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05 setembro 2020

MUDANÇAS CLIMÁTICAS FAVORECERÃO A FREQUÊNCIA E A INTENSIDADE DE SURTOS DE LEPTOSPIROSE EM RIO BRANCO*

Evandro Ferreira
Ambiente Acreano

 

A leptospirose, causada por uma bactéria do gênero Leptospira sp., é uma doença febril aguda que afeta mais frequentemente o fígado e os rins, e que pode resultar em febre, dor de cabeça, dores musculares, náuseas e vômitos. Quando não corretamente diagnosticada e tratada ela pode se agravar e causar a falência múltipla dos órgãos. Sua letalidade pode chegar a 20% das pessoas atingidas.

A bactéria causadora da leptospirose pode se hospedar em uma grande variedade de animais silvestres e domésticos. Apesar do rato marrom (Rattus norvegicus) ser frequentemente citado como o principal hospedeiro da doença, ela também pode se manifestar em bois, porcos, cavalos, cabras, ovelhas e cães, e deles ser transmitida ao homem.

O clima, o ambiente tropical e a infraestrutura de numerosas cidades da Amazônia ocidental brasileira, incluindo a cidade de Rio Branco, favorecem sobremaneira a disseminação da leptospirose. A bactéria causadora desta doença, cuja proliferação é favorecida pelas condições inadequadas de saneamento e pela alta ocorrência de roedores infectados, se concentra sobre solo durante os períodos mais secos do ano e tende a ser espalhada quando da ocorrência de chuvas e cheios de rios e outros cursos de águas presentes nas áreas urbanas.

As mudanças climáticas em curso, visíveis em nossa cidade pela maior frequência de cheias anuais do rio Acre, são, portanto, um fator que deveria ser motivo de preocupação para as autoridades, pois a intensidade e a frequência dos surtos epidêmicos da doença estão associadas com a ocorrência destas cheias.

Um estudo realizado em Rio Branco por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), publicado em março passado, mostra que a situação em nossa cidade é extremamente preocupante.

A pesquisa analisou a incidência mensal de leptospirose na população residente no município de Rio Branco entre 2008 e 2013. Segundo o censo de 2010, a população local era de aproximadamente 336 mil habitantes, dos quais mais de 92% vivia em área urbana. Como se sabe, a cidade é cortada pelo rio Acre e anualmente, durante o período de maior intensidade das chuvas (janeiro a março), acontecem transbordamentos do rio que atingem grandes áreas da mesma, causando, durante os eventos mais acentuados, o desabrigo de milhares de pessoas.

Para o estudo, os dados sobre a ocorrência da doença foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e as incidências foram analisadas quanto a sua evolução temporal, distribuição em distintas faixas etárias, relação com as médias mensais de variáveis climáticas regionais (número de dias com precipitação no mês, média mensal da precipitação, médias mensais das temperaturas máxima, média compensada e mínima e média mensal da umidade relativa compensada) e oscilações mensais do nível do rio Acre.

Os resultados do estudo revelaram que entre 2008 e 2013 ocorreram 779 casos de leptospirose no município de Rio Branco, com forte tendência de ascendência, passando de 13,4 casos/100 mil habitantes em 2010 para 122,3 casos em 2013. Os números de 2013 indicam uma incidência entre 10 a 60 vezes maior que a média do Brasil. E o crescimento do número de casos foi geométrico a partir de 2011, quando foram registrados 30,6 casos/100 mil habitantes, mais que dobrando para 71,6 em 2012 e 122,3 casos em 2013.

A incidência média mensal de leptospirose mostrou forte aumento no período mais chuvoso dos anos estudados, ou seja, entre outubro e abril, quando a média de ocorrência passou de 3,9 casos/100 mil hab. no mês de outubro, para 8,1 casos/100 mil hab. em março. Na estação seca a maior média foi em maio (2,3 casos) e a menor em julho (1,4 casos).

A faixa etária mais atingida pela doença foi a de indivíduos com idade entre 20 e 39 anos, com incidências médias mensais de 49,8 casos/100 mil hab. Crianças com menos de 1 ano e na faixa etária de 1 a 4 anos foram as que apresentaram a menores incidências médias mensais: 2,6 casos/100 mil hab. e 2,0 casos/100 mil, respectivamente. Idosos com mais de 80 anos foram a terceira faixa etária menos atingida: 10,5 casos/100 mil hab.

Em relação às condições climáticas, o estudo revelou que em Rio Branco a quantidade de dias com precipitação no mês e a média mensal do nível do rio podem interferir na ocorrência da leptospirose, causando aumentos de 4 e 7%, respectivamente, na incidência da doença. Os autores sugerem que essas variáveis podem representar indicadores para a predição de tendências na ocorrência dessa doença.

Para eles, as perspectivas das mudanças climáticas globais podem levar à exacerbação da vulnerabilidade e quadros epidemiológicos bastante preocupantes. Com a intensificação e aumento na frequência dos eventos climáticos e ambientais extremos e modelos climáticos projetados para a Região Amazônica que apontam para grandes aumentos de temperatura, pode haver um favorecimento do prolongamento da sobrevivência das bactérias no ambiente, ampliação dos habitat e aumento do número de espécies de animais atuantes como reservatório da bactéria causadora da leptospirose.

Em conjunto, essas mudanças poderão favorecer uma maior distribuição e exacerbação na ocorrência não apenas da leptospirose, mas de outras doenças de veiculação hídrica, especialmente em ambientes urbanos com infraestrutura deficiente de saneamento, como são os casos da grande maioria das cidades da região amazônica.

Os autores concluem o estudo afirmando que o “maior conhecimento sobre a distribuição temporal dos casos, sua relação com o clima e ambiente regionais, somado à detecção do alto potencial de transmissão da doença em Rio Branco, pode contribuir para o planejamento e as tomadas de decisão visando à prevenção e mitigação dos impactos climáticos e ambientais na saúde da população da capital do Acre”.

 

Para saber mais:

Juliana L. Duarte e Leandro L. Giatti. 2019. Incidência da leptospirose em uma capital da Amazônia Ocidental brasileira e sua relação com a variabilidade climática e ambiental, entre os anosde 2008 e 2013. Epidemiologia e Serviços de Saúde, vol. 28, n° 1, p. e2017224.

 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 18/06/2019. 

04 setembro 2020

CAPIVARAS: HERBÍVOROS MANSOS E “PERIGOSOS”

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

As capivaras (nome científico: Hydrochoerus hydrochaeris), os maiores roedores do mundo, são mamíferos nativos da América do Sul, onde se encontram amplamente distribuídas. Seus parentes mais próximos são o Preá ou Porquinho-da-Índia (Cavia aperea), animal domesticado inexistente em sua forma selvagem, e o Mocó (Kerodon rupestris), espécie selvagem parecida com o coelho, porém de maior tamanho e com orelhas e cauda muito pequenos, endêmico da região da Caatinga no Nordeste do Brasil.

As capivaras estão distribuídas por todo o Brasil, exceto na Caatinga, sendo abundantes em regiões ricas em água, como o Pantanal (são animais semi-aquáticos). Na Amazônia elas são menos abundantes nas áreas de terra firme, mas podem ser encontradas próximo de lugares alagados.

Elas são animais sociais que podem viver em grupos com até 100 indivíduos, mas geralmente os grupos contem entre 10 e 20 animais. Apesar de não domesticadas, são consideradas animais mansos e permitem a aproximação, o toque e mesmo a alimentação diretamente da mão de humanos. Por essa razão, não é incomum encontra-las em áreas urbanas. Em Rio Branco, dentro e no entorno do Campus da Universidade Federal do Acre (UFAC), numerosas capivaras vagam livremente, constituindo-se em uma atração para os frequentadores.

Apesar da abundância e da mansidão desses animais, sua caça e o consumo de sua carne não são comuns no Brasil. Em países, como a Venezuela e a Colômbia, por exemplo, o consumo da carne é muito popular e uma tradição durante a quaresma e a semana santa. Por esta razão, a criação em cativeiro da espécie tanto para a venda da carne como da pele são práticas comuns.

E o que faz o consumo da carne de capivara não ser popular no Brasil? Pode ser que seja o sabor muito forte, o cheiro ou mesmo a cor da carne. Mas a principal razão reside em um processo de “demonização” deste animal patrocinado pela imprensa.

Todas as vezes que são reportados casos de febre maculosa no Brasil, invariavelmente são indicados como a “fonte” da doença os carrapatos que vivem naturalmente na pele das capivaras.

A febre maculosa é uma doença infecciosa de gravidade variável que pode causar febre aguda e apresentar elevada taxa de letalidade se não for tratada corretamente. Ela é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii ou outras bactérias do mesmo gênero. Se o carrapato pica seres humanos, estes podem desenvolver a doença.  

Entretanto, sabe-se que o carrapato-estrela (hematófago) também pode ser encontrado em animais de grande porte (bois e cavalos), cães, aves domésticas e roedores. Se o carrapato presente nestes outros animais estiver infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii e picar seres humanos, é grande a possibilidade de os mesmos desenvolverem a doença. Mas a “fama” faz com que a capivara seja quase sempre considerada a culpada.

Um “trend” mais recente envolvendo a capivara é seu suposto papel como importante transmissor de agentes etiológicos zoonóticos diz respeito à infecção por Salmonella.

A Salmonella é uma bactéria que pode causar dois tipos de doença, dependendo do sorotipo: salmonelose não tifóide e febre tifoide. Os sintomas da salmonelose não tifóide são semelhantes a outros problemas gastrointestinais e incluem diarreia, vômitos, febre moderada dor abdominal, cansaço e perda de apetite. Não é letal e os afetados podem se recuperar em até sete dias. A febre tifoide é uma forma mais grave e tem uma taxa de mortalidade maior.

A forma mais comum da transmissão desta doença é a ingestão de alimentos contaminados e maus hábitos de higiene. Estima-se que a Salmonella atinge mais de 93 milhões de pessoas/ano no mundo causando mais de 155 mil mortes. Apesar de a maioria dos casos da doença ser decorrente da ingestão de alimentos contaminados, uma porção bem pequena dos casos é derivada da infecção via contato de humanos com as fezes de animais portadores da bactéria.

É isso. A transmissão a partir de animais selvagens “exige” o contato com as fezes do animal. E a capivara, mais uma vez, é apontada como uma fonte potencial para esses casos.

Mesmo considerando que na literatura científica apenas dois casos de Salmonella tenham sido reportados para capivaras, pesquisadores da UFAC resolveram investigar o possível perigo que as capivaras da zona rural e urbana do Estado representam como repositórios de Salmonella que eventualmente poderia infectar a população local.

Para isso eles capturaram 54 capivaras assintomáticas para doenças intestinais de duas áreas urbanas e duas áreas rurais do Acre e as mantiveram em cativeiro por três a quatro dias para amostragem. Três amostras de fezes desses animais foram colhidas durante a permanência dos mesmos em cativeiro.

O resultado do estudo revelou que oito (5%) das 162 amostras examinadas por cultura bacteriana foram positivas para Salmonella spp., enquanto quatro (7%) das 54 amostras examinadas pelo método PCR foram positivas. Dos oito animais positivos em cultura, cinco eram oriundos de área urbana e três de área rural. Nas amostras positivas pelo método PCR apenas um animal positivo era de área urbana e quatro da área rural.

Ao final os autores consideraram que, considerando os resultados dos dois métodos de diagnóstico empregados, apenas um animal foi considerado positivo. E concluíram que as capivaras tem potencial como reservatórios e disseminadores de Salmonella na área urbana e rural do Acre.

Vejam que nenhum caso de transmissão de Salmonella de capivaras para humanos foi reportado para o Acre. Mas a fama da mesma foi suficiente para justificar o estudo.

Diante disso, só posso dizer – se é que entendem o sentido – aos leitores de A Gazeta: “Cuidado, apesar de mansas as capivaras são um perigo...”

 

Para saber mais: Farikoski, I. et al. 2019. As capivaras urbanas e rurais (Hydrochoerus hydrochaeris) como reservatório de Salmonella no oeste da Amazônia, Brasil. Pesquisa Veterinária Brasileira, vol. 39, n° 1, p. 66-69. 

03 setembro 2020

DOMESTICAÇÃO DA AMAZÔNIA ANTES DA CHEGADA DOS EUROPEUS*

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

 

É um fato. Até hoje a maioria das pessoas acredita que as florestas na Amazônia são formações naturais que foram pouco alteradas pelos povos indígenas que as habitavam por ocasião dos primeiros contatos com colonizadores europeus a partir do início do século XVI.

Essa impressão foi reforçada pelos relatos muitas vezes exagerados e confusos dos primeiros exploradores espanhóis que, a partir de 1500, com a descoberta da foz do rio Amazonas por Vicente Pinzón, realizaram 24 expedições de penetrações na região.

Francisco de Orellana, em 1542, e Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre, entre 1560 e 1561, percorreram totalmente o rio Solimões-Amazonas. Eles buscavam o reino “El Dorado”, um paraíso de ouro, e o “País da Canela”, onde supostamente abundava uma planta tão valiosa quanto a “Canela da Índia”, uma especiaria que conquistara consumidores europeus fazia poucos anos.

As descrições fantasiosas de Gaspar de Carvajal, padre dominicano que acompanhou a expedição de Orellana, reforçaram a ideia da Amazônia como uma floresta impenetrável, intocada, misteriosa e defendida por guerreiras ferozes (as Amazonas), que abrigava não apenas o reino de “El Dorado”, mas também o “País das Esmeraldas” e a elusiva – e nunca encontrada – cidade amazônica Inca de Paititi.

Nas últimas décadas, entretanto, evidências arqueológicas, botânicas, ecológicas, antropológicas, genéticas e históricas tem demonstrado que os indígenas da Amazônia foram e são como outros povos primitivos mundo afora que construíram (e continuam a construir) seus espaços de vida dentro de ecossistemas locais, modificando-os para que eles atendam aos seus interesses de sobrevivência.

A necessidade de moldar o ambiente às suas necessidades levou à domesticação de espécies de plantas e animais indispensáveis à sobrevivência dessas sociedades. Com o tempo, e o acúmulo de conhecimentos ecológicos que viabilizaram o manejo de ecossistemas do entorno de onde viviam, foi possível a domesticação de paisagens, ou seja, de áreas geográficas nas quais ocorrem interações entre os seres vivos e o meio ambiente e que antes da intervenção dos indígenas eram espacialmente heterogêneas.

Essa domesticação feita pelos indígenas consistia na retirada, por exemplo, de plantas úteis para a sua alimentação, medicina ou construções, diretamente do ambiente natural para cultivo nas redondezas de suas moradias. Foi assim com algumas espécies de plantas importantes para a sociedade moderna, como a mandioca, castanha do Brasil e pupunha.

No processo de domesticação levado a cabo pelos indígenas, prevaleceu a seleção de características genéticas que privilegiavam a obtenção de frutos maiores, com menor número de sementes ou sementes de menor tamanho, de árvores de porte mais baixo para facilitar a colheita, ou mesmo sem espinhos, como no caso da pupunha.

O pesquisador Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA, acredita que numerosas plantas da flora amazônica foram ou começaram a ser domesticadas há dez mil anos, ou seja, pouco depois da chegada do homem ao continente americano, que se presume ocorreu por volta de 12 mil anos atrás.

Essa crença está baseada em dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao crescente número de sítios arqueológicos indicadores de moradias de comunidades indígenas primitivas encontrados ao longo de quase todos os rios da região amazônica. Esses sítios apresentam um tipo único de solo conhecido como “terra preta de índio”, escuro, muito fértil e de origem antropogênica. Ou seja, que se formou pela intervenção humana via depósito de resíduos de fogueiras, lixeiras e mesmo sepultamentos. Essa terra fértil favorecia o cultivo recorrente de plantas anuais e perenes.

O segundo aspecto está relacionado à composição florística das florestas em volta desses sítios arqueológicos. Levantamento florísticos tem revelado que o percentual de plantas úteis para o homem nestas florestas é muito superior ao observado em regiões mais ermas, distantes das margens dos rios. Aqui também fica claro que a floresta foi modificada para aumentar a disponibilidade de recursos para os habitantes primitivos do entorno dos sítios arqueológicos.

Essa “domesticação” do ambiente produziu, na opinião dos arqueólogos, alterações em escala continental na paisagem amazônica e permitiu que a população indígena que habitava a região antes da chegada dos europeus atingisse, segundo algumas estimativas, entre oito e dez milhões de pessoas. Obviamente que a violência militar dos conquistadores europeus e, principalmente, as doenças trazidas por eles levaram a um rápido declínio dessa população indígena.

É importante ressaltar que ecólogos não concordam inteiramente com as teorias defendidas pelos arqueólogos sobre a forma de ocupação da Amazônia. Os arqueólogos defendem que indígenas primitivos modificaram a composição das florestas da região por meio do cultivo e manejo de determinadas espécies de plantas. A castanheira (Bertholletia excelsa), que pode viver mais de mil anos, é um bom exemplo, pois, além de ser frequentemente encontrada em sítios arqueológicos, apresenta uma distribuição em escala continental na Amazônia.

Como os frutos da castanheira são dispersos somente por humanos e pequenos roedores (cotias), a única explicação para a distribuição continental da mesma se deve aos humanos, mais precisamente às práticas de cultivo e manejo realizadas por populações indígenas que habitavam a região antes da chegada dos europeus.

O fato de humanos terem atuado para alterar no passado as florestas na Amazônia tem levado alguns pesquisadores a defender que as atuais florestas da região, em função da intervenção indígena pretérita, deveriam ser consideradas como patrimônio natural e cultural brasileiro e que sua derrubada significa não apenas a destruição de sua valiosa biodiversidade, mas também a perda definitiva deste patrimônio cultural.

 

Para saber mais: “The domestication of Amazonia before European conquest”, de autoria de Charles R. Clement e outros autores, publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society, Biological Sciences, vol. 282, n° 1812, agosto de 2015. 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 07/10/2019.

Ilustração: Francisco de Orellana's 1541 expedition down the Amazon River, American engraving, 1848. The Granger Collection, New York

02 setembro 2020

DESCONHECIMENTO E INCOMPREENSÃO PODEM RESULTAR EM PREJUÍZOS FINANCEIROS E AMBIENTAIS REAIS OU PRESUMIDOS*

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

 

Dez dias atrás o presidente Bolsonaro “partiu para cima” do INPE, a instituição governamental brasileira responsável por coletar, processar e divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia. Para o presidente, os dados divulgados pelo INPE são exagerados, incorretos e, da forma como são divulgados, prejudicam a “imagem” do Brasil perante o mundo.

A fala do presidente não se baseou em nenhum dado concreto. Nenhuma polêmica, denúncia ou acusação de manipulação de dados por parte do INPE foi ou tem sido levantada seja no meio acadêmico, seja no meio político.

É difícil contestar dados de desmatamento como os que o INPE divulga de forma sistemática desde os anos 80 baseados em análises de imagens de satélites feitas de forma automática por softwares desenvolvidos, em alguns casos, por pesquisadores de alto nível do próprio INPE.

Para fazer as estimativas de desmatamento na Amazônia, o INPE utiliza imagens produzidas por sensores instalados em satélites americanos da série Landsat. São satélites operados pela NASA e dedicados exclusivamente à observação dos recursos naturais do planeta. O primeiro deles foi lançado em 1972 (Landsat 1) e o mais recente (Landsat 8) em 2013.

O Landsat 8 passa sobre o mesmo ponto da região amazônica a cada 16 dias e seus sensores produzem uma faixa de imagem com largura de 185 km e resolução multiespectral de 30 metros. Na prática, ele pode ver com nitidez, a cada 16 dias, detalhes sobre aquela pequena área de 30 m² graças a softwares que processam as imagens revelando se a área contém floresta primária ou secundária (capoeira), se o local é ocupado por pastagens, cultivos, espelhos d´água ou se é terra nua sem cobertura vegetal viva (indicando desmatamento recente).

A prova da excelência do trabalho do INPE é o fato de os seus dados raramente terem sido contestados nos últimos 30 anos. E essa foi uma das razões para a instituição ter se firmado no mundo como uma ilha de excelência técnico-científica. E isso não foi adquirido da noite para o dia via importação de cérebros do estrangeiro. Pelo contrário. Foram feitos investimentos de milhões de reais na capacitação de seus pesquisadores - no Brasil e no exterior.

Levou tempo, mas valeu a pena. Hoje o INPE mantém, entre outros, programas de mestrado e doutorado nas áreas de Sensoriamento Remoto, Meteorologia, Geofísica Espacial, Astrofísica e Engenharia e Tecnologia Espacial. Isso se traduz na formação de massa crítica brasileira para continuar o trabalho no futuro. É a sustentabilidade da cultura de excelência criada pelo INPE.

E são os professores desses programas de pós-graduação de alto nível, com o auxílio de outros pesquisadores e técnicos do INPE, que trabalham no levantamento e na divulgação dos dados sobre o desmatamento na Amazônia.

Por isso não tem o menor cabimento sugerir que os dados publicados pelo INPE são manipulados, fraudados ou que, como querem muitos que hoje estão no poder, contém viés ideológico. Em ciências exatas a soma de 2 mais 2 será sempre 4. Não dá para mascarar o resultado.

Claro que pode haver discrepâncias aqui e ali. Mas nada que leve a erros grosseiros. Em 2016 o Governo do Acre contestou índices de desmatamento divulgados pelo INPE para o estado. O caso se referia a umas poucas áreas de lagos secos em Tarauacá contabilizadas como desmatamento. Em anos anteriores o levantamento do INPE havia contabilizado como desmatamento áreas onde a taboca (bambu) morreu naturalmente. Reclamação feita, índices corrigidos. Sem dramas e escândalos desnecessários.

O INPE é hoje referência mundial no assunto e deveria encher de orgulho nossas autoridades públicas, que hoje podem acessar, em base diária, como anda o desmatamento na Amazônia. O que mais os planejadores públicos de ações para combater os desmates ilegais que acontecem na região poderiam querer?

A crítica ao trabalho e dados divulgados pelo INPE por parte da Presidência da República é preocupante porque passa a impressão de que o combate ao desmatamento na Amazônia não será prioridade na atual administração. Espero estar enganado. Também espero que, para evitar episódios como esse, o presidente tenha no seu entorno assessores bem informados sobre a realidade do monitoramento e combate aos desmatamentos ilegais na Amazônia.

O assunto é delicado porque, como disse corretamente o presidente, a imagem do país pode ficar comprometida em caso de aumento exagerado do desmatamento da Amazônia. E muitos interesses estão em jogo caso a situação fuja do controle.

O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo, pode ter sua entrada em vigor adiada, conforme deixaram claro a França como a Alemanha, se o desmatamento na Amazônia aumentar exageradamente.

O Fundo Amazônia, que recebeu mais de R$ 3,4 bilhões de doações da Noruega e da Alemanha para financiar a conservação, preservação e desenvolvimento da Amazônia, está ameaçado por desavenças aparentemente ideológicas: enquanto os doadores estão satisfeitos e não vem razões para mudanças, o governo brasileiro gostaria, entre outras medidas, de usar as doações para indenizar invasores de áreas de conservação do país.

Esse clima de animosidade desnecessária criada pelo Governo Federal com países que colaboram efetivamente para as políticas de combate ao desmatamento na Amazônia pode resultar em prejuízos para o Acre, como, por exemplo, o cancelamento das doações feitas pela Alemanha aos programas ambientais do Acre. Entre 2013 e 2017 foram 25 milhões de Euros. Em 2017 um novo acordo de doação de mais 30 milhões de Euros.

Na precária situação econômica em que se encontra o país e o governo do Acre em especial, é preciso ter tato e jogo de cintura para desvincular a situação do Acre do contexto nacional. E isso é necessário. Afinal de contas, não é todo o dia que se encontram doadores tão generosos como a Alemanha tem sido com o Acre. 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 30/07/2019 

01 setembro 2020

SÃO OS INVESTIMENTOS E NÃO A RETÓRICA QUE AJUDAM NA RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS AMBIENTAIS*

Evandro FerreiraBlog Ambiente Acreano

No início da semana passada (terça-feira, 06/08/19), dados divulgados pelo sistema de alerta de desmatamento (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicaram que os alertas de derrubadas de floresta na Amazônia aumentaram 278% em julho de 2019, quando comparados com o mesmo mês do ano
passado. A área suspeita de ter sido devastada abrangeu 2.254,9 km², ante apenas 596,6 km² no mesmo período do ano passado.
Não foi coincidência, mas no final da semana (sábado, 10/08/19) a ministra alemã para o meio ambiente, Svenja Schulze, anunciou o “congelamento” de R$ 155 milhões que o seu ministério planejava repassar ao governo brasileiro para financiar projetos de proteção da floresta amazônica brasileira. Poderia ter sido pior, pois dos recursos disponibilizados pelo governo alemão para o Brasil utilizar no desenvolvimento sustentável e proteção da Amazônia, apenas aqueles administrados pelo Ministério do Meio Ambiente alemão foram congelados.
Vejam que esses recursos não são empréstimos. São doações. Entram no caixa do governo federal e são canalizados para um grande número de ações obrigatoriamente relacionadas com a proteção da floresta amazônica. Em troca, o que os alemães pedem ao governo brasileiro é o controle do desmatamento da região.
Para facilitar esse trabalho, parte do dinheiro doado é usado para estruturar os órgãos ambientais federais e estaduais de fiscalização e controle. Barcos, veículos, computadores e outros equipamentos são adquiridos com estas doações. Sob o ponto de vista orçamentário, é um alívio e tanto para o governo federal e as administrações estaduais contempladas.
O correto, diante da notícia da suspensão das doações, seria um reconhecimento de possíveis falhas e a negociação junto aos doadores para fazer com que elas voltassem a irrigar os orçamentos públicos profundamente afetados pelo atual aperto financeiro.
Mas não foi isso que aconteceu. Muito pelo contrário. No domingo (11/08/19), um dia depois do anúncio da suspensão dos recursos por parte do governo alemão, o presidente Bolsonaro afirmou textualmente que “a Alemanha vai deixar de comprar à prestação a Amazônia” e que “Pode fazer bom uso dessa grana, no Brasil não precisa disso”.
A realidade financeira enfrentada pelo país, entretanto, não parece sustentar as afirmações presidenciais.
Ontem (12/08/19) o Banco Central divulgou o Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), uma espécie de “prévia” do Produto Interno Bruto (PIB), sobre o desempenho da economia no 2° trimestre (abril a junho) e detectou retração de 0,13% em relação ao 1° trimestre (janeiro a março). O mesmo índice tinha recuado 0,2% na comparação entre o 1° trimestre de 2019 e o último trimestre de 2018. Com dois trimestres seguidos de tombo do PIB, o país entrou em “recessão técnica”.
Diante disso, está claro que a perspectiva de melhoria na arrecadação dos impostos que abastecem o orçamento do governo federal não é das melhores para este 2° semestre. Muito pelo contrário. Tudo indica que, em caso de aprofundamento da recessão, os cortes no orçamento do governo federal deverão se acentuar ainda mais.
No final deste mês de julho o governo já havia anunciado contingenciamentos adicionais de despesas da ordem de R$ 1,442 bilhão que atingiram vários ministérios, incluindo o do Meio Ambiente (MMA), que viu suspensos a execução de R$ 10,1 milhões.
Esse corte se soma ao que tinha sido feito em maio passado, quando o bloqueio de recursos do MMA tinha atingido R$ 244 milhões, equivalente a 29,7% dos R$ 821 milhões do orçamento anual alocados para o ministério gastar com investimentos e serviços em programas e ações ambientais no ano de 2019.
Sei que meu texto hoje está recheado de números e valores, mas eles servem para mostrar que a situação do país não é nada confortável no que concerne a investimentos em ações para a conservação, desenvolvimento e combate aos desmatamentos na região amazônica.
Assim, os tais R$ 155 milhões congelados pela Alemanha que o nosso presidente disse que o Brasil “não precisa” representam aproximadamente 61% do valor que foi contingenciado do orçamento do Ministério do Meio Ambiente nesse ano de 2019. Não dá para negar que é uma soma respeitável. Assim como não dá para afirmar que, na situação orçamentária atual, esses R$ 155 milhões são “dispensáveis”.
E se as ações do Ministério do Meio Ambiente estão seriamente comprometidas em função dos contingenciamentos orçamentários anunciados, o que dizer de outros ministérios cujas ações também focam a Amazônia? Não tenho condições de estimar numericamente o prejuízo, mas o impacto social, econômico e ambiental da ausência desses investimentos seguramente será muito elevado.
E a situação poderá ficar ainda pior se a previsão sobre o possível fim do Fundo Amazônia se concretizar. Este fundo, administrado pelo BNDES, tem por finalidade captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal brasileira.
Criado em 2008 e ativo desde 2009, até o presente momento o Fundo captou e investiu na Amazônia cerca de R$ 3,4 bilhões, sendo que desde 2010 quase 60% dos recursos foram investidos em instituições ligadas aos governos Federal, Estaduais e Municipais da região.
Os doadores – Noruega e Alemanha – estão satisfeitos com a forma de funcionamento do Fundo. Mas o governo federal tem outras ideias. Quer recursos, por exemplo, para indenizar invasores de unidades de conservação. Cedo ou tarde, como tudo indica, os doadores irão suspender os recursos e o Fundo certamente deixará de existir.
Isso é uma certeza. Ou alguém sabe de onde o governo federal vai tirar dinheiro para as atividades do Fundo se ele não tem sequer para garantir ao MMA pleno funcionamento neste ano de 2019?
*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 13/08/2019.