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30 novembro 2016

QUEIMADAS NA AMAZÔNIA EM 2016

Aquecimento da Terra e mega-El Niño tornaram 2016 um dos anos mais secos da história na floresta, causando incêndios extensos.

Por Karinna Matozinhos (Ipam/Envolverde)*

O ano de 2016 caminha para ser o mais quente já registrado. Enquanto isso, no Brasil, um dos El Niño mais intensos das últimas décadas exacerbou a estação seca em boa parte da na Amazônia.

Quando esses dois quadros se juntaram ao uso inadequado do fogo nos últimos meses, vastos quinhões da Amazônia arderam, com graves consequências para as populações, para a economia e para a natureza.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a área queimada na região em setembro chegou a 54,5 mil quilômetros quadrados, maior do que o Estado do Rio – extensão pouco menor do que em setembro de 2015, contrariando previsões iniciais de potencial recorde neste ano.

Nem por isso há o que se comemorar: largas áreas de vegetação foram incendiadas. “Sabemos que está ocorrendo o aumento da estação seca na Amazônia e uma alteração no ciclo hidrológico, mas ainda não sabemos direito as causas”, diz o cientista Paulo Artaxo, professor na Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro do IPAM.

Estresse

De acordo com dados da NASA (agência espacial norte-americana), o solo da floresta amazônica está menos úmido em 2016 do que em 2005 e 2010, dois anos que também registraram secas extremas².

A área queimada no bioma aumentou 110% em 2015 em relação à área queimada em 2006, segundo cálculo baseado em informações do Inpe. Enquanto isso, a área de corte raso caiu 56%, ficando estacionada ao redor de 5.000 km2.

Em todo o mundo, as regiões de floresta tropical têm aquecido em média 0,26°C por década desde meados de 1970. “A Amazônia está sofrendo um processo de estresse hídrico devido ao aumento de 1,5°C no último século”, explica Artaxo. “Ao ter um ambiente com uma temperatura alta se aproximando de limiares, isso pode trazer uma fragilidade maior para a região.”

Quando diferentes forças – atividades humanas, como mudança no uso do solo e emissões de CO2, mais fatores naturais, como El Niño – atuam sobre uma mesma região ao mesmo tempo, pesquisas científicas combinadas a políticas públicas precisam ser prioritárias.

“Políticas públicas de longo prazo, monitoramento, presença do Estado e governabilidade estadual são essenciais para definir os próximos rumos do ambiente e da população como um todo”, diz o cientista. “Uma estratégia muito importante para o país é melhorar o monitoramento ambiental dos processos que estão acontecendo na Amazônia. Mudanças no uso do solo são só a primeira alteração ambiental numa cadeia muito grande – é preciso monitorá-la completamente.” 

* Edição: Cristina Amorim.

** Publicado originalmente no site Ipam.
Fonte da foto: José Cruz/Agência Brasil.

29 novembro 2016

A CRIATIVIDADE DO ‘POVÃO’ NA HORA DE DAR NOME AOS FILHOS

Nomes como Kléberson, Richarlyson e outros “son” refletiria o desejo de prover o filho de uma personalidade forte e única e, ao mesmo tempo, evitar que ele seja um ‘zé qualquer’ ou um ‘joão-ninguém’.  

O artigo “Geração on" escrito por Roberto Pompeu de Toledo e publicado na revista VEJA em 2009 continua atualíssimo. Vale a pena ler de novo. Desfrutem da leitura do mesmo, reproduzida abaixo.

“Geração on"

A seleção da coluna entrará em campo para o próximo compromisso com a seguinte formação: Glédson; Joílson, Halisson, Acleisson e Richarlyson; Vanderson, Kléberson, Glaydson e Taison; Wallyson e Keirrison. No banco de reservas ficarão Wanderson (goleiro), Jadilson, Maylson, Leanderson, Cleverson e Roberson. A seleção adversária, armada no três-cinco-dois, se apresentará com: Weverton; Adailton, Heverton e Welton; Arilton, Cleiton, Éverton, Uelliton e Neilton; Washington e Elton. Os reservas serão Dalton (goleiro), Erivelton, Hamilton, Wellington, Hélton e Jailton.

Primeiro aviso ao leitor incauto: os nomes são todos verdadeiros, de jogadores em atividade no futebol brasileiro. Segundo aviso: se os mais distraídos ainda não perceberam, o embate acima se dá entre os nomes terminados em "son" contra os terminados em "ton". Nomes em "son" e "ton" hoje abundam, nos gramados, como estrelas no céu.

Tempos atrás, mais característicos eram os apelidos de duas sílabas, Pelé, Didi, Dida, Pepe, Telê, alegres e infantis. Os terminados em "son" e "ton", ao contrário, são nomes severos, que evocam chefes guerreiros. Tanto eles se multiplicam que para escalar as seleções não foi preciso ir além de um restrito universo. Na grande maioria, são de jogadores dos times da primeira divisão do Campeonato Brasileiro, com apenas alguns poucos reforços – afinal, Weverton, goleiro do Vila Nova, de Goiás, não merecia ficar de fora, nem Acleisson, volante do Mirassol, clube do interior paulista.

A questão é: por que a pesada preferência pelos nomes em "son" e "ton"?

O futebol não é um universo fechado. Ele espelha a sociedade brasileira. Mais exatamente, espelha as camadas mais populares da sociedade. O que leva a concluir que estamos diante de um fenômeno de massa: o povo brasileiro, maciçamente, anda preferindo dar nomes em "son" e "ton" aos filhos homens. Complexas e misteriosas são as razões pelas quais um nome, ou uma classe de nomes, entra ou sai de moda. É tarefa para antropólogos e sociólogos.

Modestamente, enquanto se espera por mais doutas explicações, o que se pode é especular.

É de supor, em primeiro lugar, que quem pespega no filho os nomes de Wallyson ou Leanderson espera do interlocutor reação que vá além da indiferença. Afastemos desde logo, no caso do "son", ter sido ele importado dos costumes nórdicos, em que a terminação "son" (ou "sohn" – "filho", em inglês, alemão e línguas afins) identifica o filho de alguém de nome igual ao contido nas sílabas precedentes. É improvável que Leanderson signifique "filho de Leander" ou que Wallyson signifique "filho de Wally".

Parece ser mais o caso de criações livres, movidas pelo gosto da invenção. Keirrison, artilheiro do Palmeiras, contou à revista Veja São Paulo que deve seu nome à preferência do pai pela letra K, combinada à admiração pelo beatle George Harrison. Keirrison tem um irmão chamado Kimarrison, de novo com K, e dessa vez homenagem do pai, roqueiro incorrigível, a Jim Morrison. Como Harrison e Morrison viraram Keirrison e Kimarrison, isso fica por conta da peculiar alquimia que rege a produção de nomes no Brasil.

Ao lado do gosto da invenção, a queda pelo estrangeirismo é outro traço que se adivinha nos pais dos "son" e dos "ton". São nomes que soam estrangeiros. Por coincidência (ou não?), as terminações em "on", tanto no inglês quanto no francês e no espanhol, correspondem ao "ão" português. Entre outros milhares de exemplos, action, em inglês e francês, e acción, em espanhol, dão em "ação" em português. Ora, o "ão" é o som mais típico da língua portuguesa, terror dos estrangeiros que o tentam imitar. Fugir do "ão", como se faz, mesmo inconscientemente, quando se opta pelo "on" é negar a língua portuguesa como nem São Pedro negou Jesus Cristo antes que o galo cantasse.

O gosto da invenção, somado à queda pelo estrangeirismo, colabora para a hipótese seguinte: a escolha dos nomes Kléberson ou Richarlyson, Welton ou Arilton, trairia o desejo de, com o fermento de toques originais e estrangeiros, prover o filho de uma personalidade forte e única. Não, ele não haverá de ser um zé qualquer, nem um joão-ninguém.

A ironia desta história é que, em contraponto à tendência pelos "son" e "ton" nos estratos populares, nas classes altas vigora a tendência oposta. Lá reinam os Josés e os Joões, Antônios e Franciscos como faziam décadas não se via. Tal qual em outros campos, um Brasil vai para um lado, o outro para a direção inversa.


* Artigo originalmente publicado na revista VEJA, Edição 2101, de 25 de fevereiro de 2009.

28 novembro 2016

QUÃO VIRGEM É A FLORESTA VIRGEM?

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Nos últimos dez anos um tema tem causado controvérsia no meio acadêmico. Alguns cientistas defendem que as florestas tropicais não são tão virgens como se pensa porque habitantes ancestrais já manejaram extensas áreas dessas florestas, moldando-as para atender suas necessidades. Algumas espécies consideradas nativas são reputadas por esses pesquisadores como intrusas. E uma das mais suspeitas de ter sido introduzida em nossas florestas é a nossa castanheira (Bertholletia excelsa).

Dentre vários artigos acadêmicos que suportam essa linha de pensamento, vale a pena conhecer um deles, publicado por K. J.Willis, L. Gillson e T. M. Brncic, da Universidade de Oxford, na renomada revista Science em abril de 2004. Seu título é bem instigante: “Quão virgem é a floresta virgem?”.

Segundo os autores, dados arqueológicos e paleocológicos sugerem que as ‘florestas virgens’ não são tão ‘virgens’ como se pensava anteriormente e passaram por modificações substanciais. Nas três grandes regiões de florestas tropicais do planeta localizadas na Amazônia, na bacia do rio Congo, na África, e na região Indo-Malaia do Sudoeste Asiático, vários estudos sugerem que atividades humanas pré-históricas foram mais extensivas do que se pensava anteriormente.

Na Amazônia, os solos mais férteis são aqueles conhecidos como ‘terra preta de índio’, formados desde 2,5 mil anos atrás via realização de queimadas e atividades agrícolas, estimando-se em 50 mil hectares a área desses solos na região. Evidências arqueológicas do alto rio Xingu indicam que vários assentamentos humanos existiam naquela região entre os anos 1250 e 1600, cada um deles ocupando 40 a 80 hectares e com densidade populacional de 6 e 12,5 pessoas/km². Eles integravam um complexo regional e sugerem que seus habitantes promoveram um manejo e desenvolvimento intensivo da paisagem que resultou na transformação de extensas áreas florestais em áreas agrícolas. O abandono da região, depois de uma catastrófica diminuição da população entre os anos 1600 e 1700, resultou em um extensivo processo de reflorestamento natural. Por essa razão, atualmente a região do alto Xingu abriga a maior mancha de floresta contínua na periferia sul da Amazônia.

 Dados arqueológicos e paleoecológicos também revelam história similar na bacia do rio Congo, onde numerosos achados de ferramentas de pedra, sementes de dendê, traços de carvão no subsolo, resquícios de cultivos ancestrais de banana e cacos cerâmicos levaram os pesquisadores a concluir que a maior parte daquela região, hoje coberta por uma densa floresta, foi extensivamente habitada no passado. Parte da floresta foi derrubada e a prática de agricultura data de cerca de 3 mil anos atrás. O fim desse processo ocorreu há 1,6 mil anos, depois de uma catastrófica diminuição da população humana na região.

Na África Central ocidental existem evidências arqueológicas de fornos usados para trabalhar o ferro que datam de 650 AC. Esta atividade deve ter tido um sério impacto na floresta pois requeria a extração de madeira para a produção do carvão usado no derretimento do ferro. O desaparecimento das populações humanas em partes dessa região no século V resultou no abandono das áreas alteradas e em um extensivo processo de regeneração da floresta. Hoje, em algumas áreas consideras como de ‘florestas virgens’, ainda é possível observar a regeneração secundária da floresta.

Nas florestas tropicais da região Indo-Malaia existem evidências pré-históricas ainda mais antigas. Dados arqueológicos e paleobotânicos sugerem que a agricultura – incluindo o cultivo de banana – se estabeleceu em Papua-Nova Guiné há cerca de 7 mil anos e que florestas tropicais na Tailândia eram manejadas desde 8 mil anos atrás. Nas ilhas Salomão, a população de Nova Geórgia era, em 1800, o dobro da atual, indicando que as florestas contemporâneas aparentemente intocadas dessa ilha talvez tenham sido formadas por regeneração natural nos últimos 150 anos, depois do declínio da população e a emigração dos habitantes das regiões costeiras. A grande riqueza de espécies secundárias encontrada nas florestas primárias da ilha dá suporte adicional a essa teoria.

Além do interesse histórico nas florestas tropicais e como os humanos as alteraram, os estudos arqueológicos, paleocológicos e paleobotânicos tem importantes implicações para a conservação das florestas. Seus resultados sugerem que não é mais aceitável acreditar que as alterações na paisagem causadas por atividades humanas ancestrais eram muito limitadas e que por isso não podem ser comparadas com as alterações humanas causadas no presente. Esse ponto de vista é reforçado pelo fato da principal forma de destruição das florestas tropicais na atualidade ainda ser a derrubada e a queima da floresta para a prática da agricultura, uma atividade praticada pelo homem desde tempos pré-históricos. Embora a taxa e a extensão da destruição florestal contemporânea seja muito maior, em muitos casos o processo de perda é comparável ao que acontecia em tempos pré-históricos.

Em muitos exemplos pré-históricos, a alteração da paisagem foi seguida pela regeneração da floresta, indicando que os ecossistemas tropicais não são tão frágeis como sempre são retratados. Na verdade eles são muito resilientes. Abandonadas por um longo período, as florestas quase sempre irão se regenerar e os dados paleoecológicos permitem fazer uma estimativa realística do tempo necessário para isso acontecer. Esses dados também permitem avaliar quantitativamente a composição da floresta antes e depois da alteração, fornecendo informações detalhadas sobre o que está faltando ou o que foi adicionado à floresta. E essas informações são cruciais para o manejo e a conservação no longo prazo de áreas desmatadas que vierem a ser incluídas em planos de recuperação ambiental.

Os autores concluem o artigo afirmando que estratégias baseadas nesse princípio já foram usadas com sucesso na conservação de florestas temperadas, mas ainda precisam ser aplicadas de forma sistemática em algumas das mais diversas e ameaçadas florestas do planeta – as florestas tropicais.

Para saber mais:

Glaser B, Haumaier L, Guggenberger G, Zech W. 2001. The Terra Preta phenomenon: a model forsustainable agriculture in the humid tropics. Naturwissenschaften 88: 37–41.

Heckenberger, MJ; Kuikuro, A; Kuikuro, UT; Russell, JC; Schmidt, M; Fausto, C; Franchetto, B. 2003. Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland? Science 301: 1710-1714.

White LJT. 2001. The African rain forest: climate and vegetation. In: W Webber, LJT White, A Vedder, N Naughton-Treves (Eds.): African Rain Forest Ecology and Conservation. Yale University Press, New Haven, CT, pp. 3–29.

Denham TP et al. 2003. Origins of agriculture at Kuk Swamp in the highlands of New Guinea. Science 301:189–193. 

Foster DR. 2002. Insights from historical geography to ecology and conservation: lessons fromthe New England landscape. J. Biogeography 29:1269–1275.


Willis, KJ; Gillson, L.; Brncic, TM. 2004. How"Virgin" Is Virgin Rainforest? V.304, n.5669, abril 2004.

Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, Rio Branco, Acre, em 10/07/2012

27 novembro 2016

A OCUPAÇÃO DO VALE RIO DO ACRE E A GÊNESE DE RIO BRANCO, CAPITAL DO ACRE

Excerpt da Dissertação de Mestrado “A evolução urbana de Rio Branco (AC)”, de autoria de Ary Pinheiro Leite*

A história da origem e expansão da cidade de Rio Branco está intrinsecamente ligada aos ciclos econômico da extração da borracha nos séculos XIX e XX que contribuíram com o forte processo de ocupação desta cidade amazônica, consequência da migração nordestina à procura da borracha.

Com a descoberta da vulcanização da borracha, com a invenção do pneumático e a fabricação de automóveis em série a partir de 1890, houve um aumento significativo do uso da industrialização da borracha e consequentemente um aumento considerável da sua cotação no mercado internacional. Com isso o aproveitamento industrial nos Estados Unidos e na Europa fez com que na Amazônia todo o interesse se voltasse à extração da borracha, consagrando-se assim o seringal - baseado nas figuras do seringalista (senhor dos seringais) e do seringueiro - como unidade produtiva fundamental à economia amazonense.

Nesse contexto, pelos fins de 1882, penetraram o rio Acre os migrantes cearenses irmãos Leite, Manuel Damasceno Girão e Neutel Maia. Os irmãos Leite resolveram se instalar no local, onde fundam a sede do Seringal Bagaço. Manuel Damasceno prossegue rio acima e na foz do rio Xapuri funda o seringal com o mesmo nome. Por sua vez, entre o seringal Bagaço e o seringal Xapury, Neutel Maia, em 28 de dezembro de 1882, funda o seringal “Empreza” na margem esquerda do rio Acre - onde atualmente se localiza a cidade de Rio Branco – que se transforma em um importante porto e entreposto comercial e, com o fim da Revolução Acreana, se torna sede provisória da Prefeitura Departamental do Alto Acre.

Neste primeiro período que compreende desde a fundação até 1908, a história urbana de Rio Branco foi marcada por três principais características apontadas pelo historiador e presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil (Neves, 2007). A primeira diz respeito à transformação do seringal Volta da “Empreza” no povoado denominado “Villa” Rio Branco. A segunda é que foi exatamente nesta época que Rio Branco alcançou a condição de liderança política e econômica do Acre, o que lhe valeria posteriormente a condição de capital. Finalmente, a terceira característica fundamental da cidade nascente é que neste período o povoado da Volta da “Empreza” – “Villa” Rio Branco – esteve restrito a uma estreita faixa de terra na margem direita do rio Acre.

A gênese da cidade de Rio Branco e o seringal “Empreza”.

O potencial econômico da região acreana, voltada à extração da borracha, promoveu um intenso fluxo migratório nordestino impulsionado pela ilusão de enriquecimento fácil e alimentado por incentivos governamentais para ocupação desta região. Com isso a região foi gradativamente ocupada:

a) por nordestinos, que através do apossamento de terras, de grandes dimensões visavam investir em seringais e explorar a riqueza extrativista da região – os seringalistas;

b) pelos nordestinos seringueiros que extraíam para os seringalistas a borracha, ou seja, a riqueza.

Neste contexto surge a figura do cearense Neutel Maia que em fins de 1882 funda o seringal “Empreza” e ali desenvolve um processo, no que diz respeito à formação socioeconômica da época, concretizando a transformação gradativa do seringal em povoado, ou seja, em porto livre para gentes e mercadorias que circulavam num dos mais ricos rios acreanos durante o primeiro ciclo da borracha (1870-1912).

Ia terminando o ano de 1882. O vapor Apihy subia o rio com esforço para suas máquinas e seus homens. Não havia paradeiro certo. O grupo de pioneiros estava entrando em território ainda indomado. Região de índios que há milênios percorriam praias e barrancos na difícil lida de sobreviver em meio à selva imensa. Tudo era novidade então, apesar da paisagem parecer sempre a mesma. Matas que se debruçavam sobre as margens do rio como que querendo invadir até mesmo o canal caudaloso de águas barrentas. Um combate colossal onde o rio reagia todos os anos, no tempo das águas abundantes do inverno amazônico e cheio invadia as matas de suas margens, alargando seus domínios, destruindo barrancos e removendo enormes porções de terra que um dia seriam lançadas ao Oceano, muitas milhas dali distante. Os lideres da expedição tentavam vencer a monotonia das voltas do rio para permanecer atentos e identificar sinais favoráveis à exploração. Procuravam, principalmente, sinais das árvores mais cobiçadas da Amazônia: as seringueiras que generosamente ofertavam seu leite branco para enriquecer a multidão de nordestinos que começava a perseguir um futuro melhor e mais farto.

Identificar terras ricas em seringueiras era, portanto, o principal objetivo de todos ali embarcados. Havia apenas três dias que o vapor Apihy tinha ancorado nas margens daquele rio desconhecido para passar o dia de natal. Nesse mesmo local uma parte do grupo, chefiada pelos irmãos Leite, decidiu se estabelecer e abrir um Seringal chamado Apihy, em referência ao vapor que os havia trazido até ali, mas que depois se tornou conhecido como Bagaço. A bem da verdade, quase todas as terras cortadas pelo rio Acre eram muito ricas em seringueiras. Fazia tão pouca diferença estar aqui ou ali que os sinais para a escolha de um lugar para se estabelecer podiam ser completamente lógicos ou mesmo bastante subjetivos. Como saber, então, o que atraiu a atenção de Neutel Maia e seus companheiros para aquela volta pronunciada do rio, apenas seis horas acima do Bagaço? Talvez tenha sido a presença de um bom porto para atracar os vapores. Talvez tenha sido o estirão que revelava terras baixas em sua margem direita e terras altas à sua esquerda numa excelente composição para o desenvolvimento de diferentes atividades econômicas. Ou talvez tenha sido mesmo a presença de uma grossa e ereta arvore bem a cavaleiro da curva do rio, perfeita para amarrar com segurança os cabos das embarcações e inexplicavelmente bela. Como saber? Pois foi ali, no dia 28 de dezembro (parece) de 1882, exatamente aos pés da imponente Gameleira que Neutel Maia resolveu fundar sua Empreza. Enquanto isso, o restante dos pioneiros embarcados no vapor Apihy e comandados por Raimundo Girão seguiu subindo o rio até a confluência do rio Xapuri onde acabaram por se estabelecer. Acompanhado de familiares - como Silvestre, seu irmão, Juvêncio, Anísio, Teófilo, Henrique - e outros companheiros, como o português Guilhermino Bastos, Neutel Maia construiu a sede do Seringal Empreza dando início a sua exploração (Neves, 2007).

Ao chegar à região desejada, o aventureiro Neutel Maia apossou-se de terras localizadas à margem esquerda do rio Acre e ali ergueu um barracão, que seria a futura sede de seu seringal -“Empreza” - porém, logo em seguida, a sede foi transferida para a margem direita do rio, pois esta nova localização facilitava o transporte de gado boliviano para o seringal, agora denominado Volta da “Empreza”. A partir daí, um aglomerado espontâneo foi formado, seguindo o curso natural do rio, isto devido à facilidade do escoamento de toda a produção gomífera da região, do que se o povoado estivesse disposto, de forma perpendicular ao curso do rio. O Seringal “Empreza” dispunha-se na margem esquerda do rio Acre, enquanto o Volta da “Empreza”, na sua margem oposta. O nome deste último está intimamente ligado a hidrografia do Rio que neste ponto, reflete-se sobre si mesmo, formando um grande meandro cujos extremos ficam a curta distancia entre si (Silva, 1986).

As relações comerciais que Neutel Maia detinha com pecuaristas bolivianos, num período em que a economia da borracha gerava bastante lucro para os seringalistas da região, eram bem vindas visto que a carne bovina boliviana, mais especificamente da região que atualmente compreende a região do Beni, era bastante valorizada na época. Além do mais, ir caçar na mata roubava dos seringueiros um precioso tempo para a extração da goma nas estradas de seringa e também os seringueiros eram obrigados a se contentar com o charque que vinha do sul do Brasil, ou da Argentina, portanto, era necessário garantir um regular abastecimento de carne fresca para os seringais. Exatamente o que Neutel Maia conseguiu ao negociar com bolivianos que traziam por varadouros o gado desde os campos ao sul do rio Beni até o seringal Volta da “Empreza”, onde, em clarões abertos na mata, eram soltos para a engorda para que depois fossem abastecer os seringais acreanos.

Ao perceber que a atividade comercial constituía em uma atividade rentável, o seringalista fundou, em 1884, a primeira casa comercial do seringal Volta da “Empreza”, chamada de N. Maia & Cia para atender aos vapores, aos pequenos seringais e realizar intermediação do gado boliviano para o abastecimento da região. Com isso, espontaneamente, Volta da “Empreza” se diferenciou, assim como “Xapury”, de todos os outros seringais da região, se tornando um povoado a partir da atividade comercial do seu porto. Enquanto os demais se caracterizavam pelo monopólio comercial do barracão controlado pelo seringalista, Volta da Empresa, ao contrário, se tornou uma área livre para o estabelecimento de diversos comerciantes, um porto seguro para os regatões sírio-libaneses, um lugar de trabalho para uma grande variedade de profissionais - desde advogados, médicos, barbeiros, fotógrafos, jogadores, artistas, até prostitutas que eram importadas da Europa - que também almejava enriquecer com o “ouro negro” sem ter que se aventurar nas isoladas estradas de seringa.

Por isso, ao iniciar a última década do século XIX, o seringal Boca do Acre, Volta da “Empreza”, no médio rio, e o “Xapury”, no alto rio Acre, eram movimentados portos onde os vapores podiam se abastecer de lenha, borracha e mercadorias vindas das casas comercias dos seringais e seguir transportando as pélas de borracha para Belém e Manaus, de onde eram exportadas para a Europa e Estados Unidos. Nesse período, o povoado “Empreza” constituía urbanisticamente uma área restrita à margem direita do rio Acre no qual residências e estabelecimentos comerciais estavam dispostos paralelamente ao curso do rio.

Aproximando-se do fim da década de 1890 e inicio da década de 1900, o povoado “Empreza” foi palco de batalhas da Revolução Acreana liderada por Plácido de Castro. Por constituir uma região estratégica, localizada entre o povoado de “Xapury” e a cidade erguida pelas tropas bolivianas, Puerto Alonso, Empreza passou a ser alvo das tropas bolivianas, vista ao apoio político de Neutel Maia ao governo boliviano devido aos interesses comerciais entre eles.

15 de outubro de 1902. Fazia 11 dias desde que começaram as lutas na Volta da Empresa. Agora, não se tratava mais de simples emboscadas nos varadouros e barrancos do Acre. Dessa vez era guerra de verdade. Os militares bolivianos haviam derrotado, pouco menos de um mês antes, os mal armados e mal treinados seringueiros que, comandados por Plácido de Castro, se constituíam ainda num arremedo de exército. Com isso, a Volta da Empresa (Rio Branco) se tornou domínio boliviano e junto com Puerto Alonso (Porto Acre) passara a se constituir numa de suas praças fortes.

Era preciso reagir logo uma vez que a notícia da derrota havia se espalhado rapidamente pelos rios acreanos e poderia levar seringalistas e seringueiros a desmobilização, pondo fim à Revolução. Por isso, o comando revolucionário do exército acreano, reunindo cerca de trezentos homens, decidiu atacar o inimigo ainda no dia 05 de outubro. A inferioridade numérica dos bolivianos, que não passavam de 180, era compensada pela presença de extensas trincheiras e pelo alambrado que protegia o acampamento principal boliviano. Isso tornou a luta muito penosa. Os acreanos não podiam atacar diretamente as fortificações, sob pena de serem fragorosamente derrotados. A única forma de conquistaras trincheiras inimigas seria escavando trincheiras que em zigue-zague, lentamente se aproximavam das posições bolivianas.

Foram dias terríveis para ambos os lados em luta. Os mortos que tombavam nas trincheiras não podiam ser removidos por causa das balas que a todo o momento cortavam o ar pesado do campo de batalha. Logo a decomposição dos corpos tornou a permanência dentro das trincheiras, meio alagadas pela chuva, insuportável.

Porém, a cada dia a vitória acreana ficava mais evidente. O grande temor boliviano era de que o boato que circulava nas linhas de combate fosse verdadeiro. Dizia-se que os acreanos, cujas posições estavam a apenas seis metros da ultima linha de trincheiras bolivianas estavam prestes a executar o ataque final, onde não utilizariam armas de fogo, mas tão somente armas brancas. E não havia boliviano que não conhecesse a terrível fama dos punhais dos cearenses, que eram manejados com extrema destreza e, em tempos de guerra, crueldade.

Diante disso tudo, no dia 15 de outubro, o Coronel Rozendo Rojas, comandante das forças bolivianas finalmente se decidiu pela rendição. Assim, a velha Volta da Empresa, hoje Rio Branco, voltou a pertencer aos acreanos e a primeira grande vitória do exército revolucionário encheu de esperança o coração daqueles homens que somente queriam o direito de ser o que eram... brasileiros” (Neves, 2007).

Assim em 1903 se deu inicio a uma ocupação militar, através da necessidade da criação de um quartel pelo Gen. Olímpio da Silveira, localizado distante do centro do povoado, rio acima, onde acampou o 15º Batalhão de Infantaria do Exército.

Durante a ocupação militar brasileira, em 1903, Empreza foi escolhida para receber as tropas federais. Porém, o 15º Batalhão de Infantaria não podia ficar na Volta da Empreza, já que a proximidade com o povoado poderia trazer inúmeros problemas com a população. Por isso, o acampamento deste destacamento militar foi feito na área em que hoje está situado o Bairro 15.

Logo no inicio do ano de 1904 foi criado o Território Federal do Acre, dividido em três prefeituras departamentais: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. Para sede da Prefeitura Departamental do Alto Acre foi escolhido o povoado de Empreza, que poucos meses depois foi tornado oficialmente Villa Rio Branco (em homenagem ao Barão de Rio Branco) (Neves, 2007).

Logo após a criação do Território Federal do Acre em 1904 e a elevação à categoria de vila, o povoado Empreza, agora então Villa Rio Branco, já possuía a configuração de um primeiro ordenamento espacial urbano, refletido na organização social com bairros diferenciados: o bairro do Comércio, formado pelo primeiro arruamento onde se estabeleceram hotéis, restaurantes e casas comerciais, construídos com madeiras que era abundante na região; outra pequena área residencial de trabalhadores que ocupavam terras da volta do rio Acre, denominado Canudos; um pequeno bairro de trabalhadores na extensão da única rua da cidade em direção ao igarapé da Judia, formado por precárias casas de palha, denominado bairro África, por abrigar os negros habitantes da cidade; e por ultimo, o bairro 15, nascido a partir do acampamento do 15º Batalhão de Infantaria do Exercito, que atraiu pequenos comerciantes constituindo um novo arruamento também a margem do rio. Assim, neste primeiro período de formação do núcleo urbano da cidade de Rio Branco pode-se perceber a consolidação de um espaço diferenciado em relação aos seringais da região.

O período posterior do processo de expansão urbana de Rio Branco se dá a partir de 1909. Neste período da historia da cidade possui alguns marcos fundamentais de diferentes naturezas, seja no que diz respeito aos seus aspectos econômicos devido ao fim do ciclo da borracha a partir de 1913, seja em relação ao seu papel político, no qual Rio Branco se tornou capital do Território a partir de 1920 e seja no que se refere a ampliação de sua malha urbana pela incorporação de uma grande área de terra da margem esquerda do rio Acre, a partir de 1909.

*Ary Pinheiro Leite, filho do falecido jornalista José Chalub Leite, apresentou sua dissertação de mestrado “A evolução urbana de Rio Branco (AC): de seringal a capital” na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC como requisito para obtenção de título de Mestre em Geografia.

Aos interessados, a íntegra da dissertação pode ser acessada aqui.

26 novembro 2016

A ORIGEM DA PUPUNHA DOMESTICADA

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Dentre as mais de 550 espécies de palmeiras nativas das Américas do Sul, Central e do Norte, apenas a pupunha (Bactris gasipaes) é considerada como espécie completamente domesticada. O açaí-de-touceira, atualmente amplamente cultivado na Amazônia, ainda está em estágio inicial de domesticação.

Conceitualmente, a domesticação de uma planta consiste em um longo processo de seleção conduzido pelo homem com o objetivo de adaptar a planta para suprir suas necessidades de alimentos, materiais de construção, medicamentos e outros produtos. Por essa razão, geralmente as plantas domesticadas são geneticamente distintas de seus progenitores selvagens e, na maioria das vezes, totalmente dependentes do homem para sua sobrevivência, não conseguindo se reproduzir na natureza sem a intervenção humana. Isso explica o fato de roçados cultivados com culturas perenes, como café, abacate e mamão, geralmente não prosperarem quando deixados sem os cuidados básicos de podas e limpezas do terreno onde são cultivados.

O processo de domesticação e disseminação do cultivo da pupunha foi realizado por indígenas sul-americanos muito antes da chegada dos primeiros europeus. Quando isto aconteceu, a espécie já se encontrava distribuída por toda a Amazônia, norte da América do Sul e parte da América Central. Os frutos, que podem ser usados na alimentação humana e de animais domésticos, foram a principal razão para a domesticação da espécie. Somente nos últimos 30 anos é que seu cultivo foi expandido para a costa atlântica brasileira, especialmente para a produção de palmito, que rivaliza em qualidade com o palmito extraído de algumas espécies de açaí na Amazônia e da palmeira Jussara, na Mata Atlântica. Esse interesse comercial fez com que a espécie tenha atingido um status de cultivo industrial.

Apesar da sua importância econômica, até recentemente existiam discordâncias quanto à classificação botânica da pupunha. Ocorre que muitas plantas cultivadas de pupunha, com variações no tamanho e na cor dos frutos, foram descritas como espécies ou variedades distintas. Da mesma forma, algumas plantas morfologicamente similares à pupunha cultivada, mas que cresciam espontaneamente na floresta também foram descritas como espécies distintas. Até o famoso botânico alemão Martius contribui para a confusão ao criar o gênero Guilielma para batizar plantas de pupunha cultivada que ele havia encontrado no Maranhão nos idos de 1824.

A confusão quanto ao correto nome científico da pupunha foi resolvida em duas etapas. A primeira, em 1991, quando o pesquisador americano Roger Sanders fez um estudo filogenético e comprovou que o gênero Guilielma proposto por Martius não diferia do gênero Bactris, que havia sido proposto em 1777. Posteriormente, em 2000, o pesquisador inglês Andrew Henderson fez uma revisão taxonômica do gênero Bactris e propôs que o nome científico mais apropriado para as plantas cultivadas de pupunha seria Bactris gasipaes variedade gasipaes. O nome das plantas selvagens morfologicamente similares às cultivadas passou a ser Bactris gasipaes variedade chichagui.

Entretanto, ainda pairam algumas dúvidas sobre como ocorreu a domesticação da pupunha e algumas perguntas ainda não estão completamente respondidas. Qual ou quais os ancestrais selvagens foram usados pelos indígenas para desenvolver a pupunha domesticada? Isso foi feito de forma isolada em uma única região ou ocorreu de forma simultânea em diferentes localidades na América do Sul e Central?  

Para alguns pesquisadores, a domesticação ocorreu uma única vez em algum lugar do sudoeste da Amazônia, em uma região que compreende parte do Acre, e regiões adjacentes da Amazônia boliviana e peruana. Para outros esse evento único ocorreu no noroeste da Amazônia colombiana. Finalmente, uma hipótese completamente diferente advoga que a domesticação ocorreu mais ou menos simultaneamente em diversas localidades na América do Sul e na América Central.

Estudos filogenéticos que realizamos em meados da década de 90 indicam que sob o ponto de vista anatômico e morfológico pelo menos uma espécie de pupunha selvagem, Bactris dahlgreniana, amplamente distribuída no sudoeste da Amazônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará, é estreitamente relacionada com as plantas cultivadas, sugerindo que estas últimas podem ter sido selecionadas a partir da primeira.

Dados históricos apoiam o sudoeste da Amazônia como o centro de domesticação da pupunha. O botânico suíço Jacques Huber, então funcionário do Museu Goeldi e amplo conhecedor da Amazônia, já havia encontrado a pupunha cultivada e seus parentes selvagens quando visitou o alto rio Solimões, no Brasil e regiões adjacentes no Peru. Quando, por volta de 1904, ele encontrou as mesmas plantas ao longo do rio Purus, se convenceu de que a pupunha selvagem, que ele batizou de Guilielma microcarpa, conhecida pelos nativos como ‘pupunha brava’, era a mais provável ancestral da pupunha cultivada.

O botânico brasileiro Barbosa Rodrigues, ao visitar a região da Chapada dos Guimarães por volta de 1900, encontrou uma espécie de pupunha selvagem em matas de galeria locais, mas não observou a pupunha cultivada, que conhecia de sua viagem ao Pará, realizada por volta de 1870. Como não havia observado pupunha selvagem no Pará, ele propôs que os indígenas que habitavam as cabeceiras dos rios Xingu e Tapajós provavelmente domesticaram a pupunha e levaram sementes da mesma para o baixo Amazonas. Análises genéticas realizadas nos últimos anos apoiam a hipótese de dois eventos de domesticação ocorridos no sudoeste da Amazônia, coincidindo com as proposições de Jacques Huber e Barbosa Rodrigues.

Por hora, existe quase um consenso no meio acadêmico de que a pupunha brava, cujo nome científico mudou de Guilielma microcarpa para Bactris dahlgreniana, é a espécie com maiores chances de ter dado origem à pupunha cultivada. Inclusive seu nome popular deriva do fato da mesma ser em quase tudo idêntica à pupunha cultivada, com exceção dos frutos, que são muito menores e não tem valor comercial. Se a pupunha brava for, no futuro, confirmada como a ancestral da pupunha cultivada, os indígenas responsáveis por esse processo merecem nossa admiração. Afinal, eles partiram de uma espécie cujos frutos mediam menos de 2 cm de diâmetro e desenvolveram variedades cultivadas com frutos medindo até 8 cm de diâmetro. Uma façanha e tanto considerando que o processo foi feito de forma intuitiva.

Crédito das fotos: Evandro Ferreira
(1) Pupunha cultivada nas cercanias de Conceição do Araguaia, Pará.
(2) Comparação entre frutos de pupunha cultivada (maiores) e selvagem (menores) encontrados nas cercanias da cidade de Parauapebas, Pará.
(3) Diversidade de frutos de pupunha cultivada à venda no mercado Ver-o-Peso em Belém, Pará.
(4) Comparação entre frutos de pupunha cultivada (maiores) e selvagem (menores) encontrados nas cercanias da cidade de Parauapebas, Pará.

25 novembro 2016

BIOPIRATARIA, CONHECIMENTO TRADICIONAL, PESQUISA CIENTÍFICA E JUSTIÇA: UMA QUESTÃO MAL RESOLVIDA

Evandro Ferreira
Editor do Blog Ambiente Acreano

Para quem vive na Amazônia a palavra biopirataria é sinônimo de ‘roubo’, geralmente por parte de um estrangeiro, de recursos genéticos ou de conhecimentos tradicionais de comunidades locais com o fim de se obter vantagens financeiras. E o melhor exemplo de biopirataria praticada na Amazônia foi o contrabando pelos ingleses de sementes de seringueiras da Amazônia para cultivo em suas colônias asiáticas. Sob o ponto de vista acadêmico, entretanto, a definição de biopirataria é mais elaborada e envolve a retirada, sem anuência prévia para repartição de benefícios, de plantas, animais ou conhecimentos tradicionais detidos por comunidades nativas para se obter vantagens econômicas em outros locais.

O reconhecimento da biopirataria como algo condenável ocorreu na Convenção da Diversidade Biológica (CDB), realizada em paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em junho de 1992. A CDB entrou em vigor em dezembro de 1993 com a ratificação de 168 países e desde então a soberania nacional sobre a biodiversidade contida no território de cada país passou a ser reconhecida oficialmente. Antes dela, se considerava que ocorreram apenas ‘intercâmbios’ praticados por governantes e indivíduos e que a biodiversidade era patrimônio da humanidade. Com a ratificação da CDB, os países signatários reconheceram o status quo da distribuição de plantas agrícolas, ornamentais, ervas daninhas, animais de criação, e até mesmo as pragas e doenças que acometem esses organismos.

A entrada em vigor da CDB praticamente remeteu a biopirataria ao ostracismo visto que na atualidade a maioria das plantas e animais com potencial econômico já foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil. Como em um passe de mágica, a biopirataria deixou de ter importância no atual contexto econômico nacional e global, ficando relegada a um ou outro caso de comunidades indígenas que vez por outra apelam para a justiça reparar direitos sobre conhecimentos tradicionais supostamente usurpados.

E mesmo assim algumas decisões não tem sido favoráveis, como foi o caso da recente sentença da justiça federal sobre a alegada biopirataria do conhecimento tradicional que os índios Ashaninkas do vale do Juruá alegavam ter sobre o uso da palmeira murmuru para a elaboração de produtos cosméticos.

Na ação os indígenas tentaram obter compensações financeiras do empresário que comprava os frutos da palmeira para extrair gordura vegetal, da empresa que comprava e distribuía a gordura para indústrias no Brasil e no exterior, e de uma conhecida indústria brasileira que usa a gordura do murmuru como matéria-prima para elaborar diversos produtos cosméticos. A negativa da justiça em reconhecer que ocorreu biopirataria no caso do murmuru se baseou no fato de publicações nacionais e internacionais, datadas desde a década de 20, conterem descrições das propriedades e composição do murmuru, com indicações de seu uso para a elaboração de sabonetes e xampus.

Tecnicamente a decisão da justiça foi correta, mas não se pode negar que, com certeza absoluta, foram comunidades indígenas, brasileiras ou estrangeiras, que descreveram aos autores das publicações citadas as propriedades e possibilidades de uso do murmuru. Provavelmente elas também levaram os pesquisadores para conhecer as plantas in loco, demonstraram as formas de uso e doaram frutos e outras partes da palmeira para que os ‘brancos’ pudessem voltar aos seus laboratórios e comprovassem o que os indígenas já conheciam há muitos anos. O que queremos deixar claro é que sem a ajuda de um conhecedor dos poderes e da localização geográfica das plantas nas florestas, a possibilidade de um pesquisador descobrir princípios ativos de grande potencial dentre estas plantas é quase nula.

A publicação dos resultados dos trabalhos de laboratório, usada pela justiça para denegar aos indígenas seu direito sobre o uso do murmuru para a elaboração de produtos cosméticos, era inevitável, pois publicar faz parte da rotina e obrigação desses brancos curiosos, conhecidos no mundo civilizado como pesquisadores. Uma pena que as comunidades indígenas – alheias ao poder da escrita – não puderam escrever, em períodos pré-colombianos, suas enciclopédias de conhecimentos culturais e naturais sobre as florestas em que viviam.

A formalização do conhecimento tradicional sobre as plantas do novo mundo é fato antigo e remonta às primeiras expedições de naturalistas a partir de 1700. Financiados pela nobreza e capitalistas europeus, os naturalistas não percorreram ‘florestas impenetráveis e selvagens’ das Américas apenas em busca da aventura e do desconhecido. Os interesses econômicos, científicos e culturais foram decisivos para as viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira, Langsdorff, Martius, Bates, Humboldt, Ruiz e Pavón e tantos outros. Estes naturalistas e dezenas de pesquisadores que os seguiram posteriormente ‘descobriram’ e publicaram de forma sistemática as informações sobre usos de plantas e animais detidos por comunidades nativas das regiões que visitaram. Os livros que publicaram são a prova disso e para mostrar que não tinham inventado o que escreveram, a maioria deles indica o nome das tribos indígenas e as localidades onde viviam.

O precedente aberto pela recente decisão da justiça federal no Acre é perigoso, pois sugere que informações publicadas em livros e revistas são de mais valia que o conhecimento oral, passado de geração a geração. Por esse princípio, ‘acima de qualquer outro argumento, vale o que está escrito’.

A CDB confere direitos aos países e exorta os mesmos a garantir que o conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual para que as comunidades tradicionais, detentoras desses conhecimentos, possam participar da repartição de benefícios que poderão ser eventualmente gerados. Aparentemente, este incentivo deu início a uma nova corrida em busca de plantas e animais cujas utilidades para a humanidade são de grande valia para o avanço científico e econômico. Agora é possível fazer pesquisas nesse campo sem medo de praticar a condenável ‘biopirataria’. Infelizmente as coisas não estão caminhando nessa direção. Muito pelo contrário. As perspectivas não são das melhores.

Em primeiro lugar, para realizar o trabalho é preciso obter licenças e autorizações e isso exige uma paciência infinita, é extremamente burocrático e, em alguns casos, oneroso. Geralmente as aprovações nem sempre saem a tempo, pois a linha temporal da burocracia nunca está alinhada com o calendário dos indispensáveis trabalhos de campo. É importante diferenciar os pesquisadores envolvidos nesse tipo de trabalho. Os botânicos e etnobotânicos fazem o trabalho de campo, enquanto os químicos e os bioquímicos desenvolvem produtos em laboratórios. Os que sofrem para obter as licenças são os primeiros, responsáveis pelo estudo das plantas no campo e pela obtenção com os moradores locais das informações sobre o potencial das plantas e animais.

Em um segundo momento, os afortunados que conseguirem coletar os dados terão a difícil missão de publicar os mesmos sem prejudicar os fornecedores das informações – as comunidades ou pessoas detentoras dos conhecimentos tradicionais – e impedir que aproveitadores façam uso indevido das mesmas. É um dilema ético. Ao publicar as informações sobre o potencial medicinal de uma ou várias plantas eles tornam a informação de domínio público. E nesta condição, um terceiro pesquisador, sabendo do nome científico da planta, pode obtê-la em uma reserva particular, no Brasil ou no exterior, e então patentear o processo de isolamento do princípio ativo e eventualmente desenvolver um novo produto, ganhando assim um lucro monetário.

Assim, a culpa pela eventual falta de benefício para as comunidades que fornecerem informações iniciais sobre o potencial de plantas e animais não poderá recair sobre o pesquisador de campo. Publicar é uma exigência para a sua ascensão profissional, pois só assim ele ganha o reconhecimento que espera pela sua atuação. Se não publicar, não ganhará reconhecimento como cientista.

Como resolver esse dilema? Será que estamos vivenciando o ocaso das pesquisas sobre o conhecimento tradicional que as comunidades nativas detêm sobre plantas e animais de utilidade para a humanidade?


Credito da imagem: Dr. Richard Schultes, considerado o pai da Etnobotânica moderna (Wikipedia)

24 novembro 2016

LIMITAÇÕES PARA O USO DA PARATAXONOMIA EM INVENTÁRIOS DA BIODIVERSIDADE AMAZÔNICA*

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Alguns estudos recentes avaliaram a integração do uso do conhecimento de comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade e questionaram a utilidade da parataxonomia, ou seja, a identificação de espécies biológicas por pessoas que não receberam treinamento formal em taxonomia e sistemática. 

No Acre os parataxonomistas são conhecidos popularmente como ‘mateiros’ e sua atuação mais destacada ocorre nos inventários florestais usados para a elaboração de planos de exploração manejada de madeireira. Uma das razões para o uso indiscriminado de parataxonomistas em inventários de biodiversidade é a quantidade limitada de taxonomistas formais e o fato da taxonomia descritiva estar perdendo prestígio e financiamento nas últimas décadas. 

Hoje, o foco dos investimentos em pesquisas no Brasil está voltado para aquelas de cunho mais tecnológico-industrial ou, quando envolvem a área de ciências biológicas, áreas temáticas mais pontuais dirigidas a um produto, animal ou planta específico. O resultado disso é que na atualidade é muito difícil os taxonomistas conseguirem recursos para realizar coletas aleatórias de amostras de plantas e animais de uma determinada região, mesmo aquelas reconhecidas como de alta biodiversidade. E isto tem acontecido em um contexto de incremento expressivo na quantidade de recursos disponíveis para pesquisa no Brasil nas últimas décadas. 

Outro aspecto que tem induzido o uso de parataxonomistas na realização dos inventários de recursos que estão ou serão explorados na Amazônia é a tendência observada nos últimos anos de ‘empoderamento’ do manejo de recursos florestais pelos proprietários de áreas na Amazônia.

Alguns críticos do uso de parataxonomistas na realização de inventários ressaltam dois aspectos importantes. O primeiro é a possibilidade de erros na classificação dos organismos tendo em vista que os parataxonomistas raramente têm possibilidades de recorrer a coleções biológicas para tirar dúvidas sobre as identificações realizadas. Dependendo do grau de treinamento ou conhecimento do parataxonomista, diferenças morfológicas sutis (como a cor da flor e do fruto), importantes para a distinção de algumas espécies, podem ser relegadas e espécies distintas terminam por ser classificadas como uma só. Da mesma forma, uma única espécie que apresente variações morfológicas visíveis, mas que muitas vezes não são determinantes para a sua correta identificação científica (porte da planta, tamanho de frutos e folhas, por exemplo), levam alguns parataxonomistas a classificar plantas de uma única espécie como espécies distintas.

O segundo aspecto alvo dos críticos do uso indiscriminado de parataxonomistas em inventários é a forma como eles dão nomes aos organismos, sem observar o sistema formal de classificação que usa o binômio gênero e espécie. Em geral, a maioria dos parataxonomistas aplica um nome popular aos organismos, que pode variar em função da linguagem usada (nome indígena, de seringueiros, migrantes assentados de projetos de colonização), do seu nível de treinamento e da tradição do local de origem do parataxonomista. A consequência é que os inventários de biodiversidade realizados sem a supervisão de um taxonomista formal quase sempre super ou sub estimam a quantidade de organismos contabilizados.

Esses tipos de erros são mais preocupantes quando os inventários visam a exploração da biodiversidade, como acontece no caso da exploração madeireira. Um mesmo nome popular usado para identificar diferentes espécies pode resultar, no caso da venda de madeira, no envio ao comprador de um produto que ele não pretendia adquirir. Da mesma forma, o uso de vários nomes populares para uma mesma espécie poderá resultar, durante a exploração florestal, na sub exploração do recurso, prejudicando o dono da área em exploração.

Em 2007 realizamos, em conjunto com Christopher Baraloto (INRA, França), Cara Rockwell (Universidade da Flórida, USA) e Francisco Walthier (CTA), um estudo para avaliar o uso de nomes populares na classificação de plantas lenhosas manejadas em florestas acreanas. Os resultados foram preocupantes. Foram identificados 384 nomes populares aplicados a 310 espécies diferentes de plantas. Desses 384 nomes, 50% eram aplicados a uma única espécie, quase a metade (43%) era usada em conjunto com outro nome para classificar uma única espécie e 11% representavam mais de uma espécie. Quando a avaliação das espécies encontradas no Acre foi expandida para os estados do Amazonas e Pará, a quantidade de nomes populares saltou para 740, sendo que mais de 90% das espécies eram conhecidas por mais de um nome popular.

Com base nos resultados do estudo, observou-se que o nível de acerto ou correspondência entre os nomes populares usados por parataxonomistas e os nomes científicos corretos das plantas lenhosas exploradas no Acre foi de apenas 50%. Os erros que acontecem ocorrem no campo e no escritório. Os erros no campo, cometidos por parataxonomistas, decorrem da existência de características morfológicas similares presentes em várias espécies ou do uso indiscriminado de diferentes nomes populares para identificar uma única espécie. Muitas vezes esses nomes são sinônimos, como nos casos de ‘garapeira’ e ‘cumaru-cetim’, aplicados para a espécie Apuleia leiocarpa. Outra situação frequente é o uso do mesmo nome popular para identificar diferentes espécies.

A taxonomia formal também tem sua parcela de culpa porque tem sido incapaz de resolver de forma satisfatória a correta classificação de algumas espécies de plantas comuns em toda a Amazônia. Elas são conhecidas como espécies-complexos e podem incluir novas espécies e seus nomes científicos atuais poderão mudar em futuro breve. Em nosso estudo destacamos os casos do Abiu-Maparajuba, Angelim, Catuaba-Quaruba, Copaíba, Cumaru-ferro, Jutaí, Maçaranduba, Sucupira e Tauarí-Corrimboque.

Os erros mais graves, entretanto, parecem estar sendo cometidos durante a conversão, no escritório, dos nomes vulgares em científicos. E tudo em decorrência do uso sem regras, por parte dos parataxonomistas, de nomes populares de plantas. A situação só piora quando entram em cena parataxonomistas que migraram ou foram treinados em outras regiões do Brasil. 

Para os responsáveis pela elaboração dos planos de manejo, a busca do nome científico correto das plantas identificadas pelos parataxonomistas é um verdadeiro ‘tiro no escuro’. Sem amostras botânicas das plantas que serão exploradas, eles não podem realizar a identificação em herbários e terminam apelando para pesquisas e buscas na internete pelo nome científico que corresponda aos nomes populares adotados pelos parataxonomistas que realizaram o inventário no campo.

Os erros e a falta de precisão por parte de parataxonomistas com pouca experiência durante a realização de inventários podem contribuir para confusões no mercado consumidor, especialmente o de produtos madeireiros, bem como afetar a sustentabilidade da exploração de algumas espécies. É chegada a hora de dar um basta nesta situação. No Acre existem pessoas capazes de contribuir para eliminar esse problema. Incluo-me entre elas e estou à disposição para ajudar no que for possível.

Para saber mais:
Christopher Baraloto; Evandro Ferreira; Cara Rockwell and Francisco Walthier. 2007. Limitations and Applications of Parataxonomy for Community ForestManagement in Southwestern Amazonia. Ethnobotany Research & Applications 5: 77-84.

*Artigo originalmente publicado no jornal 'A Gazeta' em 22/10/2013.