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05 setembro 2020

MUDANÇAS CLIMÁTICAS FAVORECERÃO A FREQUÊNCIA E A INTENSIDADE DE SURTOS DE LEPTOSPIROSE EM RIO BRANCO*

Evandro Ferreira
Ambiente Acreano

 

A leptospirose, causada por uma bactéria do gênero Leptospira sp., é uma doença febril aguda que afeta mais frequentemente o fígado e os rins, e que pode resultar em febre, dor de cabeça, dores musculares, náuseas e vômitos. Quando não corretamente diagnosticada e tratada ela pode se agravar e causar a falência múltipla dos órgãos. Sua letalidade pode chegar a 20% das pessoas atingidas.

A bactéria causadora da leptospirose pode se hospedar em uma grande variedade de animais silvestres e domésticos. Apesar do rato marrom (Rattus norvegicus) ser frequentemente citado como o principal hospedeiro da doença, ela também pode se manifestar em bois, porcos, cavalos, cabras, ovelhas e cães, e deles ser transmitida ao homem.

O clima, o ambiente tropical e a infraestrutura de numerosas cidades da Amazônia ocidental brasileira, incluindo a cidade de Rio Branco, favorecem sobremaneira a disseminação da leptospirose. A bactéria causadora desta doença, cuja proliferação é favorecida pelas condições inadequadas de saneamento e pela alta ocorrência de roedores infectados, se concentra sobre solo durante os períodos mais secos do ano e tende a ser espalhada quando da ocorrência de chuvas e cheios de rios e outros cursos de águas presentes nas áreas urbanas.

As mudanças climáticas em curso, visíveis em nossa cidade pela maior frequência de cheias anuais do rio Acre, são, portanto, um fator que deveria ser motivo de preocupação para as autoridades, pois a intensidade e a frequência dos surtos epidêmicos da doença estão associadas com a ocorrência destas cheias.

Um estudo realizado em Rio Branco por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), publicado em março passado, mostra que a situação em nossa cidade é extremamente preocupante.

A pesquisa analisou a incidência mensal de leptospirose na população residente no município de Rio Branco entre 2008 e 2013. Segundo o censo de 2010, a população local era de aproximadamente 336 mil habitantes, dos quais mais de 92% vivia em área urbana. Como se sabe, a cidade é cortada pelo rio Acre e anualmente, durante o período de maior intensidade das chuvas (janeiro a março), acontecem transbordamentos do rio que atingem grandes áreas da mesma, causando, durante os eventos mais acentuados, o desabrigo de milhares de pessoas.

Para o estudo, os dados sobre a ocorrência da doença foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e as incidências foram analisadas quanto a sua evolução temporal, distribuição em distintas faixas etárias, relação com as médias mensais de variáveis climáticas regionais (número de dias com precipitação no mês, média mensal da precipitação, médias mensais das temperaturas máxima, média compensada e mínima e média mensal da umidade relativa compensada) e oscilações mensais do nível do rio Acre.

Os resultados do estudo revelaram que entre 2008 e 2013 ocorreram 779 casos de leptospirose no município de Rio Branco, com forte tendência de ascendência, passando de 13,4 casos/100 mil habitantes em 2010 para 122,3 casos em 2013. Os números de 2013 indicam uma incidência entre 10 a 60 vezes maior que a média do Brasil. E o crescimento do número de casos foi geométrico a partir de 2011, quando foram registrados 30,6 casos/100 mil habitantes, mais que dobrando para 71,6 em 2012 e 122,3 casos em 2013.

A incidência média mensal de leptospirose mostrou forte aumento no período mais chuvoso dos anos estudados, ou seja, entre outubro e abril, quando a média de ocorrência passou de 3,9 casos/100 mil hab. no mês de outubro, para 8,1 casos/100 mil hab. em março. Na estação seca a maior média foi em maio (2,3 casos) e a menor em julho (1,4 casos).

A faixa etária mais atingida pela doença foi a de indivíduos com idade entre 20 e 39 anos, com incidências médias mensais de 49,8 casos/100 mil hab. Crianças com menos de 1 ano e na faixa etária de 1 a 4 anos foram as que apresentaram a menores incidências médias mensais: 2,6 casos/100 mil hab. e 2,0 casos/100 mil, respectivamente. Idosos com mais de 80 anos foram a terceira faixa etária menos atingida: 10,5 casos/100 mil hab.

Em relação às condições climáticas, o estudo revelou que em Rio Branco a quantidade de dias com precipitação no mês e a média mensal do nível do rio podem interferir na ocorrência da leptospirose, causando aumentos de 4 e 7%, respectivamente, na incidência da doença. Os autores sugerem que essas variáveis podem representar indicadores para a predição de tendências na ocorrência dessa doença.

Para eles, as perspectivas das mudanças climáticas globais podem levar à exacerbação da vulnerabilidade e quadros epidemiológicos bastante preocupantes. Com a intensificação e aumento na frequência dos eventos climáticos e ambientais extremos e modelos climáticos projetados para a Região Amazônica que apontam para grandes aumentos de temperatura, pode haver um favorecimento do prolongamento da sobrevivência das bactérias no ambiente, ampliação dos habitat e aumento do número de espécies de animais atuantes como reservatório da bactéria causadora da leptospirose.

Em conjunto, essas mudanças poderão favorecer uma maior distribuição e exacerbação na ocorrência não apenas da leptospirose, mas de outras doenças de veiculação hídrica, especialmente em ambientes urbanos com infraestrutura deficiente de saneamento, como são os casos da grande maioria das cidades da região amazônica.

Os autores concluem o estudo afirmando que o “maior conhecimento sobre a distribuição temporal dos casos, sua relação com o clima e ambiente regionais, somado à detecção do alto potencial de transmissão da doença em Rio Branco, pode contribuir para o planejamento e as tomadas de decisão visando à prevenção e mitigação dos impactos climáticos e ambientais na saúde da população da capital do Acre”.

 

Para saber mais:

Juliana L. Duarte e Leandro L. Giatti. 2019. Incidência da leptospirose em uma capital da Amazônia Ocidental brasileira e sua relação com a variabilidade climática e ambiental, entre os anosde 2008 e 2013. Epidemiologia e Serviços de Saúde, vol. 28, n° 1, p. e2017224.

 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 18/06/2019.