BIOPIRATARIA, CONHECIMENTO TRADICIONAL, PESQUISA CIENTÍFICA E JUSTIÇA: UMA QUESTÃO MAL RESOLVIDA
Evandro
Ferreira
Editor
do Blog Ambiente Acreano
Para
quem vive na Amazônia a palavra biopirataria é sinônimo de ‘roubo’, geralmente
por parte de um estrangeiro, de recursos genéticos ou de conhecimentos
tradicionais de comunidades locais com o fim de se obter vantagens financeiras.
E o melhor exemplo de biopirataria praticada na Amazônia foi o contrabando
pelos ingleses de sementes de seringueiras da Amazônia para cultivo em suas
colônias asiáticas. Sob o ponto de vista acadêmico, entretanto, a definição de
biopirataria é mais elaborada e envolve a retirada, sem anuência prévia para
repartição de benefícios, de plantas, animais ou conhecimentos tradicionais
detidos por comunidades nativas para se obter vantagens econômicas em outros
locais.
O
reconhecimento da biopirataria como algo condenável ocorreu na Convenção da
Diversidade Biológica (CDB), realizada em paralelo à Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em junho de
1992. A CDB entrou em vigor em dezembro de 1993 com a ratificação de 168 países
e desde então a soberania nacional sobre a biodiversidade contida no território
de cada país passou a ser reconhecida oficialmente. Antes dela, se considerava
que ocorreram apenas ‘intercâmbios’ praticados por governantes e indivíduos e
que a biodiversidade era patrimônio da humanidade. Com a ratificação da CDB, os
países signatários reconheceram o status
quo da distribuição de plantas agrícolas, ornamentais, ervas daninhas,
animais de criação, e até mesmo as pragas e doenças que acometem esses
organismos.
A
entrada em vigor da CDB praticamente remeteu a biopirataria ao ostracismo visto
que na atualidade a maioria das plantas e animais com potencial econômico já
foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil. Como em um passe de mágica,
a biopirataria deixou de ter importância no atual contexto econômico nacional e
global, ficando relegada a um ou outro caso de comunidades indígenas que vez
por outra apelam para a justiça reparar direitos sobre conhecimentos
tradicionais supostamente usurpados.
E
mesmo assim algumas decisões não tem sido favoráveis, como foi o caso da
recente sentença da justiça federal sobre a alegada biopirataria do
conhecimento tradicional que os índios Ashaninkas do vale do Juruá alegavam ter
sobre o uso da palmeira murmuru para a elaboração de produtos cosméticos.
Na
ação os indígenas tentaram obter compensações financeiras do empresário que
comprava os frutos da palmeira para extrair gordura vegetal, da empresa que
comprava e distribuía a gordura para indústrias no Brasil e no exterior, e de
uma conhecida indústria brasileira que usa a gordura do murmuru como matéria-prima
para elaborar diversos produtos cosméticos. A negativa da justiça em reconhecer
que ocorreu biopirataria no caso do murmuru se baseou no fato de publicações
nacionais e internacionais, datadas desde a década de 20, conterem descrições
das propriedades e composição do murmuru, com indicações de seu uso para a
elaboração de sabonetes e xampus.
Tecnicamente
a decisão da justiça foi correta, mas não se pode negar que, com certeza
absoluta, foram comunidades indígenas, brasileiras ou estrangeiras, que
descreveram aos autores das publicações citadas as propriedades e
possibilidades de uso do murmuru. Provavelmente elas também levaram os
pesquisadores para conhecer as plantas in loco, demonstraram as formas de uso e
doaram frutos e outras partes da palmeira para que os ‘brancos’ pudessem voltar
aos seus laboratórios e comprovassem o que os indígenas já conheciam há muitos
anos. O que queremos deixar claro é que sem a ajuda de um conhecedor dos
poderes e da localização geográfica das plantas nas florestas, a possibilidade
de um pesquisador descobrir princípios ativos de grande potencial dentre estas
plantas é quase nula.
A
publicação dos resultados dos trabalhos de laboratório, usada pela justiça para
denegar aos indígenas seu direito sobre o uso do murmuru para a elaboração de
produtos cosméticos, era inevitável, pois publicar faz parte da rotina e
obrigação desses brancos curiosos, conhecidos no mundo civilizado como
pesquisadores. Uma pena que as comunidades indígenas – alheias ao poder da escrita
– não puderam escrever, em períodos pré-colombianos, suas enciclopédias de
conhecimentos culturais e naturais sobre as florestas em que viviam.
A
formalização do conhecimento tradicional sobre as plantas do novo mundo é fato
antigo e remonta às primeiras expedições de naturalistas a partir de 1700.
Financiados pela nobreza e capitalistas europeus, os naturalistas não
percorreram ‘florestas impenetráveis e selvagens’ das Américas apenas em busca
da aventura e do desconhecido. Os interesses econômicos, científicos e
culturais foram decisivos para as viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira,
Langsdorff, Martius, Bates, Humboldt, Ruiz e Pavón e tantos outros. Estes
naturalistas e dezenas de pesquisadores que os seguiram posteriormente
‘descobriram’ e publicaram de forma sistemática as informações sobre usos de
plantas e animais detidos por comunidades nativas das regiões que visitaram. Os
livros que publicaram são a prova disso e para mostrar que não tinham inventado
o que escreveram, a maioria deles indica o nome das tribos indígenas e as
localidades onde viviam.
O
precedente aberto pela recente decisão da justiça federal no Acre é perigoso,
pois sugere que informações publicadas em livros e revistas são de mais valia
que o conhecimento oral, passado de geração a geração. Por esse princípio,
‘acima de qualquer outro argumento, vale o que está escrito’.
A
CDB confere direitos aos países e exorta os mesmos a garantir que o
conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual para que
as comunidades tradicionais, detentoras desses conhecimentos, possam participar
da repartição de benefícios que poderão ser eventualmente gerados.
Aparentemente, este incentivo deu início a uma nova corrida em busca de plantas
e animais cujas utilidades para a humanidade são de grande valia para o avanço
científico e econômico. Agora é possível fazer pesquisas nesse campo sem medo
de praticar a condenável ‘biopirataria’. Infelizmente as coisas não estão
caminhando nessa direção. Muito pelo contrário. As perspectivas não são das
melhores.
Em
primeiro lugar, para realizar o trabalho é preciso obter licenças e
autorizações e isso exige uma paciência infinita, é extremamente burocrático e,
em alguns casos, oneroso. Geralmente as aprovações nem sempre saem a tempo,
pois a linha temporal da burocracia nunca está alinhada com o calendário dos
indispensáveis trabalhos de campo. É importante diferenciar os pesquisadores
envolvidos nesse tipo de trabalho. Os botânicos e etnobotânicos fazem o
trabalho de campo, enquanto os químicos e os bioquímicos desenvolvem produtos
em laboratórios. Os que sofrem para obter as licenças são os primeiros,
responsáveis pelo estudo das plantas no campo e pela obtenção com os moradores
locais das informações sobre o potencial das plantas e animais.
Em
um segundo momento, os afortunados que conseguirem coletar os dados terão a
difícil missão de publicar os mesmos sem prejudicar os fornecedores das
informações – as comunidades ou pessoas detentoras dos conhecimentos
tradicionais – e impedir que aproveitadores façam uso indevido das mesmas. É um
dilema ético. Ao publicar as informações sobre o potencial medicinal de uma ou
várias plantas eles tornam a informação de domínio público. E nesta condição,
um terceiro pesquisador, sabendo do nome científico da planta, pode obtê-la em
uma reserva particular, no Brasil ou no exterior, e então patentear o processo
de isolamento do princípio ativo e eventualmente desenvolver um novo produto,
ganhando assim um lucro monetário.
Assim,
a culpa pela eventual falta de benefício para as comunidades que fornecerem
informações iniciais sobre o potencial de plantas e animais não poderá recair
sobre o pesquisador de campo. Publicar é uma exigência para a sua ascensão
profissional, pois só assim ele ganha o reconhecimento que espera pela sua
atuação. Se não publicar, não ganhará reconhecimento como cientista.
Como
resolver esse dilema? Será que estamos vivenciando o ocaso das pesquisas sobre
o conhecimento tradicional que as comunidades nativas detêm sobre plantas e
animais de utilidade para a humanidade?
Credito
da imagem: Dr. Richard Schultes, considerado o pai da Etnobotânica moderna
(Wikipedia)
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