Reconhecimento do conceito de populações tradicionais facilita acesso à terra
Aceitação da idéia de identidades coletivas aplicadas a comunidades tradicionais dá força a conceito de território, espaço essencial para grupos como indígenas, quilombolas ou seringueiros, mas o Estado precisa reelaborar políticas de regularização fundiária para atender novas demandas, dizem especialistas.
Verena Glass - Carta Maior, 22/03/2007
RECIFE – Megadiverso em todos os aspectos, o Brasil deu um importante passo em direção ao reconhecimento formal de sua multiculturalidade no final de fevereiro, ao instituir a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).
Depois da ratificação pelo governo, em 2004, da Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais (Convenção 169 da OIT, que garante tanto a autodeterminação destes povos como sua participação nas demais decisões referentes às questões que lhes dizem respeito), a PNPCT incluiu no conceito de populações tradicionais, antes restrito a indígenas e quilombolas, grupos como pantaneiros, caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros e ciganos, entre outros.
Segundo o antropólogo Alfredo Wagner, professor da Universidade Federal do Amazonas, a formalização deste reconhecimento, que desbanca a visão positivista de homogeneidade da população (a concepção de “povo brasileiro”), é fruto de uma multiplicação do processo de organização política nas entranhas do país protagonizado por aquelas populações.
“A idéia de Povo, noção de sociedade homogênea, vai sendo substituída pela idéia de povos, o que confronta a concepção de uma única identidade coletiva. Isto é fruto das lutas e articulações dos movimentos sociais. O fenômeno mais importante neste sentido é que as novas identidades se organizam em movimentos sociais”, reitera Wagner.
Para ele, além do reconhecimento de sua identidade, o cerne destes movimentos é a demanda não mais por terra, mas por territórios. “Estas novas organizações esvaziam a definição de ‘trabalhador rural’, ao qual corresponde a terra. As novas identidades coletivas reivindicam territórios, onde podem manter e desenvolver suas próprias organizações econômicas e culturais”.
A perspectiva da aceitação oficial do conceito de territorialidade no Brasil tem deixado setores conservadores, como o PFL e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), com os cabelos em pé. Desde 2004, o primeiro vem tentando derrubar o decreto que regulamenta a titulação de quilombos, e o segundo afirmou, em relatório recente, que "foi confirmado o conhecimento de que a questão indígena atinge uma gravidade capaz de pôr em risco a segurança nacional. Considerando a atual reivindicação de autonomia e a possibilidade de futura reivindicação de independência de nações indígenas, o quadro geral está cada vez mais preocupante”.
A preocupação real desses setores, avalia Wagner, é que, juntando as áreas de todos os grupos tradicionais, 25% do território nacional ficaria fora não apenas do mercado de terras – impedindo, conseqüentemente, a expansão do agronegócio -, mas limita também a exploração dos recursos minerais, hídricos e demais bens naturais. “Isso porque os territórios não são áreas de assentamento, mas sim espaços com forma de organização própria e direitos garantidos”, explica.
Já para o governo e seus programas de reforma agrária, assentamentos e regularização fundiária, se apresenta o desafio de adaptar as políticas públicas a essas novas realidades.Segundo o procurador geral do Ministério Público Federal do Pará, Felício Pontes, o modelo de produção agroextrativista adotado por grande parte destas populações exige uma outra forma de titulação das terras e de política de crédito, no sentido de incluir o conceito de coletividade.
“O conceito de módulo rural adotado pelo Incra para a reforma agrária não é aplicável na Amazônia. Para os coletores de castanha em Oriximiná, por exemplo, se fosse adotado este modelo, cada família teria em suas terras apenas uma ou duas castanheiras, o que seria insuficiente para a sua subsistência. Um migrante nordestino até vive com 10 hectares, desmatando e plantando na forma tradicional de sua região. Já o modelo agroextrativista pede a titulação coletiva das terras”, explica Pontes.
Segundo ele, mecanismos como as Reservas Extrativistas e os Projetos de Desenvolvimento Sustentável, criados pela irmã Dorothy Stang, são alternativas adaptadas à realidade amazonense, mas é preciso cunhar outras categorias jurídicas para regulamentá-las.Neste sentido, de acordo com Alfredo Wagner, o maior desafio do Judiciário é entender que, no contexto do direito territorial das populações tradicionais, não se aplicam mais os critérios de historialidade, a busca por resquícios pré-colombianos ou ancestrais para comprová-lo. “O que caracteriza o direito ao território não é o tempo, mas o modo de vida, a cultura das comunidades”, explica.
Conflitos fundiários Uma das regiões mais conflituosas do Brasil, a Amazônia é um caldeirão de desmandos judiciários quando o tema é ordenamento fundiário e punição a violações dos direitos humanos. Segundo o coordenado da CPT em Marabá (PA), José Batista, apesar do Norte contabilizar, em 2006, apenas 6,6% das ocupações de terra no país, a região foi palco de 16% dos despejos por ordem da Justiça, 31% das expulsões de trabalhadores de suas terras sem mandado judicial, e 66% dos assassinatos no campo.
Por outro lado, apesar dos esforços do Incra para reaver terras griladas, segundo o próprio procurador geral do órgão, Valdez Farias, em grande parte dos processos os pedidos de liminares de retomada da posse foram negados.Nesse cenário bastante desfavorável à luta pela terra, um aspecto curioso é que, segundo Felício Pontes, o Judiciário tem sido mais afeito a aceitar a regularização fundiária demandada por populações tradicionais do que por movimentos de luta pela terra, como o MST e as organizações sindicais.
“Do ponto de vista da Justiça, tem sido mais fácil entrar na cabeça dos juizes que o direito à terra de uma comunidade existe por serem ribeirinhos, desapropriar as terras de uma usina por ser área quilombola, do que se a reivindicação adotasse a termologia da reforma agrária”, explica o procurador.
Esta tendência, no entanto, não significa que o acesso à terra tenha sido facilitado de modo geral, nem que os conflitos tenham diminuído. Contra esta realidade, pondera Alfredo Wagner, a melhor arma dos movimentos sociais e comunitários é o inter-relacionamento e o investimento em organização, num movimento contrário ao isolacionismo e à “manutenção da pureza” dos grupos tradicionais. “Os quilombolas no Brasil estão se fortalecendo porque estão se relacionando”, exemplifica.
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