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21 abril 2021

OS ACREANOS ANTES DO ACRE

 Alceu Ranzi* e Evandro Ferreira**

Vamos imaginar a região onde localiza-se o Acre antes dos relatos de Manoel Urbano, William Chandless e do Coronel Labre. Esse pedaço de terra localizado na porção sul-ocidental da Amazônia, relativamente próximo dos Andes, era um mundo com uma variada e numerosa população nativa que convivia com a mais alta biodiversidade do nosso planeta distribuída em florestas sem fim, cortadas por grandes rios meandrantes, igarapés e lagos piscosos.

Para os homens e mulheres que aqui viviam, a denominação “índios” não era e não é adequada, pois as terras descobertas por Cristóvão Colombo não eram a “Índia” que originalmente ele buscava quando içou velas nas Ilhas Canárias em 3 de agosto de 1492. Povos “pré-colombianos” também não é adequado porque as pessoas que habitavam o Acre já ocupavam a região milhares de anos antes da chegada do navegador genovês ao continente americano na região do Caribe. “Ameríndios” é ainda mais inadequada tendo em vista a controvérsia que cerca o primeiro nome do geógrafo italiano Américo Vespúcio: era “Amerigo”, “Alberico” ou “Albertutio”?

Muito antes da chegada de Colombo e de Pedro Álvares Cabral às Américas, no Acre já haviam populações humanas, pessoas, gente. Muita gente. Elas viviam em uma região denominada pelos Incas de Antisuyu: uma grande porção de terras com florestas, calor e chuvas torrenciais desconhecida pelas autoridades das Coroas da Espanha e de Portugal, que posteriormente se intitularam “donas” das mesmas.

Com certeza a chegada de Cabral às praias da Bahia em 1500 passou desapercebida pelos habitantes da região que no futuro viria a ser conhecida como Acre. O mesmo aconteceu quando da ocupação de Cajamarca pelo conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro em 1533, fato que determinou o fim do Império Inca.

Antes de Chandless e Labre, que nos deixaram relatos escritos de suas observações ao longo dos rios Purus e Acre, são poucas as notícias de outras fontes confiáveis. Chandless, Labre e Manuel Urbano nos relatam que havia gente ao longo dos rios acreanos. E não eram seringueiros nordestinos. Eram “nativos” da região. É importante lembrar que até meados de 1860 a borracha ainda não havia sido buscada nessa parte da Amazônia. Portanto, os não nativos eram raros. Possivelmente estavam de passagem ou apenas passando uma temporada por estas terras.

Deve-se notar que as primeiras grandes expedições pela Amazônia não singraram os rios que adentram o Acre. Orellana e Carvajal (1541-1542), Lope de Aguirre e Pedro de Ursúa (1559), Pedro Teixeira (1637-1639), todos navegaram os rios Solimões e Amazonas e passaram pelas bocas dos rios Juruá e Purus. Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), na sua Viagem Philosophica, navegou o Madeira e o Guaporé e passou pela boca do rio Abunã. Ele foi o que chegou mais próximo das terras acreanas.

Além dos escritos de Chandless e Labre e dos relatos de Manuel Urbano, outra fonte que confirma a existência de muita gente no Acre está em processo de revelação pelos arqueólogos. Os geoglifos são um bom exemplo de obras monumentais existentes no Acre e executadas pelos ocupantes milenares dessas terras. As escavações no sítio Tequinho, situado nas proximidades da Vila Pia, na rodovia BR-317 em direção à cidade de Boca do Acre, no Amazonas, revelaram cerâmicas policromáticas de excepcional qualidade artística.

Outros estudos indicam que os primeiros habitantes do Acre chegaram à região há pelo menos 10 mil anos. Estudos de remanescentes fósseis de suas cozinhas permitiram identificar que já naquela época se utilizavam vários alimentos comuns nos dias atuais, com destaque para a abóbora, milho e mandioca, além de frutos de diversas palmeiras e também da castanha do Brasil.

Além dos geoglifos, novas tecnologias como o LIDAR (sigla inglesa para o termo Light Detection And Ranging), que se utiliza do laser para obter informações espaciais e produzir Modelos Digitais do Terreno e da Superfície, tem revelado a existência de trilhas interligando os geoglifos construídos no Acre e uma grande rede de caminhos primitivos que provavelmente se conectavam a outros construídos pelos antigos habitantes da região centro-oeste do Brasil e também com as estradas andinas do Império Inca.

Com o boom da borracha, em um recorte temporal de 40 anos entre 1880 e 1920, grande parte dos moradores originais do Acre foram massacrados e expulsos de suas terras para permitir o estabelecimento dos barracões e seringais. Isso só foi possível com as “correrias” promovidas por pessoas como Pedro Biló e Felizardo Cerqueira, os mais afamados “caçadores de índios” das terras acreanas.

É preciso que se diga: grande parte das “pelas” ou bolas de borracha defumada produzidas nos seringais acreanos que seguiam para as indústrias na Europa e nos Estados Unidos levavam consigo a marca de um genocídio, pois eram manchadas pelo sangue dos habitantes primitivos do Acre postos para “correr” das suas terras onde abundavam árvores de seringueiras. A maioria dos que conseguiram sobreviver aos massacres se refugiou nos altos rios, próximo da fronteira com o Peru, onde não haviam seringueiras. Longe, portanto, da cobiça dos coronéis e patrões seringalistas.

No Acre, atualmente, são numerosas as pessoas originárias, descendentes dos primeiros habitantes que adentraram a região milhares de anos atrás. Integram os troncos linguísticos Pano e Aruak, e ocupam várias terras indígenas demarcadas e consolidadas. Pertencem a distintas etnias, com destaque para os Yawanawas, Ashaninkas, Kashinauas, Manchineris, Apurinãs, Katukinas, Kulinas, Yaminawas, Nukinis e os famosos Náuas, que enfrentaram a expedição do explorador inglês William Chandless ao rio Juruá em 1867, que por isso só conseguiu chegar à boca do rio Gregório, de onde teve que regressar.

Foi assim que os “acreanos antes do Acre”, ou seja, os povos originários que viveram pacificamente e em harmonia com a natureza por milhares de anos no território que ocupamos hoje tiveram sua paz perturbada e foram levados quase à extinção em razão de interesses econômicos desencadeados pela Revolução Industrial que valorava esses “povos da floresta” em um patamar inferior às árvores produtoras de borracha existentes em suas florestas.

*Alceu Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre.

**Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

Para saber mais:

Fausto, C. 2000. Os índios antes do Brasil. Zahar, Rio de Janeiro, 94 pp.

Neves, E. 2006. Arqueologia da Amazônia. Zahar, Rio de Janeiro, 86 pp.

Prous, A. 2007. O Brasil antes dos brasileiros. Zahar, Rio de Janeiro, 142 pp.