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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

28 setembro 2021

TROPEIROS E CAMINHOS DO BENI PARA O ACRE

Alceu Ranzi*

No final do mês de agosto de 2021, quando estive em Rio Branco, tive a oportunidade de entrevistar dois acreanos que testemunharam ou acompanharam as tropas de gado originadas dos campos do Beni, na Bolívia, a caminho do Acre, em especial Rio Branco.

Conversei primeiro com o Sr. Paulo da Silva Maia, nascido em 1931, e morador do Segundo Distrito, onde vive até hoje. Paulo Maia sempre lidou com gado, foi um antigo tropeiro e acompanhou em diversas oportunidades tropas de gado dos campos de Santa Ana del Yacuma, na Bolívia, para o Acre.

Segundo ele, as tropas de gado com 300 ou 400 cabeças eram divididas em grupos menores, acompanhadas por tropeiros bolivianos a pé. Não se usavam cavalos ou mulas pela dificuldade de andar nos varadouros.

O segundo entrevistado foi o Sr. Clóvis Alves de Souza, nascido em 1933, neto do Capitão Liberalino Alves de Souza, Guarda-Livros do Cel. Plácido de Castro que se destacou, durante a revolução acreana, no combate de Santa Rosa, nas cercanias do rio Abunã, Bolívia.

O Sr. Clóvis nasceu e ainda é proprietário de terras na região dos antigos “Campo Esperança” e “Campo Central”, nas proximidades da atual cidade de Capixaba. Segundo ele, o Capitão Liberalino era proprietário do Seringal Gavião e casou com uma índia parente de Benavide Benavenuto, o último Cacique dos “Apurinã do Gavião” que também foi Pajé na aldeia do Muchanguy, situada entre o Gavião e o “Campo Lindo”, no atual município de Capixaba.

O gado trazido dos campos do Beni, depois de caminhar durante 30 a 40 dias, chegava ao Acre em péssimas condições. A recuperação e engorda, antes do abate, ocorria nas pastagens naturais do Campo Esperança e Campo Central, na região das cabeceiras do rio Iquiri, e nos pastos de Newtel Maia e na planície do rio Acre no atual Bairro da Cidade Nova, em Rio Branco.

Tanto o Sr. Paulo Maia como o Sr. Clóvis Alves de Souza, amigos e contemporâneos, falaram da importância do comércio de gado da Bolívia para o Brasil nos anos em que carne chegava ao Acre na forma de Corned Beef (enlatada) ou como Charque ou Jabá (salgada e seca ao sol).

O transporte do gado vindo da Bolívia se iniciava em Santa Ana del Yacuma e nos primeiros 300 km, até a localidade de Exaltación, na margem do rio Beni, o caminho atravessava campos naturais. Daí para a frente, o gado seguia em varadouros no interior da Floresta cruzando os rios Madre de Dios (na localidade de Mercedes), Orton (Palestina) e Abunã (Santa Rosa).

Conforme o mapa “La Frontera del Norte”, de 1907, elaborado pelo Cel. Percy H. Fawcett e publicado por Adolfo Ballivian (Chefe da Comissão Boliviana Demarcadora de Limites com o Brasil), a partir de Palestina, no rio Orton, o varadouro seguia quase em linha reta cruzando o rio Abunã em Santa Rosa, e, adentrando o Brasil, passava pelo Seringal Gavião, no Campo Esperança, até chegar ao Campo Central do Capatará. Esse é o mesmo varadouro indígena trilhado pelo Cel. Labre em 1887 (ver Ranzi & Ferreira, p. 147 e 305).

Na localidade conhecida como quatro bocas, tinha um entroncamento (Gavião-Capatará/Palmares-Empresa), com um ramal seguindo para o Seringal Capatará, às margens do rio Acre, e o outro, via Missões (no eixo da atual rodovia BR-317) ia até as pastagens de Newtel Maia em Rio Branco.

Os varadouros da margem direita do rio Acre para os rios Xipamanu e Orton podem ser visualizados no mapa “Bolívia-Brazil Boundary, 1911-1912” (Edwards, 2013) e o “Mapa de Vias de Comunicacion de los Distintos Puntos de la República a Puerto Acre”, de Meredia Villarreal (1903), publicado na p. 27 de Gumucio (2014).

Esse comércio de gado do Beni para o Acre é antigo e foi objeto de um Decreto Supremo do governo boliviano datado de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro Villazón, que isentava de impostos e taxas o trânsito e exportação de reses do Beni para a região do Acre “donde el consumo de carne se hace impossible para los pobladores por su fabuloso precio”.

Ainda mais antiga é a observação do Frei Nicolás Armentia de que “talvez se abrirá en breve um camiño para el transporte del ganado de Mojos al Purús, donde existen de cincuenta à sesenta mil esplotadores de goma que carecen em lo absoluto de ese artículo tan necesário para la vida” (Armentia, 1888).

Por outro lado, nos tempos da Revolução Acreana, Genesco de Castro (2002) cita que a firma N. Maia & Cia. “importa da Bolívia mais de 2.000 cabeças de gado anualmente”.

O declínio, e posterior paralização, da importação de gado vivo do Beni para o Acre tem como seu ponto de partida a implantação e consolidação de extensas fazendas de pecuária no Acre a partir do início dos anos 70. O fim desse comércio resultou, em território acreano, no abandono de varadouros que serviram para esse transporte por mais de 50 anos. Desde então, o Acre passou da condição de importador de gado em pé para a de exportador de carne beneficiada.

* Alceu Ranzi Alceu Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre

Para saber mais: 

Armentia, N. 1888. Descripción de la provincia de los Moxos, en el Reino del Perú. Imprenta del Siglo Industrial, La Paz, Bolivia.

Castro, G. 2002. O Estado Independente do Acre. Senado Federal, Brasília, 372 pp.

República da Bolívia, 1912 – Decreto Supremo da Bolívia de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro Villazón.

Edwards, H. A. 1913. Frontier work on the Bolivia-Brazil boundary, 1911-1912. The Geographical Journal, v. 42, n. 2, p. 113-126 (+ mapa).

Gumucio, M. P. 2014. Pando y la Amazonia Boliviana. Grupo Editorial Kipus, Cochabamba, Bolivia, 352 pp.

Ranzi, A.; Ferreira, E. 2021. Acre: Visto e Revisto. Massiambooks, Florianópolis, 310 pp. 

15 setembro 2021

APESAR DO AVAL DO ICMBIO E DO IBAMA, ESTRADA NO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO DIVISOR TEM POUCAS CHANCES DE SE MATERIALIZAR

Evandro Ferreira*

Em 03 de setembro o Diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do ICMBio, Marcos Aurélio Venâncio, um Tenente Coronel da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, oficiou o Diretor de Licenciamento Ambiental do IBAMA dando o “de acordo” para a realização do licenciamento ambiental visando a construção da rodovia BR-364 dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), no extremo oeste do Acre.

A decisão de seguir em frente com a iniciativa de construção da referida estrada em um ambiente global de franca hostilidade político-ambiental ao Brasil em razão da desastrada política ambiental adotada pela administração que assumiu as rédeas do país em 2019 parece fadada ao fracasso.

Embora o Decreto de criação do PNSD (n° 97.839/1989), em seu artigo 3°, autorize explicitamente “a implantação do trecho da BR-364 cortando o Parque, desde que observadas medidas de proteção ambiental e compatibilização do traçado com as características naturais da área”, legislação posterior e hierarquicamente superior torna sem valor essa autorização.

Em julho 2000, por meio da Lei n° 9.985 o Governo Federal criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), estabelecendo critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação no país. Além de passarem a ser regidas por um arcabouço legal comum, as unidades de conservação foram categorizadas em dois grandes grupos: as de uso sustentável e as de proteção integral.

O primeiro grupo, de uso sustentável (que inclui as Reservas Extrativistas), admite a presença de moradores em seu interior e a exploração em bases sustentáveis dos recursos naturais existentes. O segundo, de proteção integral, no qual se inserem Parques Nacionais (caso do PNSD), proíbe a presença de moradores e a exploração dos recursos naturais locais tendo em vista que essas unidades objetivam a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais”.

Diante disso, está claro que a construção de uma estrada em um Parque Nacional não se admite pelos danos diretos e indiretos (atuais e futuros) que a mesma pode causar à unidade de proteção integral. Além disso, permitir a construção da estrada é um atentado contra a Lei que criou o SNUC. E usar o argumento de que a legislação que criou o PNSD previa a construção da estrada é inútil visto que no nosso ordenamento jurídico uma Lei sempre se impõe a um Decreto. Este não pode contrariá-la, sob pena dos atos praticados com base no mesmo serem ilegais e sem validade.

Quem “deu sinal verde” para o ICMBio “autorizar” o IBAMA a liberar os estudos visando o licenciamento ambiental da construção da estrada foi a Procuradoria Federal Especializada da Advocacia-Geral da União (AGU). Obviamente que a AGU existe para defender as iniciativas do Governo Federal e para isso ela irá interpretar e argumentar a legislação, mesmo contra a lógica jurídica mais elementar (Decreto se sobrepondo a uma Lei), em favor das iniciativas do governo.

É importante deixar claro que muitas decisões de um ou outro ocupante de cargo de confiança no ICMBio, no IBAMA ou mesmo do Ministro do Meio Ambiente, visam atender demandas de políticos que viram na ascensão do atual governo uma oportunidade ímpar de avançar projetos supostamente desenvolvimentistas brecados no passado por sabidos impactos ambientais negativos. Sua aprovação é a “moeda de troca” representada pelo apoio que esses políticos dão às iniciativas do governo no Congresso.

Um resultado dessa interação política nefasta, que se intensificou a partir de 2019, é a aceleração da destruição ambiental por todo o país. Graças a isso, em pouco mais de dois anos e meio o Brasil foi “rebaixado” no campo ambiental à categoria de “pária mundial”. De nação líder e exemplar na adoção de práticas ambientais sustentáveis em nível global, o país passou a ser visto como um “grande vilão”, muitas vezes excluído e, quando presente, sem respeito ou autoridade alguma para impor suas sugestões e demandas ambientais em foros e reuniões internacionais.

Embora a iniciativa do Diretor do ICMBio no tocante à construção da estrada dentro do PNSD cause preocupações, na prática, o ambiente político-jurídico atual inviabiliza que “essa boiada” passe despercebida.

Se judicializada, é quase certo que as providências preliminares indispensáveis para viabilizar a construção da estrada dentro do PNSD serão paralisadas. Especialmente agora que o Executivo Federal declarou “guerra” ao Judiciário brasileiro em todas as frentes. Assim, ele que não espere boa vontade e celeridade por parte dos juízes que vierem a ser designados para decidir a causa.

No que toca à sociedade civil organizada que se opõe à construção da rodovia, os defensores que se preparem. Terão que se contrapor aos ambientalistas locais, regionais e nacionais que estão criando uma “onda” crescente de oposição que tem atraído importantes influenciadores nacionais e internacionais. Em paralelo, organizações indígenas estão atuando fortemente para brecar a iniciativa, pois a estrada impacta três terras indígenas.

Se a oposição “civil” à estrada é crescente no lado brasileiro, no lado peruano o apoio político à mesma mudou drasticamente com a recente eleição de um professor e agricultor para a presidência daquele país. Não sendo representante das elites peruanas, iniciativas em favor da parcela mais pobre da população e a defesa de causas indígenas e ambientais tenderão a prevalecer durante o seu governo. Sem o apoio dos peruanos, não faz sentido o Brasil insistir na construção de uma estrada que correrá o risco de ter o seu trajeto terminado abruptamente no meio do nada, na fronteira com o Peru.

*Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.