CARLOS CHAGAS NO ACRE
Parte 1
"...São levas inteiras de cearenses, desse povo de valentes que exemplifica a resistencia e tenacidade nacionaes, em curto prazo dizimadas pela malaria! Os que não parecem, aquelles cujo destino incerto foi menos inclemente, esses regressam, trazendo em lesões organicas definitivas, os residuos da molestia".
Foto acima: comitiva de Carlos Chagas na rua que margeia o rio Iaco, na cidade de Sena Madureira. A foto foi tomada em janeiro de 1913. Esta talvez seja uma das mais antigas fotos da cidade Acreana (Acervo da Biblioteca Virtual Carlos Chagas).
A VISITA DO GRANDE CIENTISTA BRASILEIRO AO ACRE EM 1912-1913
No começo do século XX o Instituto Oswaldo Cruz promoveu várias expedições científicas ao interior do país com o objetivo de investigar os problemas médico-sanitários dos "sertões" brasileiros. Em agosto de 1912, em função da crise do extrativismo da borracha amazônica, o governo federal firmou um contrato com o Instituto Oswaldo Cruz para a realização de um estudo das condições de salubridade dos vales dos grande afluentes do rio Amazonas, como parte de um plano (nunca realizado) de exploração racional de seus recursos. Para este trabalho foi designado o conhecido cientista brasileiro Carlos Chagas.
Entre outubro de 1912 e março de 1913, Carlos Chagas percorreu os rios Solimões, Purus e Negro e seus principais afluentes, acompanhado de Pacheco Leão, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, João Pedroso, da Diretoria Geral de Saúde Pública, e um fotógrafo. A expedição visitou seringais e povoados ribeirinhos, examinando as condições de vida da população, analisando fatores como abastecimento de água, esgoto, moradia, alimentação, trabalho e assistência médica. Além disso, foram realizadas observações clínicas sobre as diversas doenças incidentes, sobretudo a malária, que atingia com grande gravidade a maior parte dos habitantes. A expedição levantou também informações sobre as principais epidemias ocorridas na região, registrou as práticas medicinais utilizadas, capturou insetos suspeitos de transmitirem doenças e colheu plantas com possível valor medicinal. No laboratório improvisado a bordo da pequena embarcação que servia de transporte, Carlos Chagas examinou peixes e outros animais em busca de parasitos e observava ao microscópio amostras e materiais colhidos junto à população.
Depois de retornar à capital federal (Rio de Janeiro), o cientista expôs, em outubro de 1913, os resultados da expedição na Conferência Nacional da Borracha, realizada no Senado Federal, no Rio de Janeiro. Sua conferência, bem como o relatório apresentado por Oswaldo Cruz ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ofereceram um amplo inventário da situação de abandono médico e social em que viviam as populações da Amazônia, enfatizando a necessidade de medidas sanitárias como instrumento fundamental para viabilizar o desenvolvimento econômico da região.
O relatório de Carlos Chagas relata, com mais detalhes, a situação sanitária relacionada com a ocorrência da malária, da "ferida brava" e lepra
Malária: ceifadora de vidas
Uma das coisas que mais impressionou Carlos Chagas foi a alta incidência de malária entre os habitantes do rio Juruá, na localidade de São Felipe:
..."Façamos rapida synthese das noções epidemiologicas e clinicas adquiridas em nossos estudos sobre a malaria. E' essa molestia o grande flagello no Norte, representando o factor preponderante na lethalidade aterradora daquellas regiões, tanto quanto na condição precaria de seus habitantes. O indice endemico pela malaria é elevadissimo, podendo-se affirmar, sem exaggero, que, exceptuando alguns individuos dos residentes em centros populosos, a totalidade da população do interior acha-se infectada pelo plasmodio. Observações fizemos, nesse sentido, de levar ao desalento".
..."Em S. Felippe, pequena cidade do rio Juruá, cuja população, approximada, poderia ser avaliada em 850 ou 900 almas, colhemos dados officiaes, que nos referiram uma lethalidade superior a 400 pessoas no primeiro semestre de 1911! Quer dizer, metade dos habitantes de uma pequena cidade victimada em seis mezes por uma molestia evitavel e de processos curativos bem estabelecidos. E quando ahi chegamos nessa pequena "necropole", ainda foi dado apreciar os effeitos da intensa e mortifera epidemia. Quasi todos os habitantes de S. Felippe achavam-se infectados, apresentando os signaes clinicos da molestia e, especialmente, esses volumosos baços, que tomam todo o abdome, caracteristicos da malaria mal curada. Nas crianças, em muitas dezenas que nos vieram a exame, mais notaveis eram as consequencias da molestia, expressando-se na condição cachetica de quasi todas, na decadencia profunda de pequenos organismo quasi inaptos pasa a vida e ainda menos para o desenvolvimento physico, combalidos pela permanencia demorada, e sem duvida, definitiva da infecção".
Aos leitores familiarizados com a situação da malária na porção acreana do vale do Juruá, fica a impressão que, passados quase 100 anos, esta doença nunca foi "atacada" de forma eficiente pelas autoridades sanitárias do nosso país. Se Carlos Chagas ressucitasse e tivesse a chance de visitar as cidades de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves nos dias de hoje, suas impressões seriam similares, com exceção do índice de mortalidade.
Carlos Chagas relata que na época, em função da precariedade dos serviços públicos, o índice de mortalidade causado pela malária era de 30-40% entre os seringueirs. No caso específico dos seringais localizados no rio Abunã, no então Território do Acre, a mortalidade era superior a 70%.
Relata o cientista..."alguns patrões, os mais zelosos do proprio interesse economico e possuidos de sentimentos humanitarios procuram attenuar a condição morbida de seus aggregados, proporcionando-lhes medicamentos que julgam indicados. Actuam, porém, sem qualquer methodo scientifico e, deste modo, torna-se inefficaz a sua acção meritoria. A regra é a absoluta ausencia, nos seringaes, de qualquer medida, curativa ou prophylatica, contra a malaria, e, dahi, a grande mortalidade nelles observada, attingindo ella, em muitas regiões, a alta cifra annual de 30 a 40 % entre os serigueiros. Isso nos seringaes de rios navegaveis, que durante toda a estação das aguas acham-se em communicação com os grandes centros civilisados, Belém e Manáos, de onde lhes chegam recursos medicamentosos aproveitaveis. Em rios interiores, muitos delles ricos em borracha, a mortalidade sobe de muito, havendo ahi verdadeira hecatombe da vida humana. E' o que sabemos do Abunã, cujos serigaes, riquissimos, em grande parte situados no territorio federal do Alto Acre, constituem, actualmente, o centro de attração dos aventureiros cearenses, ambiciosos de fortuna. Ahi campeia a malaria em suas formas mais graves, occasionando um morticinio annual, talvez superior a 70%, deste modo difficultando o aproveitamento da grandes riquezas daquelle rio. O mesmo se verifica nos affluentes do Purus, do rio Negro, do Juruá, do Acre, etc., onde os seringueiros, localisados a grande distancias das vias de navegação, ficam ao inteiro desabrigo de quaesquer recursos medicos e são dizimados pela malaria".
Já na época o cientista citava a ocorrência das três espécies do plasmódio causador da malária, tendo ficado intrigado com a virulência da doença no rio Acre
..."Em pesquizas etiologicas, verificámos no Amazonas a existencia das tres especies de plasmodio, com predominancia, em quasi todas as regiões, dos parasitos da terçã grave e da terçã benigna. No Rio Acre surprehendeu-nos a frequencia desusada do parasita da quartã, ou mais provalvelmente, de uma variedade deste parasito que ahi, em algumas regiões, constitue a especie predominante e, ás vezes, unica. Deste hematozoario, algumas condições morphologicas e biologicas bem se distanciavam das que conhecemos na especie typica, o que nos levou a suspeitar de uma variedade nova, principalmente caracterisada pela maior virulencia. No ponto de vista clinico, as infecções deste Plasmodium apresentam, com elemento anomalo, um edema precoce, ora pre-tibial, o mais das vezes generalisado, attingindo o tronco e os membros superiores".
Referências:
- Chagas, Carlos. Notas sobre a epidemiologia do Amazonas. Brazil-Medico, Rio de Janeiro, v.27, n.42, p.450-456, nov. 1913. (Disponível em: Biblioteca Virtual Carlos Chagas)
- Chaves, Leocadio. Carlos Chagas e o Instituto Oswaldo Cruz. A Folha Medica, Rio de Janeiro, v.27, n.21, p.308-310, 25 jul. 1936. Edição especial: Doenças Tropicais e Infectuosas.
"...São levas inteiras de cearenses, desse povo de valentes que exemplifica a resistencia e tenacidade nacionaes, em curto prazo dizimadas pela malaria! Os que não parecem, aquelles cujo destino incerto foi menos inclemente, esses regressam, trazendo em lesões organicas definitivas, os residuos da molestia".
Foto acima: comitiva de Carlos Chagas na rua que margeia o rio Iaco, na cidade de Sena Madureira. A foto foi tomada em janeiro de 1913. Esta talvez seja uma das mais antigas fotos da cidade Acreana (Acervo da Biblioteca Virtual Carlos Chagas).
A VISITA DO GRANDE CIENTISTA BRASILEIRO AO ACRE EM 1912-1913
No começo do século XX o Instituto Oswaldo Cruz promoveu várias expedições científicas ao interior do país com o objetivo de investigar os problemas médico-sanitários dos "sertões" brasileiros. Em agosto de 1912, em função da crise do extrativismo da borracha amazônica, o governo federal firmou um contrato com o Instituto Oswaldo Cruz para a realização de um estudo das condições de salubridade dos vales dos grande afluentes do rio Amazonas, como parte de um plano (nunca realizado) de exploração racional de seus recursos. Para este trabalho foi designado o conhecido cientista brasileiro Carlos Chagas.
Entre outubro de 1912 e março de 1913, Carlos Chagas percorreu os rios Solimões, Purus e Negro e seus principais afluentes, acompanhado de Pacheco Leão, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, João Pedroso, da Diretoria Geral de Saúde Pública, e um fotógrafo. A expedição visitou seringais e povoados ribeirinhos, examinando as condições de vida da população, analisando fatores como abastecimento de água, esgoto, moradia, alimentação, trabalho e assistência médica. Além disso, foram realizadas observações clínicas sobre as diversas doenças incidentes, sobretudo a malária, que atingia com grande gravidade a maior parte dos habitantes. A expedição levantou também informações sobre as principais epidemias ocorridas na região, registrou as práticas medicinais utilizadas, capturou insetos suspeitos de transmitirem doenças e colheu plantas com possível valor medicinal. No laboratório improvisado a bordo da pequena embarcação que servia de transporte, Carlos Chagas examinou peixes e outros animais em busca de parasitos e observava ao microscópio amostras e materiais colhidos junto à população.
Depois de retornar à capital federal (Rio de Janeiro), o cientista expôs, em outubro de 1913, os resultados da expedição na Conferência Nacional da Borracha, realizada no Senado Federal, no Rio de Janeiro. Sua conferência, bem como o relatório apresentado por Oswaldo Cruz ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ofereceram um amplo inventário da situação de abandono médico e social em que viviam as populações da Amazônia, enfatizando a necessidade de medidas sanitárias como instrumento fundamental para viabilizar o desenvolvimento econômico da região.
O relatório de Carlos Chagas relata, com mais detalhes, a situação sanitária relacionada com a ocorrência da malária, da "ferida brava" e lepra
Malária: ceifadora de vidas
Uma das coisas que mais impressionou Carlos Chagas foi a alta incidência de malária entre os habitantes do rio Juruá, na localidade de São Felipe:
..."Façamos rapida synthese das noções epidemiologicas e clinicas adquiridas em nossos estudos sobre a malaria. E' essa molestia o grande flagello no Norte, representando o factor preponderante na lethalidade aterradora daquellas regiões, tanto quanto na condição precaria de seus habitantes. O indice endemico pela malaria é elevadissimo, podendo-se affirmar, sem exaggero, que, exceptuando alguns individuos dos residentes em centros populosos, a totalidade da população do interior acha-se infectada pelo plasmodio. Observações fizemos, nesse sentido, de levar ao desalento".
..."Em S. Felippe, pequena cidade do rio Juruá, cuja população, approximada, poderia ser avaliada em 850 ou 900 almas, colhemos dados officiaes, que nos referiram uma lethalidade superior a 400 pessoas no primeiro semestre de 1911! Quer dizer, metade dos habitantes de uma pequena cidade victimada em seis mezes por uma molestia evitavel e de processos curativos bem estabelecidos. E quando ahi chegamos nessa pequena "necropole", ainda foi dado apreciar os effeitos da intensa e mortifera epidemia. Quasi todos os habitantes de S. Felippe achavam-se infectados, apresentando os signaes clinicos da molestia e, especialmente, esses volumosos baços, que tomam todo o abdome, caracteristicos da malaria mal curada. Nas crianças, em muitas dezenas que nos vieram a exame, mais notaveis eram as consequencias da molestia, expressando-se na condição cachetica de quasi todas, na decadencia profunda de pequenos organismo quasi inaptos pasa a vida e ainda menos para o desenvolvimento physico, combalidos pela permanencia demorada, e sem duvida, definitiva da infecção".
Aos leitores familiarizados com a situação da malária na porção acreana do vale do Juruá, fica a impressão que, passados quase 100 anos, esta doença nunca foi "atacada" de forma eficiente pelas autoridades sanitárias do nosso país. Se Carlos Chagas ressucitasse e tivesse a chance de visitar as cidades de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves nos dias de hoje, suas impressões seriam similares, com exceção do índice de mortalidade.
Carlos Chagas relata que na época, em função da precariedade dos serviços públicos, o índice de mortalidade causado pela malária era de 30-40% entre os seringueirs. No caso específico dos seringais localizados no rio Abunã, no então Território do Acre, a mortalidade era superior a 70%.
Relata o cientista..."alguns patrões, os mais zelosos do proprio interesse economico e possuidos de sentimentos humanitarios procuram attenuar a condição morbida de seus aggregados, proporcionando-lhes medicamentos que julgam indicados. Actuam, porém, sem qualquer methodo scientifico e, deste modo, torna-se inefficaz a sua acção meritoria. A regra é a absoluta ausencia, nos seringaes, de qualquer medida, curativa ou prophylatica, contra a malaria, e, dahi, a grande mortalidade nelles observada, attingindo ella, em muitas regiões, a alta cifra annual de 30 a 40 % entre os serigueiros. Isso nos seringaes de rios navegaveis, que durante toda a estação das aguas acham-se em communicação com os grandes centros civilisados, Belém e Manáos, de onde lhes chegam recursos medicamentosos aproveitaveis. Em rios interiores, muitos delles ricos em borracha, a mortalidade sobe de muito, havendo ahi verdadeira hecatombe da vida humana. E' o que sabemos do Abunã, cujos serigaes, riquissimos, em grande parte situados no territorio federal do Alto Acre, constituem, actualmente, o centro de attração dos aventureiros cearenses, ambiciosos de fortuna. Ahi campeia a malaria em suas formas mais graves, occasionando um morticinio annual, talvez superior a 70%, deste modo difficultando o aproveitamento da grandes riquezas daquelle rio. O mesmo se verifica nos affluentes do Purus, do rio Negro, do Juruá, do Acre, etc., onde os seringueiros, localisados a grande distancias das vias de navegação, ficam ao inteiro desabrigo de quaesquer recursos medicos e são dizimados pela malaria".
Já na época o cientista citava a ocorrência das três espécies do plasmódio causador da malária, tendo ficado intrigado com a virulência da doença no rio Acre
..."Em pesquizas etiologicas, verificámos no Amazonas a existencia das tres especies de plasmodio, com predominancia, em quasi todas as regiões, dos parasitos da terçã grave e da terçã benigna. No Rio Acre surprehendeu-nos a frequencia desusada do parasita da quartã, ou mais provalvelmente, de uma variedade deste parasito que ahi, em algumas regiões, constitue a especie predominante e, ás vezes, unica. Deste hematozoario, algumas condições morphologicas e biologicas bem se distanciavam das que conhecemos na especie typica, o que nos levou a suspeitar de uma variedade nova, principalmente caracterisada pela maior virulencia. No ponto de vista clinico, as infecções deste Plasmodium apresentam, com elemento anomalo, um edema precoce, ora pre-tibial, o mais das vezes generalisado, attingindo o tronco e os membros superiores".
Referências:
- Chagas, Carlos. Notas sobre a epidemiologia do Amazonas. Brazil-Medico, Rio de Janeiro, v.27, n.42, p.450-456, nov. 1913. (Disponível em: Biblioteca Virtual Carlos Chagas)
- Chaves, Leocadio. Carlos Chagas e o Instituto Oswaldo Cruz. A Folha Medica, Rio de Janeiro, v.27, n.21, p.308-310, 25 jul. 1936. Edição especial: Doenças Tropicais e Infectuosas.
1 Comments:
A localidade S.Felipe, citada por Carlos Chagas, é a atual cidade de Eirunepé no Estado do Amazonas.
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