vargas ressaltava em seu Discurso do Rio Amazonas: "Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o desejo patriótico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento". Mais uma vez, os investimentos não contemplaram fundamentos para o desenvolvimento científico e tecnológico. A região continuou contribuindo mais como um almoxarifado do que como uma oportunidade de desenvolvimento calçado no conhecimento da sua gente, da sua flora e da sua fauna.
A constituição de 1946, em seu artigo 199, define que "Na execução do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a União aplicará, durante pelo menos vinte anos consecutivos, quantia não inferior a três por cento de sua renda tributária". A execução desse plano esteve a cargo da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia) e não foi capaz de romper com o abandono pelo qual a região passava e nem mesmo propor soluções para superar as dificuldades impostas pela falta de opção econômica e de comércio nacional e internacional para nossos produtos. A SPVEA, sem pessoal qualificado e sem recursos suficientes, se transformou em mais um órgão burocratizado e inoperante (3). Saliente-se que a quantia constitucional "não inferior a três por cento" jamais foi empregada na reativação da economia regional, finalidade precípua da SPVEA. Com outra finalidade, nessa mesma época, é criado o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), uma resposta do governo brasileiro de Getúlio Vargas à tentativa de se instalar em Manaus um instituto internacional de pesquisa, denominado Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, originada na Unesco.
O Decreto 31.672 de 29 de outubro de 1952 criou o Inpa e sinalizou a preocupação do estado brasileiro com o homem, a ciência e a segurança nacional. Esse decreto definiu como finalidade do Inpa "o estudo científico do meio físico e das condições de vida da região, tendo em vista o bem estar humano e os reclamos da cultura, da economia e da segurança nacional". Esse texto claramente ressalta a importância da informação para a segurança nacional, isto é, para a soberania nacional na perspectiva mais moderna. Contudo, a região ainda vivia imersa no subdesenvolvimento. Em 1960, a SPVEA foi remodelada e reinaugurada com o nome de Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e, praticamente em conjunto, nasceram projetos desenvolvimentistas como a construção de rodovias (Transamazônica, Belém-Brasília, Brasília-Acre e Perimetral Norte) e usinas hidrelétricas (Tucuruí, Samuel e Balbina), bem como programas voltados para o desenvolvimento da pesquisa (Programa do Trópico Úmido e Pólo Noroeste). A cidade de Humboldt, ao lado da cachoeira de Dardanelos, no município de Aripuanã, noroeste do estado do Mato Grosso, também foi uma iniciativa dessa época. A idéia era ver a floresta transformada no "Eldorado" sustentável. Como faltava gente, foram firmados convênios com universidades e institutos de outras regiões do país que idealizaram, a partir de suas bases, sem conhecer a realidade, uma cidade modelar amazônica auto-sustentável. Após consumir uma significativa quantidade de recursos, a utopia acabou engolida pela realidade e o projeto que tinha suporte financeiro do CNPq e da Sudam foi repassado para o governo do estado do Mato Grosso. Várias rodovias que nasceram nessa época tiveram o mesmo destino de Humboldt.
Ainda nessa década de 1960, dois projetos foram importantes: a criação da Universidade Federal do Amazonas que, a rigor, nasceu bem antes, e a criação da Suframa (Zona Franca de Manaus), com a finalidade de formar recursos humanos e de dar uma opção econômica para a banda oeste da Amazônia legal. Contudo, enquanto os recursos foram generosos para a Zona Franca, foram sempre acanhados para as universidades e institutos de pesquisa da região.
A Declaração da Amazônia, de 11 de dezembro de 1966, feita em conjunto pelo governo federal, pelos governos dos estados amazônicos, pelas confederações nacionais da indústria e da agricultura, evidencia claramente o desejo de todos na "mobilização de todas as forças vivas da nação visando atrair para a Amazônia empreendimentos de qualquer natureza, indispensáveis à sua valorização". Além disso, nessa declaração é manifesto o desejo de que "a Amazônia contribua, através de sua perfeita e adequada incorporação à sociedade brasileira sob sua soberania inalienável, para a solução dos grandes problemas da humanidade" (4). Contudo, os recursos para formar e fixar pessoal qualificado para a consecução dos múltiplos desejos explicitados no âmbito dessa infinidade de iniciativas foram sempre insuficientes.
Como podemos depreender a partir desses diferentes momentos, a formação e a fixação de recursos humanos na Amazônia sempre fez parte da pauta de intenções para com a região, mas nunca ocorreu de fato. Se no passado, pessoal capacitado era necessário em número reduzido, hoje a sociedade do conhecimento está em plena atividade e envolve uma forte interação entre novas tecnologias e capital humano, ambos só possíveis a partir de um elevado grau de educação (5). A ampliação das oportunidades de renda e emprego associada a um uso adequado do meio ambiente, à melhoria da produtividade de empresas, ao uso de novas tecnologias para o aproveitamento dos recursos naturais da região e à diminuição das desigualdades sociais, entre outros, dependem em larga escala de educação de alto nível. Na Amazônia, além dos desafios nacionais, há aqueles decorrentes das condições singulares do ambiente amazônico e da situação imposta à região ao longo dos tempos.
DESAFIOS AMPLIADOS O sistema educacional na Amazônia, em particular a educação superior, além da reestruturação e consolidação requeridas pelo sistema educacional brasileiro como um todo, precisa expandir-se de forma acentuada. Somada a um investimento maciço nas universidades existentes para que suas curvas de crescimento se descolem das previsões talhadas a partir de equações que têm como base os seus índices históricos, a expansão do sistema deverá ser realizada por meio da criação de novas universidades federais e estaduais na região. É preciso que a mesma ação política que tem resultado na criação de várias novas universidades no país se volte para a Amazônia, não como benesse, mas como resultado da convicção de que é preciso dotar a Amazônia de condições infra-estruturais para que ela possa integrar-se à sociedade do conhecimento. Há na Amazônia dez universidades federais (duas no estado do Pará e uma em cada um dos outros estados amazônicos), número que contrasta fortemente com o de outros estados: em Minas Gerais, por exemplo, temos onze universidades federais – UFV, Unifal, Unifei, UFJF, Ufla, UFMG, Ufop, UFSJ, UFU, UFTM, UFVJM (6).
Mais desafiador ainda, entretanto, é ampliar o número de doutores nas instituições de ensino e pesquisa da Amazônia. Recente levantamento, por meio dos grupos de pesquisa e corpo docente e técnico das IES da Amazônia, indica uma contagem de pouco mais de 1,3 mil doutores, fixados na região. Desses, apenas 931 estavam envolvidos com atividades docentes em nível de pós-graduação no final de 2004. Esse número contrasta fortemente com o perfil das outras quatro regiões do Brasil que, conjuntamente, somam 33.936 docentes atuando na pós-graduação (7). Nesse mesmo portal da Capes, consta que no final do ano de 2004 havia na região Norte apenas 65 programas de pós-graduação, 17 em nível de doutorado, ou seja, apenas 3,4% dos 1.898 programas existentes no país.
Contudo, há uma "luz no fim do túnel": novos programas de pós-graduação vêm sendo instalados na Amazônia. A aprovação do programa de mestrado em desenvolvimento regional da Universidade Federal do Amapá, com o apoio do programa Acelera Amazônia, apaga do nosso mapa uma última exceção no que se refere à distribuição da pós-graduação – a partir da Portaria 679 de 15/03/2006 do CNE, todos os estados brasileiros passam a ter pelo menos um programa voltado à formação pós-graduada (8). Porém, estamos muito longe da base ideal para a formação pós-graduada na Amazônia. Em recente seminário na Universidade do Estado do Amazonas, o professor Luiz Antonio Barreto de Castro demonstrou claramente que o Ministério da Ciência e Tecnologia tem conhecimento do enorme fosso que separa a Amazônia das outras regiões do país – há na região cerca de 350 grupos de pesquisas que somados aos que existem no Nordeste brasileiro perfazem apenas 18% do total existente no país. Esses números, segundo Castro, estão de acordo com o PIB dessa parte do país (9). Enfatize-se que em praticamente todas as análises, mundo afora, o PIB está fortemente correlacionado com o número de doutores, variável independente, atuando na região considerada; isto é, a riqueza e a qualidade de vida estão na razão direta do número de pessoas qualificadas que, a cada momento, ajudam a pensar e conceber estratégias sólidas para o desenvolvimento sustentado.
É evidente que, com essa base instalada, não há como acelerar o processo de capacitação de pessoal em nível de pós-graduação na e para a Amazônia. É preciso mais do que o discurso que vem ocorrendo ao longo dos tempos. São necessárias políticas para além do aqui e agora. São necessárias políticas de Estado, duradouras, que tragam no seu seio a preocupação com a soberania do país sobre a região e da região para com ela mesma. Ressalte-se que a concepção dessas políticas deve considerar as feições próprias da região – não há como concebê-las de fora para dentro, como a subordinar a periferia ao centro. Na Amazônia vive uma população de 20 milhões de pessoas, metade delas sem acesso ou com acesso precário à energia elétrica. Essa população inclui cerca de 180 povos indígenas, algumas centenas de quilombolas e um sem número de comunidades de ribeirinhos que atuam em diversos setores da economia regional. Além disso, ainda que alguns setores da economia tenham atingido um bom grau de desenvolvimento, este está centrado em Manaus e Belém, o que limita ações mais amplas e leva a um círculo vicioso que acentua ainda mais os desequilíbrios internos: é preciso investimentos maciços também nos demais estados para que possam pensar seus próprios caminhos.
Como o exercício da pesquisa requer interação entre os pares, as distâncias que separam as diferentes instituições instaladas na região e estas de suas parceiras nas demais regiões do país representam um desafio adicional. O custo dos deslocamentos internos torna o exercício pleno da interação técnico-científica proibitiva a tal ponto de tornar vulnerável a já reduzida comunidade científica da Amazônia face à demanda lícita da sociedade brasileira, e em particular aquela da sociedade local, e face às pressões internacionais de todas as ordens. A título de exemplo, contaram-se mais de uma centena de expedições científicas estrangeiras na Amazônia na década de 1990 a 1999 (10). Contudo, a falta de pessoal qualificado afigura-se mais e mais preocupante quando percebemos que não estamos conseguindo sequer nos apropriarmos das informações que vêm sendo geradas acerca da Amazônia em outros países que, enfatize-se, não é desprezível. Uma rápida consulta ao Portal de Periódicos da Capes revela que cerca de 2/3 dos trabalhos publicados, em todas as áreas do conhecimento, que envolviam assuntos relacionados à Amazônia, não tinham autores brasileiros (11).
UMA CONVERGÊNCIA DESEJÁVEL Após décadas buscando um novo momento para a Amazônia, presencia-se hoje uma convergência política com vistas a essa finalidade. As principais agências federais alinham-se com a demanda social por uma Amazônia capaz de se pensar. Os representantes da sociedade da região procuram articular o apoio nacional necessário para a concepção de uma agenda para a Amazônia. Os governos locais, com destaque para o estado do Amazonas, instalam e dotam de recursos suas fundações estaduais de amparo à pesquisa. A reforma universitária proposta impõe a necessidade das IES, públicas e privadas, incluírem pessoal graduado em nível de doutorado em seus quadros, bem como oferecer cursos de pós-graduação stricto sensu. A sociedade do conhecimento requer educação e a transforma num produto de alto valor não só social, mas econômico, como mencionado acima. Além disso, no âmbito das instituições que produzem informações, mais e mais está claro que o apoio à pesquisa está relacionado à ampliação da capacidade de formação de pessoal pós-graduado (12).
Considerando que não há espaço para imposições acerca dos rumos que a Amazônia deve tomar e que esses rumos precisam ser concebidos pela própria região, é preciso rapidamente dotá-la de uma capacidade de reflexão ampliada. A ampliação dessa capacidade passa efetivamente pela fixação de recursos humanos qualificados. Para isso, não há perspectivas evidentes no curto prazo. Por isso, precisamos de pronto trabalhar com o que temos e, nesse aspecto, há um amplo contingente de professores e técnicos já contratados e fixados nas principais universidades federais e institutos de pesquisas da região: em média por volta de 20% dos quadros docentes das dez universidades federais da Amazônia têm doutorado; ou seja, potencialmente quatro em cada cinco docentes dessas instituições estariam aptos a receber treinamento em nível doutoral. A mesma perspectiva há para as instituições de pesquisas da região. É preciso que as novas contratações busquem doutores para grupos de pesquisa. Aqui cabe destacar a recente ação adotada pela Capes: o programa Acelera. Esse programa busca apoiar a ampliação dos grupos de pesquisas na região e, por consegüinte, a capacidade de formação de pessoal em nível de pós-graduação e a concepção de um amplo programa para a mobilidade entre os cientistas das diferentes regiões do país. Enfatize-se que tal ação foi concebida a partir de uma ampla discussão com as IES, fundações e institutos da região, o que está permitindo uma ação coordenada conjunta.
O sucesso de programas de fixação estará, contudo, na razão direta do envolvimento das várias instâncias da sociedade para a abertura de concursos públicos para a contratação definitiva de pessoal. Bolsas de estudo para os diversos níveis se constituem num instrumento de vital importância para uma ação imediata, mas não conduzem, em longo prazo, na consolidação de grupos permanentes de pesquisa na região. Há, mesmo neste quesito, uma luz no fim do túnel. A convergência de esforços resultou, recentemente, no envolvimento mais efetivo da SBPC na articulação de uma agenda para a Amazônia que prevê, entre outros, esforços efetivos para a fixação de pessoal qualificado (13, 14). Sabemos todos, que o fundamento para o exercício da pesquisa científica recai, sem dúvida, numa duradoura capacidade de reflexão.
UMA ÚLTIMA MENSAGEM Nós temos hoje a opção de continuar tendo uma Amazônia verde, que ao longo do tempo se vem esmaecendo por falta de oportunidades para sua gente, ou ajudar a construir um momento em que as múltiplas cores escondidas no verde se desabrochem e permitam uma desconcentração econômica de fato, com eixos articulados de desenvolvimento para a região. Sem dúvida, a ciência, a tecnologia e a inovação estão na base deste momento e a formação e a fixação de pessoal na região são as condições para o seu pleno exercício.
Adalberto Luis Val é diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor da Universidade do Estado do Amazonas – UEA
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Villela, A. apud Mello, E.C. "Raízes da desigualdade". Folha de S. Paulo, 3 de abril de 2005, Caderno Mais, p 3. 2005.
2. Garcia, E. Zona Franca de Manaus: história, conquistas e desafios. Norma Editora. Suframa. Manaus, AM. 2004.
3. Fonseca, O.J.M. & Val, A.L. (s/d) Recursos para pesquisa e desenvolvimento. Inpa.
4. Declaração da Amazônia de 11 de dezembro de 1966.
5. Guedes, P. Revista Época de 20 de março de 2006. p. 30
6. Portal do MEC, 07 de Abril de 2006
7. Portal da Capes, 07 de Abril de 2006
8 .Val & Guimarães "Novo momento para a pesquisa e pós-graduação na Amazônia". Jornal da Ciência, 561. 2006.
9. Castro, L.A.B. "Os avanços da biologia diante dos grandes desafios do novo milênio". Seminário apresentado na Universidade do Estado do Amazonas em 31 de março de 2006.
10. Fujiyoshi. Ciência e Cultura 56 (1): 9-11. 2004.
11. Val, A.L. Amazônia. III Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Brasília, DF.2005.
12. CNPq Relatório técnico anual. 2005.
13. Abreu Sá, T.D. "Mudar a Amazônia é mudar o Brasil". Jornal da Ciência, 570. 2006.
14. Anônimo Carta de Manaus: Itens e essenciais. Jornal da Ciência. 2006
Adalberto Luis Val (INPA)
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006
DA HISTÓRIA DISTAL AOS NOSSOS DIAS A necessidade de recursos humanos qualificados para o desenvolvimento da Amazônia se faz sentir desde os tempos coloniais. Ainda no reinado português de D. José I (1750-1777), Marques de Pombal deixava clara a importância estratégica de atrair capitais para o desenvolvimento de atividades econômicas no extenso território que o Tratado de Tordesilhas havia consagrado à Espanha, mas que Portugal aos poucos e pacificamente foi incorporando aos seus domínios. Sabiam todos os governantes da época que não bastava demarcar os novos limites consagrados por meio do novo Tratado de Madri (13 de janeiro de 1750) que reconhecia, então, a soberania lusitana nesse imenso e cobiçado mundo anfíbio, a Amazônia: era preciso vencer distâncias e se fazer presente para melhor aproveitar as riquezas da região. É preciso ter em conta que os países europeus eram ávidos por produtos tropicais, aliás, como ainda o são. Hoje, mais do que os produtos, ao mundo interessam informações acerca da complexa relação que permite a existência da própria Amazônia, nos seus mais diversos matizes.
Contudo, a avidez européia pelos produtos da região tropical não foi compensada por ações que possibilitassem o seu desenvolvimento. E assim tem sido. Com a subordinação das duas principais capitanias, Grão-Pará e São José do Rio Negro, ao Império do Brasil em 1823, a destinação das riquezas do Norte passou a ser o Sul do Brasil: pirarucu seco, salsaparrilha, tabaco, café, cacau, castanha, manteiga de tartaruga, entre outras. No período de 1844 a 1889, a contribuição do Norte para a receita imperial era de 35%, mas as despesas brutas eram de 16% no Norte e 68,8% no Sul, sendo que 15% das receitas eram repassadas a Londres a título de pagamento da dívida externa (1). No período seguinte, a exportação de borracha cresceu de forma estupenda. Por exemplo, entre os anos de 1890 e 1895, as receitas orçamentárias do Amazonas apresentaram crescimento maior que 350% o que possibilitou, à época, arrojados projetos urbanísticos (2). Em 10 de outubro de 1940, o presidente Vargas ressaltava em seu Discurso do Rio Amazonas: "Todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o desejo patriótico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento". Mais uma vez, os investimentos não contemplaram fundamentos para o desenvolvimento científico e tecnológico. A região continuou contribuindo mais como um almoxarifado do que como uma oportunidade de desenvolvimento calçado no conhecimento da sua gente, da sua flora e da sua fauna.
A constituição de 1946, em seu artigo 199, define que "Na execução do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a União aplicará, durante pelo menos vinte anos consecutivos, quantia não inferior a três por cento de sua renda tributária". A execução desse plano esteve a cargo da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia) e não foi capaz de romper com o abandono pelo qual a região passava e nem mesmo propor soluções para superar as dificuldades impostas pela falta de opção econômica e de comércio nacional e internacional para nossos produtos. A SPVEA, sem pessoal qualificado e sem recursos suficientes, se transformou em mais um órgão burocratizado e inoperante (3). Saliente-se que a quantia constitucional "não inferior a três por cento" jamais foi empregada na reativação da economia regional, finalidade precípua da SPVEA. Com outra finalidade, nessa mesma época, é criado o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), uma resposta do governo brasileiro de Getúlio Vargas à tentativa de se instalar em Manaus um instituto internacional de pesquisa, denominado Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, originada na Unesco.
O Decreto 31.672 de 29 de outubro de 1952 criou o Inpa e sinalizou a preocupação do estado brasileiro com o homem, a ciência e a segurança nacional. Esse decreto definiu como finalidade do Inpa "o estudo científico do meio físico e das condições de vida da região, tendo em vista o bem estar humano e os reclamos da cultura, da economia e da segurança nacional". Esse texto claramente ressalta a importância da informação para a segurança nacional, isto é, para a soberania nacional na perspectiva mais moderna. Contudo, a região ainda vivia imersa no subdesenvolvimento. Em 1960, a SPVEA foi remodelada e reinaugurada com o nome de Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e, praticamente em conjunto, nasceram projetos desenvolvimentistas como a construção de rodovias (Transamazônica, Belém-Brasília, Brasília-Acre e Perimetral Norte) e usinas hidrelétricas (Tucuruí, Samuel e Balbina), bem como programas voltados para o desenvolvimento da pesquisa (Programa do Trópico Úmido e Pólo Noroeste). A cidade de Humboldt, ao lado da cachoeira de Dardanelos, no município de Aripuanã, noroeste do estado do Mato Grosso, também foi uma iniciativa dessa época. A idéia era ver a floresta transformada no "Eldorado" sustentável. Como faltava gente, foram firmados convênios com universidades e institutos de outras regiões do país que idealizaram, a partir de suas bases, sem conhecer a realidade, uma cidade modelar amazônica auto-sustentável. Após consumir uma significativa quantidade de recursos, a utopia acabou engolida pela realidade e o projeto que tinha suporte financeiro do CNPq e da Sudam foi repassado para o governo do estado do Mato Grosso. Várias rodovias que nasceram nessa época tiveram o mesmo destino de Humboldt.
Ainda nessa década de 1960, dois projetos foram importantes: a criação da Universidade Federal do Amazonas que, a rigor, nasceu bem antes, e a criação da Suframa (Zona Franca de Manaus), com a finalidade de formar recursos humanos e de dar uma opção econômica para a banda oeste da Amazônia legal. Contudo, enquanto os recursos foram generosos para a Zona Franca, foram sempre acanhados para as universidades e institutos de pesquisa da região.
A Declaração da Amazônia, de 11 de dezembro de 1966, feita em conjunto pelo governo federal, pelos governos dos estados amazônicos, pelas confederações nacionais da indústria e da agricultura, evidencia claramente o desejo de todos na "mobilização de todas as forças vivas da nação visando atrair para a Amazônia empreendimentos de qualquer natureza, indispensáveis à sua valorização". Além disso, nessa declaração é manifesto o desejo de que "a Amazônia contribua, através de sua perfeita e adequada incorporação à sociedade brasileira sob sua soberania inalienável, para a solução dos grandes problemas da humanidade" (4). Contudo, os recursos para formar e fixar pessoal qualificado para a consecução dos múltiplos desejos explicitados no âmbito dessa infinidade de iniciativas foram sempre insuficientes.
Como podemos depreender a partir desses diferentes momentos, a formação e a fixação de recursos humanos na Amazônia sempre fez parte da pauta de intenções para com a região, mas nunca ocorreu de fato. Se no passado, pessoal capacitado era necessário em número reduzido, hoje a sociedade do conhecimento está em plena atividade e envolve uma forte interação entre novas tecnologias e capital humano, ambos só possíveis a partir de um elevado grau de educação (5). A ampliação das oportunidades de renda e emprego associada a um uso adequado do meio ambiente, à melhoria da produtividade de empresas, ao uso de novas tecnologias para o aproveitamento dos recursos naturais da região e à diminuição das desigualdades sociais, entre outros, dependem em larga escala de educação de alto nível. Na Amazônia, além dos desafios nacionais, há aqueles decorrentes das condições singulares do ambiente amazônico e da situação imposta à região ao longo dos tempos.
DESAFIOS AMPLIADOS O sistema educacional na Amazônia, em particular a educação superior, além da reestruturação e consolidação requeridas pelo sistema educacional brasileiro como um todo, precisa expandir-se de forma acentuada. Somada a um investimento maciço nas universidades existentes para que suas curvas de crescimento se descolem das previsões talhadas a partir de equações que têm como base os seus índices históricos, a expansão do sistema deverá ser realizada por meio da criação de novas universidades federais e estaduais na região. É preciso que a mesma ação política que tem resultado na criação de várias novas universidades no país se volte para a Amazônia, não como benesse, mas como resultado da convicção de que é preciso dotar a Amazônia de condições infra-estruturais para que ela possa integrar-se à sociedade do conhecimento. Há na Amazônia dez universidades federais (duas no estado do Pará e uma em cada um dos outros estados amazônicos), número que contrasta fortemente com o de outros estados: em Minas Gerais, por exemplo, temos onze universidades federais – UFV, Unifal, Unifei, UFJF, Ufla, UFMG, Ufop, UFSJ, UFU, UFTM, UFVJM (6).
Mais desafiador ainda, entretanto, é ampliar o número de doutores nas instituições de ensino e pesquisa da Amazônia. Recente levantamento, por meio dos grupos de pesquisa e corpo docente e técnico das IES da Amazônia, indica uma contagem de pouco mais de 1,3 mil doutores, fixados na região. Desses, apenas 931 estavam envolvidos com atividades docentes em nível de pós-graduação no final de 2004. Esse número contrasta fortemente com o perfil das outras quatro regiões do Brasil que, conjuntamente, somam 33.936 docentes atuando na pós-graduação (7). Nesse mesmo portal da Capes, consta que no final do ano de 2004 havia na região Norte apenas 65 programas de pós-graduação, 17 em nível de doutorado, ou seja, apenas 3,4% dos 1.898 programas existentes no país.
Contudo, há uma "luz no fim do túnel": novos programas de pós-graduação vêm sendo instalados na Amazônia. A aprovação do programa de mestrado em desenvolvimento regional da Universidade Federal do Amapá, com o apoio do programa Acelera Amazônia, apaga do nosso mapa uma última exceção no que se refere à distribuição da pós-graduação – a partir da Portaria 679 de 15/03/2006 do CNE, todos os estados brasileiros passam a ter pelo menos um programa voltado à formação pós-graduada (8). Porém, estamos muito longe da base ideal para a formação pós-graduada na Amazônia. Em recente seminário na Universidade do Estado do Amazonas, o professor Luiz Antonio Barreto de Castro demonstrou claramente que o Ministério da Ciência e Tecnologia tem conhecimento do enorme fosso que separa a Amazônia das outras regiões do país – há na região cerca de 350 grupos de pesquisas que somados aos que existem no Nordeste brasileiro perfazem apenas 18% do total existente no país. Esses números, segundo Castro, estão de acordo com o PIB dessa parte do país (9). Enfatize-se que em praticamente todas as análises, mundo afora, o PIB está fortemente correlacionado com o número de doutores, variável independente, atuando na região considerada; isto é, a riqueza e a qualidade de vida estão na razão direta do número de pessoas qualificadas que, a cada momento, ajudam a pensar e conceber estratégias sólidas para o desenvolvimento sustentado.
É evidente que, com essa base instalada, não há como acelerar o processo de capacitação de pessoal em nível de pós-graduação na e para a Amazônia. É preciso mais do que o discurso que vem ocorrendo ao longo dos tempos. São necessárias políticas para além do aqui e agora. São necessárias políticas de Estado, duradouras, que tragam no seu seio a preocupação com a soberania do país sobre a região e da região para com ela mesma. Ressalte-se que a concepção dessas políticas deve considerar as feições próprias da região – não há como concebê-las de fora para dentro, como a subordinar a periferia ao centro. Na Amazônia vive uma população de 20 milhões de pessoas, metade delas sem acesso ou com acesso precário à energia elétrica. Essa população inclui cerca de 180 povos indígenas, algumas centenas de quilombolas e um sem número de comunidades de ribeirinhos que atuam em diversos setores da economia regional. Além disso, ainda que alguns setores da economia tenham atingido um bom grau de desenvolvimento, este está centrado em Manaus e Belém, o que limita ações mais amplas e leva a um círculo vicioso que acentua ainda mais os desequilíbrios internos: é preciso investimentos maciços também nos demais estados para que possam pensar seus próprios caminhos.
Como o exercício da pesquisa requer interação entre os pares, as distâncias que separam as diferentes instituições instaladas na região e estas de suas parceiras nas demais regiões do país representam um desafio adicional. O custo dos deslocamentos internos torna o exercício pleno da interação técnico-científica proibitiva a tal ponto de tornar vulnerável a já reduzida comunidade científica da Amazônia face à demanda lícita da sociedade brasileira, e em particular aquela da sociedade local, e face às pressões internacionais de todas as ordens. A título de exemplo, contaram-se mais de uma centena de expedições científicas estrangeiras na Amazônia na década de 1990 a 1999 (10). Contudo, a falta de pessoal qualificado afigura-se mais e mais preocupante quando percebemos que não estamos conseguindo sequer nos apropriarmos das informações que vêm sendo geradas acerca da Amazônia em outros países que, enfatize-se, não é desprezível. Uma rápida consulta ao Portal de Periódicos da Capes revela que cerca de 2/3 dos trabalhos publicados, em todas as áreas do conhecimento, que envolviam assuntos relacionados à Amazônia, não tinham autores brasileiros (11).
UMA CONVERGÊNCIA DESEJÁVEL Após décadas buscando um novo momento para a Amazônia, presencia-se hoje uma convergência política com vistas a essa finalidade. As principais agências federais alinham-se com a demanda social por uma Amazônia capaz de se pensar. Os representantes da sociedade da região procuram articular o apoio nacional necessário para a concepção de uma agenda para a Amazônia. Os governos locais, com destaque para o estado do Amazonas, instalam e dotam de recursos suas fundações estaduais de amparo à pesquisa. A reforma universitária proposta impõe a necessidade das IES, públicas e privadas, incluírem pessoal graduado em nível de doutorado em seus quadros, bem como oferecer cursos de pós-graduação stricto sensu. A sociedade do conhecimento requer educação e a transforma num produto de alto valor não só social, mas econômico, como mencionado acima. Além disso, no âmbito das instituições que produzem informações, mais e mais está claro que o apoio à pesquisa está relacionado à ampliação da capacidade de formação de pessoal pós-graduado (12).
Considerando que não há espaço para imposições acerca dos rumos que a Amazônia deve tomar e que esses rumos precisam ser concebidos pela própria região, é preciso rapidamente dotá-la de uma capacidade de reflexão ampliada. A ampliação dessa capacidade passa efetivamente pela fixação de recursos humanos qualificados. Para isso, não há perspectivas evidentes no curto prazo. Por isso, precisamos de pronto trabalhar com o que temos e, nesse aspecto, há um amplo contingente de professores e técnicos já contratados e fixados nas principais universidades federais e institutos de pesquisas da região: em média por volta de 20% dos quadros docentes das dez universidades federais da Amazônia têm doutorado; ou seja, potencialmente quatro em cada cinco docentes dessas instituições estariam aptos a receber treinamento em nível doutoral. A mesma perspectiva há para as instituições de pesquisas da região. É preciso que as novas contratações busquem doutores para grupos de pesquisa. Aqui cabe destacar a recente ação adotada pela Capes: o programa Acelera. Esse programa busca apoiar a ampliação dos grupos de pesquisas na região e, por consegüinte, a capacidade de formação de pessoal em nível de pós-graduação e a concepção de um amplo programa para a mobilidade entre os cientistas das diferentes regiões do país. Enfatize-se que tal ação foi concebida a partir de uma ampla discussão com as IES, fundações e institutos da região, o que está permitindo uma ação coordenada conjunta.
O sucesso de programas de fixação estará, contudo, na razão direta do envolvimento das várias instâncias da sociedade para a abertura de concursos públicos para a contratação definitiva de pessoal. Bolsas de estudo para os diversos níveis se constituem num instrumento de vital importância para uma ação imediata, mas não conduzem, em longo prazo, na consolidação de grupos permanentes de pesquisa na região. Há, mesmo neste quesito, uma luz no fim do túnel. A convergência de esforços resultou, recentemente, no envolvimento mais efetivo da SBPC na articulação de uma agenda para a Amazônia que prevê, entre outros, esforços efetivos para a fixação de pessoal qualificado (13, 14). Sabemos todos, que o fundamento para o exercício da pesquisa científica recai, sem dúvida, numa duradoura capacidade de reflexão.
UMA ÚLTIMA MENSAGEM Nós temos hoje a opção de continuar tendo uma Amazônia verde, que ao longo do tempo se vem esmaecendo por falta de oportunidades para sua gente, ou ajudar a construir um momento em que as múltiplas cores escondidas no verde se desabrochem e permitam uma desconcentração econômica de fato, com eixos articulados de desenvolvimento para a região. Sem dúvida, a ciência, a tecnologia e a inovação estão na base deste momento e a formação e a fixação de pessoal na região são as condições para o seu pleno exercício.
Adalberto Luis Val é diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor da Universidade do Estado do Amazonas – UEA
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Villela, A. apud Mello, E.C. "Raízes da desigualdade". Folha de S. Paulo, 3 de abril de 2005, Caderno Mais, p 3. 2005.
2. Garcia, E. Zona Franca de Manaus: história, conquistas e desafios. Norma Editora. Suframa. Manaus, AM. 2004.
3. Fonseca, O.J.M. & Val, A.L. (s/d) Recursos para pesquisa e desenvolvimento. Inpa.
4. Declaração da Amazônia de 11 de dezembro de 1966.
5. Guedes, P. Revista Época de 20 de março de 2006. p. 30
6. Portal do MEC, 07 de Abril de 2006
7. Portal da Capes, 07 de Abril de 2006
8 .Val & Guimarães "Novo momento para a pesquisa e pós-graduação na Amazônia". Jornal da Ciência, 561. 2006.
9. Castro, L.A.B. "Os avanços da biologia diante dos grandes desafios do novo milênio". Seminário apresentado na Universidade do Estado do Amazonas em 31 de março de 2006.
10. Fujiyoshi. Ciência e Cultura 56 (1): 9-11. 2004.
11. Val, A.L. Amazônia. III Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Brasília, DF.2005.
12. CNPq Relatório técnico anual. 2005.
13. Abreu Sá, T.D. "Mudar a Amazônia é mudar o Brasil". Jornal da Ciência, 570. 2006.
14. Anônimo Carta de Manaus: Itens e essenciais. Jornal da Ciência. 2006
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