A DEMOCRACIA ESTÁ EM DECADÊNCIA
Adriana Carranca
Estadão, 14/02/3010

Entre elas, o poderio econômico da China, a influência cada vez maior de países como Paquistão e Irã no perigoso jogo das relações internacionais e o fracasso dos EUA no Iraque e Afeganistão. Isso não significa que a população desses países não quer democracia. Só não está convencida de suas vantagens. Para afegãos e iraquianos, o sistema não trouxe melhor qualidade de vida. Ao contrário, intensificou a violência e a pobreza, enquanto os chineses enriquecem sob o regime autocrático de Pequim e a mão pesada do Exército Popular.
Há exemplos em que o resultado do processo eleitoral não é reconhecido pelo Ocidente, como nos territórios palestinos. "O mundo vê isso e pergunta: os EUA defendem a democracia, mas desde que vença quem eles querem no poder?" Se até as eleições diretas, alicerce da democracia, estão em xeque, o que resta ao sistema? Em entrevista ao Estado, por telefone, Hawksley tenta responder à questão que deixou em aberto em seu livro.

Em países com instituições fracas - Legislativo, Judiciário, Ministério Público -, ela é um risco em si. Governos altamente corruptos manipulam o sistema em favor de interesses próprios, como no Congo. E não está funcionando em muitos lugares, como no Iraque. A população acaba buscando alternativas. Isso é muito comum quando as pessoas se veem colocadas em perigo pela democracia. No Afeganistão, vivia-se sob um regime autoritário, mas se seu vilarejo é bombardeado, oficiais corruptos roubam sua casa, sua mulher é estuprada, você vai preferir a volta do Taleban.
Mas a culpa é da democracia?
Em locais como Afeganistão e Iraque, sim. Veja, em 2003, os EUA invadiram o país, depuseram Saddam Hussein e entregaram a tão clamada democracia para os iraquianos. E o que aconteceu? De repente, eles se viram livres e mergulharam em uma guerra civil. Isso faz com que países como China, Rússia ou Cingapura digam para seu povo: para que isso? E as pessoas aceitam, porque estão com medo da democracia.
O que fazer, então?
Em vez de ir para Afeganistão, Iraque, Mianmar ou Cuba e dizer "queremos trazer eleições para o seu país", o certo seria ajudá-los a ter um sistema melhor de governança, com instituições fortalecidas, menos corrupção. Assim, você tira a ideologia do acordo. E a democracia virá com o tempo.

Acho que a Rússia tentou a democracia após o fim da Guerra Fria, mas não funcionou - a máfia russa tomou conta e vieram novos conflitos. Por isso, o país voltou atrás, adotando um estilo mais autoritário. A liberdade foi cerceada, não há acesso à informação. No Brasil, você tem muito mais meios de fazer críticas a Lula do que os russos ao (primeiro-ministro Vladimir) Putin. Então, nesse sentido, não é uma democracia. Já o Irã é um caso interessante, porque há um sistema. Nas eleições de junho, havia dois partidos com visões distintas muito claras. Mas, quando o povo decidiu ir às ruas protestar (contra supostas fraudes), o aparato do Estado foi para cima deles. Então, a democracia iraniana é sobreposta pelo guarda-chuva dos clérigos. No entanto, toda sociedade é assim. Na Grã-Bretanha, o Partido Nacional, de ultradireita, está prestes a desaparecer porque as pessoas o acusam de ser racista e de criar tensões entre etnias e regiões. Cada país tem seu guarda-chuva ideológico. Nós só não aprovamos o do Irã.
Havia consenso de que a economia das democracias vai melhor...
Mas, hoje nós temos a China. As pessoas se perguntam: em tempos de crise econômica e de aquecimento global, como os EUA podem ainda dar as cartas? Os Emirados Árabes, autocráticos, são outro exemplo. Trabalhadores da Índia, Bangladesh e Filipinas emigraram para Dubai, porque suas democracias não foram capazes de alimentá-los.
Mas as ditaduras não melhoraram ao se tornarem democracias?
Só há dois ou três exemplos bem sucedidos: Coreia do Sul e Taiwan. Talvez, Chile. Mas, em nenhum desses casos, a mudança ocorreu do dia para a noite. No Chile, Augusto Pinochet cometia atrocidades, mas, ao mesmo tempo, implementou a reforma econômica, que mais tarde facilitaria o ambiente para a democracia chilena.

Não, mas eles podiam ter seguido por esse caminho. A Coreia do Sul tinha a fronteira mais militarizada do mundo, com a Coreia do Norte. Taiwan poderia ter enfrentado a China com explosões, ataques suicidas, como no Oriente Médio, ou com qualquer outra arma. Podiam continuar se considerando refugiados, como os palestinos. Mas, em vez disso, eles se estabeleceram e concentraram energias em fabricar computadores. E estão fazendo isso muito bem.
Como você vê a relação econômica das democracias com a China?
Basicamente, desde o Iraque e Guantánamo, e dos episódios de tortura em Abu Ghraib, toda essa plataforma americana por democracia e direitos humanos caiu por terra. E ninguém mais está pedindo a Pequim que assine qualquer compromisso de apoio aos EUA ou de respeito aos direitos humanos, ou ainda que se transforme em uma democracia. Esses argumentos pouco importam, porque a China está no topo do mundo, não está? E os chineses estão enriquecendo e vendo sua qualidade de vida melhorar. A China é o principal desafio à sobrevivência da democracia.
E Guantánamo? Foi a pá de cal na credibilidade do sistema?
Guantánamo, Abu Ghraib, a completa falta de planejamento na ocupação do Iraque, onde os principais contratos de reconstrução foram dados para companhias americanas. Se você é um iraquiano, assistindo a tudo isso enquanto seu irmão está sequestrado, seu pai foi morto e a sua casa foi bombardeada, você se pergunta: que diabos está havendo? E os líderes autoritários se aproveitam de todo o histórico da política externa americana. Houve o Chile, Vietnã, Irã, palestinos. Desde o fim da Guerra Fria, o Ocidente tenta impor a democracia. Mas, primeiro, na condição de que concordem com quem é eleito. Segundo, sem dar nenhuma prova de que o sistema seja, de fato, mais eficaz em reduzir a pobreza e melhorar a vida das pessoas. Isso põe em perigo a democracia, porque sua credibilidade é questionada.

Depende de uma liderança que tenha como foco, todo o tempo, melhorar a qualidade de vida da população. Isso significa fortalecer as instituições, atacar a corrupção e dar tempo para a democracia prevalecer.
Mas isso não é realidade em muitos países livres. O que fazer?
Eu ainda não encontrei alguém que tenha conseguido nem sequer começar a responder isso. A pergunta que coloco logo no início do livro é: por que o Haiti (antes do terremoto de janeiro) é tão pobre se teve à disposição o que a democracia pode oferecer e Cuba, embora não seja um país rico, é estável e a população tem acesso a educação e saúde? Alguém pode responder?
Regimes autoritários são bons?
Digamos que, se a democracia é mesmo o caminho, então terá de se provar porque o Ocidente não em sido eficiente em convencer o mundo disso. O autoritarismo não é bom, mas a democracia precisa de um ambiente propício. Só quando se está preparado para votar em ideias, e não em etnias ou grupos, a democracia prevalecerá. Enquanto se votar pelo candidato sunita ou xiita, indiano ou paquistanês, não. Nos EUA, o fato de Obama ter sido eleito significa que os americanos venceram o elemento racial e aprenderam a votar em quem tinha as melhores ideias.

Bem, sim (risos). Acho que Bush foi um catalisador, mas se os americanos não considerassem votar em um negro, teriam eleito Hillary Clinton. E levou mais do que dois mandatos de Bush para que os EUA chegassem a isso. A guerra civil acabou em 1864, mas o direito de voto só foi dado aos negros em 1964. Foi preciso um século de negociações e processos democráticos. Mas, se houver melhora a cada geração, estaremos bem. Veja Taiwan: gradualmente permitiu à população enriquecer e, então, comprar propriedades e, com isso, pagar impostos, o que levou à inclusão do povo no debate sobre o gasto público e a um papel maior da imprensa, que, por sua vez, pressiona por um Judiciário independente. A democracia precisa de tempo para amadurecer.
Como vê a democracia no Brasil?
No fim da Guerra Fria, a América Latina tinha instituições desenvolvidas e uma política dividida entre esquerda e direita. Apenas isso já coloca o Brasil e seus vizinhos muito à frente dos países do Oriente Médio, África e parte da Ásia, onde as eleições têm bases étnicas, tribais ou religiosas.