30 novembro 2016
Aquecimento
da Terra e mega-El Niño tornaram 2016 um dos anos mais secos da história na
floresta, causando incêndios extensos.
Por Karinna Matozinhos (Ipam/Envolverde)*
O ano de
2016 caminha para ser o mais quente já registrado. Enquanto isso, no Brasil, um
dos El Niño mais intensos das últimas décadas exacerbou a estação seca em boa
parte da na Amazônia.
Quando esses
dois quadros se juntaram ao uso inadequado do fogo nos últimos meses, vastos
quinhões da Amazônia arderam, com graves consequências para as populações, para
a economia e para a natureza.
Segundo o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a área queimada na região em
setembro chegou a 54,5 mil quilômetros quadrados, maior do que o Estado do Rio
– extensão pouco menor do que em setembro de 2015, contrariando previsões
iniciais de potencial recorde neste ano.
Nem por isso
há o que se comemorar: largas áreas de vegetação foram incendiadas. “Sabemos
que está ocorrendo o aumento da estação seca na Amazônia e uma alteração no
ciclo hidrológico, mas ainda não sabemos direito as causas”, diz o cientista
Paulo Artaxo, professor na Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro do
IPAM.
Estresse
De acordo
com dados da NASA (agência espacial norte-americana), o solo da floresta
amazônica está menos úmido em 2016 do que em 2005 e 2010, dois anos que também
registraram secas extremas².
A área
queimada no bioma aumentou 110% em 2015 em relação à área queimada em 2006,
segundo cálculo baseado em informações do Inpe. Enquanto isso, a área de corte
raso caiu 56%, ficando estacionada ao redor de 5.000 km2.
Em todo o
mundo, as regiões de floresta tropical têm aquecido em média 0,26°C por década
desde meados de 1970. “A Amazônia está sofrendo um processo de estresse hídrico
devido ao aumento de 1,5°C no último século”, explica Artaxo. “Ao ter um
ambiente com uma temperatura alta se aproximando de limiares, isso pode trazer
uma fragilidade maior para a região.”
Quando
diferentes forças – atividades humanas, como mudança no uso do solo e emissões
de CO2, mais fatores naturais, como El Niño – atuam sobre uma mesma região ao
mesmo tempo, pesquisas científicas combinadas a políticas públicas precisam ser
prioritárias.
“Políticas públicas
de longo prazo, monitoramento, presença do Estado e governabilidade estadual
são essenciais para definir os próximos rumos do ambiente e da população como
um todo”, diz o cientista. “Uma estratégia muito importante para o país é
melhorar o monitoramento ambiental dos processos que estão acontecendo na
Amazônia. Mudanças no uso do solo são só a primeira alteração ambiental numa
cadeia muito grande – é preciso monitorá-la completamente.”
* Edição: Cristina Amorim.
** Publicado originalmente no
site Ipam.
Fonte da foto: José Cruz/Agência Brasil.
29 novembro 2016
A CRIATIVIDADE DO ‘POVÃO’ NA HORA DE DAR NOME AOS FILHOS
Nomes como Kléberson, Richarlyson
e outros “son” refletiria o desejo de prover o filho de uma personalidade forte
e única e, ao mesmo tempo, evitar que ele seja um ‘zé qualquer’ ou um ‘joão-ninguém’.
O artigo “Geração on"
escrito por Roberto Pompeu de Toledo e publicado na revista VEJA em 2009
continua atualíssimo. Vale a pena ler de novo. Desfrutem da leitura do mesmo,
reproduzida abaixo.
“Geração
on"
A
seleção da coluna entrará em campo para o próximo compromisso com a seguinte
formação: Glédson; Joílson, Halisson, Acleisson e Richarlyson; Vanderson,
Kléberson, Glaydson e Taison; Wallyson e Keirrison. No banco de reservas
ficarão Wanderson (goleiro), Jadilson, Maylson, Leanderson, Cleverson e
Roberson. A seleção adversária, armada no três-cinco-dois, se apresentará com:
Weverton; Adailton, Heverton e Welton; Arilton, Cleiton, Éverton, Uelliton e
Neilton; Washington e Elton. Os reservas serão Dalton (goleiro), Erivelton,
Hamilton, Wellington, Hélton e Jailton.
Primeiro
aviso ao leitor incauto: os nomes são todos verdadeiros, de jogadores em
atividade no futebol brasileiro. Segundo aviso: se os mais distraídos ainda não
perceberam, o embate acima se dá entre os nomes terminados em "son"
contra os terminados em "ton". Nomes em "son" e
"ton" hoje abundam, nos gramados, como estrelas no céu.
Tempos
atrás, mais característicos eram os apelidos de duas sílabas, Pelé, Didi, Dida,
Pepe, Telê, alegres e infantis. Os terminados em "son" e
"ton", ao contrário, são nomes severos, que evocam chefes guerreiros.
Tanto eles se multiplicam que para escalar as seleções não foi preciso ir além
de um restrito universo. Na grande maioria, são de jogadores dos times da
primeira divisão do Campeonato Brasileiro, com apenas alguns poucos reforços –
afinal, Weverton, goleiro do Vila Nova, de Goiás, não merecia ficar de fora,
nem Acleisson, volante do Mirassol, clube do interior paulista.
A
questão é: por que a pesada preferência pelos nomes em "son" e
"ton"?
O
futebol não é um universo fechado. Ele espelha a sociedade brasileira. Mais
exatamente, espelha as camadas mais populares da sociedade. O que leva a
concluir que estamos diante de um fenômeno de massa: o povo brasileiro,
maciçamente, anda preferindo dar nomes em "son" e "ton" aos
filhos homens. Complexas e misteriosas são as razões pelas quais um nome, ou
uma classe de nomes, entra ou sai de moda. É tarefa para antropólogos e
sociólogos.
Modestamente,
enquanto se espera por mais doutas explicações, o que se pode é especular.
É de
supor, em primeiro lugar, que quem pespega no filho os nomes de Wallyson ou
Leanderson espera do interlocutor reação que vá além da indiferença. Afastemos
desde logo, no caso do "son", ter sido ele importado dos costumes
nórdicos, em que a terminação "son" (ou "sohn" –
"filho", em inglês, alemão e línguas afins) identifica o filho de
alguém de nome igual ao contido nas sílabas precedentes. É improvável que
Leanderson signifique "filho de Leander" ou que Wallyson signifique
"filho de Wally".
Parece
ser mais o caso de criações livres, movidas pelo gosto da invenção. Keirrison,
artilheiro do Palmeiras, contou à revista Veja São Paulo que deve seu nome à
preferência do pai pela letra K, combinada à admiração pelo beatle George
Harrison. Keirrison tem um irmão chamado Kimarrison, de novo com K, e dessa vez
homenagem do pai, roqueiro incorrigível, a Jim Morrison. Como Harrison e
Morrison viraram Keirrison e Kimarrison, isso fica por conta da peculiar
alquimia que rege a produção de nomes no Brasil.
Ao
lado do gosto da invenção, a queda pelo estrangeirismo é outro traço que se
adivinha nos pais dos "son" e dos "ton". São nomes que soam
estrangeiros. Por coincidência (ou não?), as terminações em "on",
tanto no inglês quanto no francês e no espanhol, correspondem ao "ão"
português. Entre outros milhares de exemplos, action, em inglês e francês, e
acción, em espanhol, dão em "ação" em português. Ora, o
"ão" é o som mais típico da língua portuguesa, terror dos
estrangeiros que o tentam imitar. Fugir do "ão", como se faz, mesmo
inconscientemente, quando se opta pelo "on" é negar a língua
portuguesa como nem São Pedro negou Jesus Cristo antes que o galo cantasse.
O
gosto da invenção, somado à queda pelo estrangeirismo, colabora para a hipótese
seguinte: a escolha dos nomes Kléberson ou Richarlyson, Welton ou Arilton,
trairia o desejo de, com o fermento de toques originais e estrangeiros, prover
o filho de uma personalidade forte e única. Não, ele não haverá de ser um zé
qualquer, nem um joão-ninguém.
A
ironia desta história é que, em contraponto à tendência pelos "son" e
"ton" nos estratos populares, nas classes altas vigora a tendência
oposta. Lá reinam os Josés e os Joões, Antônios e Franciscos como faziam
décadas não se via. Tal qual em outros campos, um Brasil vai para um lado, o
outro para a direção inversa.
* Artigo
originalmente publicado na revista VEJA, Edição 2101, de 25 de fevereiro de
2009.
28 novembro 2016
QUÃO VIRGEM É A FLORESTA VIRGEM?
Evandro
Ferreira
Blog
Ambiente Acreano
Nos
últimos dez anos um tema tem causado controvérsia no meio acadêmico. Alguns
cientistas defendem que as florestas tropicais não são tão virgens como se
pensa porque habitantes ancestrais já manejaram extensas áreas dessas
florestas, moldando-as para atender suas necessidades. Algumas espécies
consideradas nativas são reputadas por esses pesquisadores como intrusas. E uma
das mais suspeitas de ter sido introduzida em nossas florestas é a nossa
castanheira (Bertholletia excelsa).
Dentre
vários artigos acadêmicos que suportam essa linha de pensamento, vale a pena
conhecer um deles, publicado por K. J.Willis, L. Gillson e T. M. Brncic, da
Universidade de Oxford, na renomada revista Science em abril de 2004. Seu
título é bem instigante: “Quão virgem é a floresta virgem?”.
Segundo
os autores, dados arqueológicos e paleocológicos sugerem que as ‘florestas
virgens’ não são tão ‘virgens’ como se pensava anteriormente e passaram por
modificações substanciais. Nas três grandes regiões de florestas tropicais do
planeta localizadas na Amazônia, na bacia do rio Congo, na África, e na região
Indo-Malaia do Sudoeste Asiático, vários estudos sugerem que atividades humanas
pré-históricas foram mais extensivas do que se pensava anteriormente.
Na
Amazônia, os solos mais férteis são aqueles conhecidos como ‘terra preta de
índio’, formados desde 2,5 mil anos atrás via realização de queimadas e
atividades agrícolas, estimando-se em 50 mil hectares a área desses solos na
região. Evidências arqueológicas do alto rio Xingu indicam que vários
assentamentos humanos existiam naquela região entre os anos 1250 e 1600, cada
um deles ocupando 40 a 80 hectares e com densidade populacional de 6 e 12,5
pessoas/km². Eles integravam um complexo regional e sugerem que seus habitantes
promoveram um manejo e desenvolvimento intensivo da paisagem que resultou na
transformação de extensas áreas florestais em áreas agrícolas. O abandono da
região, depois de uma catastrófica diminuição da população entre os anos 1600 e
1700, resultou em um extensivo processo de reflorestamento natural. Por essa
razão, atualmente a região do alto Xingu abriga a maior mancha de floresta
contínua na periferia sul da Amazônia.
Dados arqueológicos e paleoecológicos também
revelam história similar na bacia do rio Congo, onde numerosos achados de
ferramentas de pedra, sementes de dendê, traços de carvão no subsolo,
resquícios de cultivos ancestrais de banana e cacos cerâmicos levaram os
pesquisadores a concluir que a maior parte daquela região, hoje coberta por uma
densa floresta, foi extensivamente habitada no passado. Parte da floresta foi
derrubada e a prática de agricultura data de cerca de 3 mil anos atrás. O fim
desse processo ocorreu há 1,6 mil anos, depois de uma catastrófica diminuição
da população humana na região.
Na
África Central ocidental existem evidências arqueológicas de fornos usados para
trabalhar o ferro que datam de 650 AC. Esta atividade deve ter tido um sério
impacto na floresta pois requeria a extração de madeira para a produção do
carvão usado no derretimento do ferro. O desaparecimento das populações humanas
em partes dessa região no século V resultou no abandono das áreas alteradas e
em um extensivo processo de regeneração da floresta. Hoje, em algumas áreas
consideras como de ‘florestas virgens’, ainda é possível observar a regeneração
secundária da floresta.

Além
do interesse histórico nas florestas tropicais e como os humanos as alteraram,
os estudos arqueológicos, paleocológicos e paleobotânicos tem importantes
implicações para a conservação das florestas. Seus resultados sugerem que não é
mais aceitável acreditar que as alterações na paisagem causadas por atividades
humanas ancestrais eram muito limitadas e que por isso não podem ser comparadas
com as alterações humanas causadas no presente. Esse ponto de vista é reforçado
pelo fato da principal forma de destruição das florestas tropicais na
atualidade ainda ser a derrubada e a queima da floresta para a prática da
agricultura, uma atividade praticada pelo homem desde tempos pré-históricos.
Embora a taxa e a extensão da destruição florestal contemporânea seja muito
maior, em muitos casos o processo de perda é comparável ao que acontecia em
tempos pré-históricos.
Em
muitos exemplos pré-históricos, a alteração da paisagem foi seguida pela
regeneração da floresta, indicando que os ecossistemas tropicais não são tão
frágeis como sempre são retratados. Na verdade eles são muito resilientes.
Abandonadas por um longo período, as florestas quase sempre irão se regenerar e
os dados paleoecológicos permitem fazer uma estimativa realística do tempo
necessário para isso acontecer. Esses dados também permitem avaliar
quantitativamente a composição da floresta antes e depois da alteração,
fornecendo informações detalhadas sobre o que está faltando ou o que foi adicionado
à floresta. E essas informações são cruciais para o manejo e a conservação no
longo prazo de áreas desmatadas que vierem a ser incluídas em planos de
recuperação ambiental.
Os
autores concluem o artigo afirmando que estratégias baseadas nesse princípio já
foram usadas com sucesso na conservação de florestas temperadas, mas ainda
precisam ser aplicadas de forma sistemática em algumas das mais diversas e
ameaçadas florestas do planeta – as florestas tropicais.
Para
saber mais:
Glaser B, Haumaier L,
Guggenberger G, Zech W. 2001. The Terra Preta phenomenon: a model forsustainable agriculture in the humid tropics. Naturwissenschaften 88: 37–41.
Heckenberger, MJ;
Kuikuro, A; Kuikuro, UT; Russell, JC; Schmidt, M; Fausto, C; Franchetto, B.
2003. Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland? Science 301:
1710-1714.
White LJT. 2001. The
African rain forest: climate and vegetation. In: W Webber, LJT White, A Vedder,
N Naughton-Treves (Eds.): African Rain Forest Ecology and Conservation. Yale
University Press, New Haven, CT, pp. 3–29.
Denham TP et al. 2003.
Origins of agriculture at Kuk Swamp in the highlands of New Guinea. Science
301:189–193.
Foster DR. 2002.
Insights from historical geography to ecology and conservation: lessons fromthe New England landscape. J. Biogeography 29:1269–1275.
Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, Rio Branco, Acre, em 10/07/2012
Willis, KJ; Gillson, L.; Brncic, TM. 2004. How"Virgin" Is Virgin Rainforest? V.304, n.5669, abril 2004.
Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, Rio Branco, Acre, em 10/07/2012
27 novembro 2016
A OCUPAÇÃO DO VALE RIO DO ACRE E A GÊNESE DE RIO BRANCO, CAPITAL DO ACRE
Excerpt
da Dissertação de Mestrado “A evolução urbana de Rio Branco (AC)”, de autoria
de Ary Pinheiro Leite*

Com
a descoberta da vulcanização da borracha, com a invenção do pneumático e a
fabricação de automóveis em série a partir de 1890, houve um aumento
significativo do uso da industrialização da borracha e consequentemente um
aumento considerável da sua cotação no mercado internacional. Com isso o
aproveitamento industrial nos Estados Unidos e na Europa fez com que na
Amazônia todo o interesse se voltasse à extração da borracha, consagrando-se
assim o seringal - baseado nas figuras do seringalista (senhor dos seringais) e
do seringueiro - como unidade produtiva fundamental à economia amazonense.
Nesse
contexto, pelos fins de 1882, penetraram o rio Acre os migrantes cearenses
irmãos Leite, Manuel Damasceno Girão e Neutel Maia. Os irmãos Leite resolveram
se instalar no local, onde fundam a sede do Seringal Bagaço. Manuel Damasceno
prossegue rio acima e na foz do rio Xapuri funda o seringal com o mesmo nome.
Por sua vez, entre o seringal Bagaço e o seringal Xapury, Neutel Maia, em 28 de
dezembro de 1882, funda o seringal “Empreza” na margem esquerda do rio Acre -
onde atualmente se localiza a cidade de Rio Branco – que se transforma em um
importante porto e entreposto comercial e, com o fim da Revolução Acreana, se
torna sede provisória da Prefeitura Departamental do Alto Acre.
Neste
primeiro período que compreende desde a fundação até 1908, a história urbana de
Rio Branco foi marcada por três principais características apontadas pelo
historiador e presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil
(Neves, 2007). A primeira diz respeito à transformação do seringal Volta da
“Empreza” no povoado denominado “Villa” Rio Branco. A segunda é que foi
exatamente nesta época que Rio Branco alcançou a condição de liderança política
e econômica do Acre, o que lhe valeria posteriormente a condição de capital.
Finalmente, a terceira característica fundamental da cidade nascente é que
neste período o povoado da Volta da “Empreza” – “Villa” Rio Branco – esteve
restrito a uma estreita faixa de terra na margem direita do rio Acre.
A
gênese da cidade de Rio Branco e o seringal “Empreza”.
O
potencial econômico da região acreana, voltada à extração da borracha, promoveu
um intenso fluxo migratório nordestino impulsionado pela ilusão de
enriquecimento fácil e alimentado por incentivos governamentais para ocupação
desta região. Com isso a região foi gradativamente ocupada:
a)
por nordestinos, que através do apossamento de terras, de grandes dimensões
visavam investir em seringais e explorar a riqueza extrativista da região – os
seringalistas;
b)
pelos nordestinos seringueiros que extraíam para os seringalistas a borracha,
ou seja, a riqueza.
Neste
contexto surge a figura do cearense Neutel Maia que em fins de 1882 funda o
seringal “Empreza” e ali desenvolve um processo, no que diz respeito à formação
socioeconômica da época, concretizando a transformação gradativa do seringal em
povoado, ou seja, em porto livre para gentes e mercadorias que circulavam num
dos mais ricos rios acreanos durante o primeiro ciclo da borracha (1870-1912).
Ia
terminando o ano de 1882. O vapor Apihy subia o rio com esforço para suas máquinas
e seus homens. Não havia paradeiro certo. O grupo de pioneiros estava entrando
em território ainda indomado. Região de índios que há milênios percorriam
praias e barrancos na difícil lida de sobreviver em meio à selva imensa. Tudo
era novidade então, apesar da paisagem parecer sempre a mesma. Matas que se
debruçavam sobre as margens do rio como que querendo invadir até mesmo o canal
caudaloso de águas barrentas. Um combate colossal onde o rio reagia todos os
anos, no tempo das águas abundantes do inverno amazônico e cheio invadia as
matas de suas margens, alargando seus domínios, destruindo barrancos e
removendo enormes porções de terra que um dia seriam lançadas ao Oceano, muitas
milhas dali distante. Os lideres da expedição tentavam vencer a monotonia das
voltas do rio para permanecer atentos e identificar sinais favoráveis à
exploração. Procuravam, principalmente, sinais das árvores mais cobiçadas da
Amazônia: as seringueiras que generosamente ofertavam seu leite branco para
enriquecer a multidão de nordestinos que começava a perseguir um futuro melhor
e mais farto.

Ao
chegar à região desejada, o aventureiro Neutel Maia apossou-se de terras localizadas
à margem esquerda do rio Acre e ali ergueu um barracão, que seria a futura sede
de seu seringal -“Empreza” - porém, logo em seguida, a sede foi transferida
para a margem direita do rio, pois esta nova localização facilitava o
transporte de gado boliviano para o seringal, agora denominado Volta da
“Empreza”. A partir daí, um aglomerado espontâneo foi formado, seguindo o curso
natural do rio, isto devido à facilidade do escoamento de toda a produção
gomífera da região, do que se o povoado estivesse disposto, de forma
perpendicular ao curso do rio. O Seringal “Empreza” dispunha-se na margem
esquerda do rio Acre, enquanto o Volta da “Empreza”, na sua margem oposta. O
nome deste último está intimamente ligado a hidrografia do Rio que neste ponto,
reflete-se sobre si mesmo, formando um grande meandro cujos extremos ficam a
curta distancia entre si (Silva, 1986).
As
relações comerciais que Neutel Maia detinha com pecuaristas bolivianos, num
período em que a economia da borracha gerava bastante lucro para os seringalistas
da região, eram bem vindas visto que a carne bovina boliviana, mais
especificamente da região que atualmente compreende a região do Beni, era
bastante valorizada na época. Além do mais, ir caçar na mata roubava dos
seringueiros um precioso tempo para a extração da goma nas estradas de seringa
e também os seringueiros eram obrigados a se contentar com o charque que vinha
do sul do Brasil, ou da Argentina, portanto, era necessário garantir um regular
abastecimento de carne fresca para os seringais. Exatamente o que Neutel Maia
conseguiu ao negociar com bolivianos que traziam por varadouros o gado desde os
campos ao sul do rio Beni até o seringal Volta da “Empreza”, onde, em clarões
abertos na mata, eram soltos para a engorda para que depois fossem abastecer os
seringais acreanos.
Ao
perceber que a atividade comercial constituía em uma atividade rentável, o
seringalista fundou, em 1884, a primeira casa comercial do seringal Volta da
“Empreza”, chamada de N. Maia & Cia para atender aos vapores, aos pequenos
seringais e realizar intermediação do gado boliviano para o abastecimento da
região. Com isso, espontaneamente, Volta da “Empreza” se diferenciou, assim
como “Xapury”, de todos os outros seringais da região, se tornando um povoado a
partir da atividade comercial do seu porto. Enquanto os demais se
caracterizavam pelo monopólio comercial do barracão controlado pelo
seringalista, Volta da Empresa, ao contrário, se tornou uma área livre para o
estabelecimento de diversos comerciantes, um porto seguro para os regatões
sírio-libaneses, um lugar de trabalho para uma grande variedade de
profissionais - desde advogados, médicos, barbeiros, fotógrafos, jogadores,
artistas, até prostitutas que eram importadas da Europa - que também almejava
enriquecer com o “ouro negro” sem ter que se aventurar nas isoladas estradas de
seringa.
Por
isso, ao iniciar a última década do século XIX, o seringal Boca do Acre, Volta
da “Empreza”, no médio rio, e o “Xapury”, no alto rio Acre, eram movimentados
portos onde os vapores podiam se abastecer de lenha, borracha e mercadorias
vindas das casas comercias dos seringais e seguir transportando as pélas de
borracha para Belém e Manaus, de onde eram exportadas para a Europa e Estados
Unidos. Nesse período, o povoado “Empreza” constituía urbanisticamente uma área
restrita à margem direita do rio Acre no qual residências e estabelecimentos
comerciais estavam dispostos paralelamente ao curso do rio.
Aproximando-se
do fim da década de 1890 e inicio da década de 1900, o povoado “Empreza” foi
palco de batalhas da Revolução Acreana liderada por Plácido de Castro. Por
constituir uma região estratégica, localizada entre o povoado de “Xapury” e a
cidade erguida pelas tropas bolivianas, Puerto Alonso, Empreza passou a ser
alvo das tropas bolivianas, vista ao apoio político de Neutel Maia ao governo
boliviano devido aos interesses comerciais entre eles.
15
de outubro de 1902. Fazia 11 dias desde que começaram as lutas na Volta da
Empresa. Agora, não se tratava mais de simples emboscadas nos varadouros e
barrancos do Acre. Dessa vez era guerra de verdade. Os militares bolivianos
haviam derrotado, pouco menos de um mês antes, os mal armados e mal treinados
seringueiros que, comandados por Plácido de Castro, se constituíam ainda num
arremedo de exército. Com isso, a Volta da Empresa (Rio Branco) se tornou
domínio boliviano e junto com Puerto Alonso (Porto Acre) passara a se
constituir numa de suas praças fortes.

Foram
dias terríveis para ambos os lados em luta. Os mortos que tombavam nas
trincheiras não podiam ser removidos por causa das balas que a todo o momento cortavam
o ar pesado do campo de batalha. Logo a decomposição dos corpos tornou a
permanência dentro das trincheiras, meio alagadas pela chuva, insuportável.
Porém,
a cada dia a vitória acreana ficava mais evidente. O grande temor boliviano era
de que o boato que circulava nas linhas de combate fosse verdadeiro. Dizia-se
que os acreanos, cujas posições estavam a apenas seis metros da ultima linha de
trincheiras bolivianas estavam prestes a executar o ataque final, onde não
utilizariam armas de fogo, mas tão somente armas brancas. E não havia boliviano
que não conhecesse a terrível fama dos punhais dos cearenses, que eram
manejados com extrema destreza e, em tempos de guerra, crueldade.
Diante
disso tudo, no dia 15 de outubro, o Coronel Rozendo Rojas, comandante das
forças bolivianas finalmente se decidiu pela rendição. Assim, a velha Volta da
Empresa, hoje Rio Branco, voltou a pertencer aos acreanos e a primeira grande
vitória do exército revolucionário encheu de esperança o coração daqueles
homens que somente queriam o direito de ser o que eram... brasileiros” (Neves,
2007).
Assim
em 1903 se deu inicio a uma ocupação militar, através da necessidade da criação
de um quartel pelo Gen. Olímpio da Silveira, localizado distante do centro do
povoado, rio acima, onde acampou o 15º Batalhão de Infantaria do Exército.
Durante
a ocupação militar brasileira, em 1903, Empreza foi escolhida para receber as
tropas federais. Porém, o 15º Batalhão de Infantaria não podia ficar na Volta
da Empreza, já que a proximidade com o povoado poderia trazer inúmeros
problemas com a população. Por isso, o acampamento deste destacamento militar
foi feito na área em que hoje está situado o Bairro 15.
Logo
no inicio do ano de 1904 foi criado o Território Federal do Acre, dividido em
três prefeituras departamentais: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. Para sede
da Prefeitura Departamental do Alto Acre foi escolhido o povoado de Empreza,
que poucos meses depois foi tornado oficialmente Villa Rio Branco (em homenagem
ao Barão de Rio Branco) (Neves, 2007).
Logo
após a criação do Território Federal do Acre em 1904 e a elevação à categoria
de vila, o povoado Empreza, agora então Villa Rio Branco, já possuía a
configuração de um primeiro ordenamento espacial urbano, refletido na
organização social com bairros diferenciados: o bairro do Comércio, formado
pelo primeiro arruamento onde se estabeleceram hotéis, restaurantes e casas
comerciais, construídos com madeiras que era abundante na região; outra pequena
área residencial de trabalhadores que ocupavam terras da volta do rio Acre,
denominado Canudos; um pequeno bairro de trabalhadores na extensão da única rua
da cidade em direção ao igarapé da Judia, formado por precárias casas de palha,
denominado bairro África, por abrigar os negros habitantes da cidade; e por
ultimo, o bairro 15, nascido a partir do acampamento do 15º Batalhão de
Infantaria do Exercito, que atraiu pequenos comerciantes constituindo um novo
arruamento também a margem do rio. Assim, neste primeiro período de formação do
núcleo urbano da cidade de Rio Branco pode-se perceber a consolidação de um
espaço diferenciado em relação aos seringais da região.
O
período posterior do processo de expansão urbana de Rio Branco se dá a partir de
1909. Neste período da historia da cidade possui alguns marcos fundamentais de
diferentes naturezas, seja no que diz respeito aos seus aspectos econômicos
devido ao fim do ciclo da borracha a partir de 1913, seja em relação ao seu
papel político, no qual Rio Branco se tornou capital do Território a partir de
1920 e seja no que se refere a ampliação de sua malha urbana pela incorporação
de uma grande área de terra da margem esquerda do rio Acre, a partir de 1909.
*Ary
Pinheiro Leite, filho do falecido jornalista José Chalub Leite, apresentou sua
dissertação de mestrado “A evolução urbana de Rio Branco (AC): de seringal a
capital” na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC como requisito para
obtenção de título de Mestre em Geografia.
Aos
interessados, a íntegra da dissertação pode ser acessada aqui.
26 novembro 2016
A ORIGEM DA PUPUNHA DOMESTICADA
Evandro
Ferreira
Blog
Ambiente Acreano

Conceitualmente,
a domesticação de uma planta consiste em um longo processo de seleção conduzido
pelo homem com o objetivo de adaptar a planta para suprir suas necessidades de
alimentos, materiais de construção, medicamentos e outros produtos. Por essa
razão, geralmente as plantas domesticadas são geneticamente distintas de seus
progenitores selvagens e, na maioria das vezes, totalmente dependentes do homem
para sua sobrevivência, não conseguindo se reproduzir na natureza sem a
intervenção humana. Isso explica o fato de roçados cultivados com culturas
perenes, como café, abacate e mamão, geralmente não prosperarem quando deixados
sem os cuidados básicos de podas e limpezas do terreno onde são cultivados.
O
processo de domesticação e disseminação do cultivo da pupunha foi realizado por
indígenas sul-americanos muito antes da chegada dos primeiros europeus. Quando
isto aconteceu, a espécie já se encontrava distribuída por toda a Amazônia,
norte da América do Sul e parte da América Central. Os frutos, que podem ser
usados na alimentação humana e de animais domésticos, foram a principal razão
para a domesticação da espécie. Somente nos últimos 30 anos é que seu cultivo
foi expandido para a costa atlântica brasileira, especialmente para a produção
de palmito, que rivaliza em qualidade com o palmito extraído de algumas
espécies de açaí na Amazônia e da palmeira Jussara, na Mata Atlântica. Esse
interesse comercial fez com que a espécie tenha atingido um status de cultivo
industrial.

A
confusão quanto ao correto nome científico da pupunha foi resolvida em duas
etapas. A primeira, em 1991, quando o pesquisador americano Roger Sanders fez
um estudo filogenético e comprovou que o gênero Guilielma proposto por Martius não diferia do gênero Bactris, que havia sido proposto em
1777. Posteriormente, em 2000, o pesquisador inglês Andrew Henderson fez uma
revisão taxonômica do gênero Bactris
e propôs que o nome científico mais apropriado para as plantas cultivadas de
pupunha seria Bactris gasipaes
variedade gasipaes. O nome das
plantas selvagens morfologicamente similares às cultivadas passou a ser Bactris gasipaes variedade chichagui.
Entretanto,
ainda pairam algumas dúvidas sobre como ocorreu a domesticação da pupunha e
algumas perguntas ainda não estão completamente respondidas. Qual ou quais os
ancestrais selvagens foram usados pelos indígenas para desenvolver a pupunha domesticada?
Isso foi feito de forma isolada em uma única região ou ocorreu de forma
simultânea em diferentes localidades na América do Sul e Central?

Estudos
filogenéticos que realizamos em meados da década de 90 indicam que sob o ponto
de vista anatômico e morfológico pelo menos uma espécie de pupunha selvagem, Bactris dahlgreniana, amplamente
distribuída no sudoeste da Amazônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará, é
estreitamente relacionada com as plantas cultivadas, sugerindo que estas
últimas podem ter sido selecionadas a partir da primeira.
Dados
históricos apoiam o sudoeste da Amazônia como o centro de domesticação da
pupunha. O botânico suíço Jacques Huber, então funcionário do Museu Goeldi e
amplo conhecedor da Amazônia, já havia encontrado a pupunha cultivada e seus
parentes selvagens quando visitou o alto rio Solimões, no Brasil e regiões
adjacentes no Peru. Quando, por volta de 1904, ele encontrou as mesmas plantas
ao longo do rio Purus, se convenceu de que a pupunha selvagem, que ele batizou
de Guilielma microcarpa, conhecida
pelos nativos como ‘pupunha brava’, era a mais provável ancestral da pupunha
cultivada.

Por
hora, existe quase um consenso no meio acadêmico de que a pupunha brava, cujo
nome científico mudou de Guilielma
microcarpa para Bactris dahlgreniana,
é a espécie com maiores chances de ter dado origem à pupunha cultivada.
Inclusive seu nome popular deriva do fato da mesma ser em quase tudo idêntica à
pupunha cultivada, com exceção dos frutos, que são muito menores e não tem
valor comercial. Se a pupunha brava for, no futuro, confirmada como a ancestral
da pupunha cultivada, os indígenas responsáveis por esse processo merecem nossa
admiração. Afinal, eles partiram de uma espécie cujos frutos mediam menos de 2
cm de diâmetro e desenvolveram variedades cultivadas com frutos medindo até 8
cm de diâmetro. Uma façanha e tanto considerando que o processo foi feito de
forma intuitiva.
Crédito
das fotos: Evandro Ferreira
(1) Pupunha cultivada nas cercanias de Conceição do Araguaia, Pará.
(2) Comparação entre frutos de pupunha cultivada (maiores) e selvagem (menores) encontrados nas cercanias da cidade de Parauapebas, Pará.
(3) Diversidade de frutos de pupunha cultivada à venda no mercado Ver-o-Peso em Belém, Pará.
(4) Comparação entre frutos de pupunha cultivada (maiores) e selvagem (menores) encontrados nas cercanias da cidade de Parauapebas, Pará.
25 novembro 2016
BIOPIRATARIA, CONHECIMENTO TRADICIONAL, PESQUISA CIENTÍFICA E JUSTIÇA: UMA QUESTÃO MAL RESOLVIDA
Evandro
Ferreira
Editor
do Blog Ambiente Acreano
Para
quem vive na Amazônia a palavra biopirataria é sinônimo de ‘roubo’, geralmente
por parte de um estrangeiro, de recursos genéticos ou de conhecimentos
tradicionais de comunidades locais com o fim de se obter vantagens financeiras.
E o melhor exemplo de biopirataria praticada na Amazônia foi o contrabando
pelos ingleses de sementes de seringueiras da Amazônia para cultivo em suas
colônias asiáticas. Sob o ponto de vista acadêmico, entretanto, a definição de
biopirataria é mais elaborada e envolve a retirada, sem anuência prévia para
repartição de benefícios, de plantas, animais ou conhecimentos tradicionais
detidos por comunidades nativas para se obter vantagens econômicas em outros
locais.
O
reconhecimento da biopirataria como algo condenável ocorreu na Convenção da
Diversidade Biológica (CDB), realizada em paralelo à Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em junho de
1992. A CDB entrou em vigor em dezembro de 1993 com a ratificação de 168 países
e desde então a soberania nacional sobre a biodiversidade contida no território
de cada país passou a ser reconhecida oficialmente. Antes dela, se considerava
que ocorreram apenas ‘intercâmbios’ praticados por governantes e indivíduos e
que a biodiversidade era patrimônio da humanidade. Com a ratificação da CDB, os
países signatários reconheceram o status
quo da distribuição de plantas agrícolas, ornamentais, ervas daninhas,
animais de criação, e até mesmo as pragas e doenças que acometem esses
organismos.
A
entrada em vigor da CDB praticamente remeteu a biopirataria ao ostracismo visto
que na atualidade a maioria das plantas e animais com potencial econômico já
foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil. Como em um passe de mágica,
a biopirataria deixou de ter importância no atual contexto econômico nacional e
global, ficando relegada a um ou outro caso de comunidades indígenas que vez
por outra apelam para a justiça reparar direitos sobre conhecimentos
tradicionais supostamente usurpados.
E
mesmo assim algumas decisões não tem sido favoráveis, como foi o caso da
recente sentença da justiça federal sobre a alegada biopirataria do
conhecimento tradicional que os índios Ashaninkas do vale do Juruá alegavam ter
sobre o uso da palmeira murmuru para a elaboração de produtos cosméticos.
Na
ação os indígenas tentaram obter compensações financeiras do empresário que
comprava os frutos da palmeira para extrair gordura vegetal, da empresa que
comprava e distribuía a gordura para indústrias no Brasil e no exterior, e de
uma conhecida indústria brasileira que usa a gordura do murmuru como matéria-prima
para elaborar diversos produtos cosméticos. A negativa da justiça em reconhecer
que ocorreu biopirataria no caso do murmuru se baseou no fato de publicações
nacionais e internacionais, datadas desde a década de 20, conterem descrições
das propriedades e composição do murmuru, com indicações de seu uso para a
elaboração de sabonetes e xampus.
Tecnicamente
a decisão da justiça foi correta, mas não se pode negar que, com certeza
absoluta, foram comunidades indígenas, brasileiras ou estrangeiras, que
descreveram aos autores das publicações citadas as propriedades e
possibilidades de uso do murmuru. Provavelmente elas também levaram os
pesquisadores para conhecer as plantas in loco, demonstraram as formas de uso e
doaram frutos e outras partes da palmeira para que os ‘brancos’ pudessem voltar
aos seus laboratórios e comprovassem o que os indígenas já conheciam há muitos
anos. O que queremos deixar claro é que sem a ajuda de um conhecedor dos
poderes e da localização geográfica das plantas nas florestas, a possibilidade
de um pesquisador descobrir princípios ativos de grande potencial dentre estas
plantas é quase nula.
A
publicação dos resultados dos trabalhos de laboratório, usada pela justiça para
denegar aos indígenas seu direito sobre o uso do murmuru para a elaboração de
produtos cosméticos, era inevitável, pois publicar faz parte da rotina e
obrigação desses brancos curiosos, conhecidos no mundo civilizado como
pesquisadores. Uma pena que as comunidades indígenas – alheias ao poder da escrita
– não puderam escrever, em períodos pré-colombianos, suas enciclopédias de
conhecimentos culturais e naturais sobre as florestas em que viviam.
A
formalização do conhecimento tradicional sobre as plantas do novo mundo é fato
antigo e remonta às primeiras expedições de naturalistas a partir de 1700.
Financiados pela nobreza e capitalistas europeus, os naturalistas não
percorreram ‘florestas impenetráveis e selvagens’ das Américas apenas em busca
da aventura e do desconhecido. Os interesses econômicos, científicos e
culturais foram decisivos para as viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira,
Langsdorff, Martius, Bates, Humboldt, Ruiz e Pavón e tantos outros. Estes
naturalistas e dezenas de pesquisadores que os seguiram posteriormente
‘descobriram’ e publicaram de forma sistemática as informações sobre usos de
plantas e animais detidos por comunidades nativas das regiões que visitaram. Os
livros que publicaram são a prova disso e para mostrar que não tinham inventado
o que escreveram, a maioria deles indica o nome das tribos indígenas e as
localidades onde viviam.

A
CDB confere direitos aos países e exorta os mesmos a garantir que o
conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual para que
as comunidades tradicionais, detentoras desses conhecimentos, possam participar
da repartição de benefícios que poderão ser eventualmente gerados.
Aparentemente, este incentivo deu início a uma nova corrida em busca de plantas
e animais cujas utilidades para a humanidade são de grande valia para o avanço
científico e econômico. Agora é possível fazer pesquisas nesse campo sem medo
de praticar a condenável ‘biopirataria’. Infelizmente as coisas não estão
caminhando nessa direção. Muito pelo contrário. As perspectivas não são das
melhores.
Em
primeiro lugar, para realizar o trabalho é preciso obter licenças e
autorizações e isso exige uma paciência infinita, é extremamente burocrático e,
em alguns casos, oneroso. Geralmente as aprovações nem sempre saem a tempo,
pois a linha temporal da burocracia nunca está alinhada com o calendário dos
indispensáveis trabalhos de campo. É importante diferenciar os pesquisadores
envolvidos nesse tipo de trabalho. Os botânicos e etnobotânicos fazem o
trabalho de campo, enquanto os químicos e os bioquímicos desenvolvem produtos
em laboratórios. Os que sofrem para obter as licenças são os primeiros,
responsáveis pelo estudo das plantas no campo e pela obtenção com os moradores
locais das informações sobre o potencial das plantas e animais.
Em
um segundo momento, os afortunados que conseguirem coletar os dados terão a
difícil missão de publicar os mesmos sem prejudicar os fornecedores das
informações – as comunidades ou pessoas detentoras dos conhecimentos
tradicionais – e impedir que aproveitadores façam uso indevido das mesmas. É um
dilema ético. Ao publicar as informações sobre o potencial medicinal de uma ou
várias plantas eles tornam a informação de domínio público. E nesta condição,
um terceiro pesquisador, sabendo do nome científico da planta, pode obtê-la em
uma reserva particular, no Brasil ou no exterior, e então patentear o processo
de isolamento do princípio ativo e eventualmente desenvolver um novo produto,
ganhando assim um lucro monetário.
Assim,
a culpa pela eventual falta de benefício para as comunidades que fornecerem
informações iniciais sobre o potencial de plantas e animais não poderá recair
sobre o pesquisador de campo. Publicar é uma exigência para a sua ascensão
profissional, pois só assim ele ganha o reconhecimento que espera pela sua
atuação. Se não publicar, não ganhará reconhecimento como cientista.
Como
resolver esse dilema? Será que estamos vivenciando o ocaso das pesquisas sobre
o conhecimento tradicional que as comunidades nativas detêm sobre plantas e
animais de utilidade para a humanidade?
Credito
da imagem: Dr. Richard Schultes, considerado o pai da Etnobotânica moderna
(Wikipedia)
24 novembro 2016
LIMITAÇÕES PARA O USO DA PARATAXONOMIA EM INVENTÁRIOS DA BIODIVERSIDADE AMAZÔNICA*
Evandro
Ferreira
Blog
Ambiente Acreano
No Acre os parataxonomistas são conhecidos popularmente como ‘mateiros’ e sua atuação mais destacada ocorre nos inventários florestais usados para a elaboração de planos de exploração manejada de madeireira. Uma das razões para o uso indiscriminado de parataxonomistas em inventários de biodiversidade é a quantidade limitada de taxonomistas formais e o fato da taxonomia descritiva estar perdendo prestígio e financiamento nas últimas décadas.
Hoje, o foco dos investimentos em pesquisas no Brasil está voltado para aquelas de cunho mais tecnológico-industrial ou, quando envolvem a área de ciências biológicas, áreas temáticas mais pontuais dirigidas a um produto, animal ou planta específico. O resultado disso é que na atualidade é muito difícil os taxonomistas conseguirem recursos para realizar coletas aleatórias de amostras de plantas e animais de uma determinada região, mesmo aquelas reconhecidas como de alta biodiversidade. E isto tem acontecido em um contexto de incremento expressivo na quantidade de recursos disponíveis para pesquisa no Brasil nas últimas décadas.
Outro aspecto que tem induzido o uso de parataxonomistas na realização dos inventários de recursos que estão ou serão explorados na Amazônia é a tendência observada nos últimos anos de ‘empoderamento’ do manejo de recursos florestais pelos proprietários de áreas na Amazônia.
Alguns
críticos do uso de parataxonomistas na realização de inventários ressaltam dois
aspectos importantes. O primeiro é a possibilidade de erros na classificação
dos organismos tendo em vista que os parataxonomistas raramente têm
possibilidades de recorrer a coleções biológicas para tirar dúvidas sobre as
identificações realizadas. Dependendo do grau de treinamento ou conhecimento do
parataxonomista, diferenças morfológicas sutis (como a cor da flor e do fruto),
importantes para a distinção de algumas espécies, podem ser relegadas e
espécies distintas terminam por ser classificadas como uma só. Da mesma forma,
uma única espécie que apresente variações morfológicas visíveis, mas que muitas
vezes não são determinantes para a sua correta identificação científica (porte
da planta, tamanho de frutos e folhas, por exemplo), levam alguns
parataxonomistas a classificar plantas de uma única espécie como espécies
distintas.

Esses
tipos de erros são mais preocupantes quando os inventários visam a exploração
da biodiversidade, como acontece no caso da exploração madeireira. Um mesmo
nome popular usado para identificar diferentes espécies pode resultar, no caso
da venda de madeira, no envio ao comprador de um produto que ele não pretendia
adquirir. Da mesma forma, o uso de vários nomes populares para uma mesma
espécie poderá resultar, durante a exploração florestal, na sub exploração do
recurso, prejudicando o dono da área em exploração.
Em
2007 realizamos, em conjunto com Christopher Baraloto (INRA, França), Cara
Rockwell (Universidade da Flórida, USA) e Francisco Walthier (CTA), um estudo
para avaliar o uso de nomes populares na classificação de plantas lenhosas
manejadas em florestas acreanas. Os resultados foram preocupantes. Foram
identificados 384 nomes populares aplicados a 310 espécies diferentes de
plantas. Desses 384 nomes, 50% eram aplicados a uma única espécie, quase a
metade (43%) era usada em conjunto com outro nome para classificar uma única
espécie e 11% representavam mais de uma espécie. Quando a avaliação das
espécies encontradas no Acre foi expandida para os estados do Amazonas e Pará,
a quantidade de nomes populares saltou para 740, sendo que mais de 90% das
espécies eram conhecidas por mais de um nome popular.
Com
base nos resultados do estudo, observou-se que o nível de acerto ou
correspondência entre os nomes populares usados por parataxonomistas e os nomes
científicos corretos das plantas lenhosas exploradas no Acre foi de apenas 50%.
Os erros que acontecem ocorrem no campo e no escritório. Os erros no campo,
cometidos por parataxonomistas, decorrem da existência de características
morfológicas similares presentes em várias espécies ou do uso indiscriminado de
diferentes nomes populares para identificar uma única espécie. Muitas vezes
esses nomes são sinônimos, como nos casos de ‘garapeira’ e ‘cumaru-cetim’,
aplicados para a espécie Apuleia
leiocarpa. Outra situação frequente é o uso do mesmo nome popular para
identificar diferentes espécies.

Os
erros mais graves, entretanto, parecem estar sendo cometidos durante a
conversão, no escritório, dos nomes vulgares em científicos. E tudo em
decorrência do uso sem regras, por parte dos parataxonomistas, de nomes
populares de plantas. A situação só piora quando entram em cena
parataxonomistas que migraram ou foram treinados em outras regiões do Brasil.
Para os responsáveis pela elaboração dos planos de manejo, a busca do nome científico correto das plantas identificadas pelos parataxonomistas é um verdadeiro ‘tiro no escuro’. Sem amostras botânicas das plantas que serão exploradas, eles não podem realizar a identificação em herbários e terminam apelando para pesquisas e buscas na internete pelo nome científico que corresponda aos nomes populares adotados pelos parataxonomistas que realizaram o inventário no campo.
Para os responsáveis pela elaboração dos planos de manejo, a busca do nome científico correto das plantas identificadas pelos parataxonomistas é um verdadeiro ‘tiro no escuro’. Sem amostras botânicas das plantas que serão exploradas, eles não podem realizar a identificação em herbários e terminam apelando para pesquisas e buscas na internete pelo nome científico que corresponda aos nomes populares adotados pelos parataxonomistas que realizaram o inventário no campo.
Os
erros e a falta de precisão por parte de parataxonomistas com pouca experiência
durante a realização de inventários podem contribuir para confusões no mercado
consumidor, especialmente o de produtos madeireiros, bem como afetar a
sustentabilidade da exploração de algumas espécies. É chegada a hora de dar um
basta nesta situação. No Acre existem pessoas capazes de contribuir para
eliminar esse problema. Incluo-me entre elas e estou à disposição para ajudar
no que for possível.
Para saber mais:
Christopher
Baraloto; Evandro Ferreira; Cara Rockwell and Francisco Walthier. 2007. Limitations and Applications of Parataxonomy for Community ForestManagement in Southwestern Amazonia. Ethnobotany Research & Applications 5: 77-84.
*Artigo
originalmente publicado no jornal 'A Gazeta' em 22/10/2013.